Discurso durante a 42ª Sessão Deliberativa Extraordinária, no Senado Federal

Reivindicação de uma política que valorize o setor pecuário-leiteiro.

Autor
Carlos Bezerra (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/MT)
Nome completo: Carlos Gomes Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PECUARIA.:
  • Reivindicação de uma política que valorize o setor pecuário-leiteiro.
Publicação
Publicação no DSF de 17/04/2002 - Página 4731
Assunto
Outros > PECUARIA.
Indexação
  • ANALISE, ABATIMENTO, PREÇO, LEITE, EMPRESARIO, PAGAMENTO, PRODUTOR RURAL, ACUSAÇÃO, MONOPOLIO, EMPRESA DE LATICINIOS.
  • COMENTARIO, AMPLIAÇÃO, ECONOMIA INFORMAL, PRODUTOR RURAL, VENDA, LEITE, CONSUMIDOR, MOTIVO, INCAPACIDADE, INVESTIMENTO, CUMPRIMENTO, EXIGENCIA, POLITICA SANITARIA.
  • REIVINDICAÇÃO, INTERVENÇÃO, GOVERNO FEDERAL, GARANTIA, PREÇO MINIMO, LEITE, PRODUTOR RURAL, FINANCIAMENTO, PEQUENO PRODUTOR RURAL, CUMPRIMENTO, EXIGENCIA, POLITICA PARTIDARIA, MEDIAÇÃO, CONFLITO, EMPRESA DE LATICINIOS.

O SR. CARLOS BEZERRA (PMDB - MT) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a pecuária leiteira de nosso País, segmento de nossa produção rural de enorme importância econômico-social, vive uma situação de grave penúria nos últimos anos em virtude da ausência de uma política governamental para o setor.

Estamos aqui falando de um negócio que gira mais de 6 bilhões de reais por ano no Brasil e absorve um contingente de mão-de-obra superior àquele empregado no café, na soja ou na cana. Nada menos que 3 milhões e 200 mil brasileiros dedicam sua força de trabalho à produção do leite.

Nada obstante essa indesmentível relevância da pecuária leiteira, o Governo Federal tem-se omitido em sua indelegável responsabilidade de atuar para contrabalançar as imperfeições de mercado, dando azo à inviabilização de um sem-número de pequenas e médias fazendas, que se vêem estranguladas pelo achatamento do preço pago ao produtor, insuficiente sequer para compensar os custos da produção.

Com efeito, a remuneração do pecuarista brasileiro é hoje uma das menores do mundo. Equivale ao custo da embalagem do leite longa-vida. Mesmo no período de entressafra - uma sazonalidade, aliás, em vias de extinção, por conta da oferta ampliada e da maior flexibilidade dos estoques - o preço ao produtor é irrisório. Na entressafra do ano passado, ele recebeu média de 10 centavos de dólar por litro.

Se entregasse seu leite na Argentina, no Chile ou na Nova Zelândia, obteria em torno de 20 a 25 centavos de dólar por ele; na Inglaterra ou na África do Sul, 30 centavos; no Canadá ou em Israel, cerca de 40 centavos; e, nos EUA, quase 45. Também a comparação com os preços que vigoravam aqui mesmo em outros tempos dá medida da dramática situação hoje vivida pelo produtor. Em 1993, o preço correspondia a 39 centavos de dólar por litro.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, essa situação está, evidentemente, a requerer a mediação governamental para sua superação. Qualquer apologia ao livre mercado, neste caso particular, constitui puro e simples cinismo, pois só cabe falar em livre mercado quando as partes têm o mesmo poder de negociação, o que não é, de forma alguma, o que se verifica na cadeia produtiva do leite.

Muito ao contrário, estamos, aqui, diante de um caso flagrante de oligopsônio. Apenas 12 empresas captam mais de 50% do leite fiscalizado no Brasil. Três distribuem 45% do produto. Duas detêm metade do mercado de iogurtes. Outras duas controlam 50% do longa-vida. Uma única vende 50% do leite em pó. Trata-se de uma concentração que realmente impressiona, capaz, praticamente, de ditar os preços ao produtor.

Foi a fulminante concentração da coleta e do processamento ocorrida nos últimos anos que jogou por terra os preços do produto e expulsou do mercado milhões de produtores. O avanço da modernidade industrial passou feito trator sobre um universo de oferta ainda disseminado e frágil, que não teve tempo - nem recursos - para se reciclar. Sem a mediação do Governo no setor, as grandes indústrias processadoras vêm descartando, sem dó nem piedade, todos os produtores que não se submetem às suas conveniências e imposições. Na média nacional, 30% a 40% dos produtores já foram descartados. Milhares de linhas de leite foram abandonadas no interior do País. Centenas de postos de coleta, fechados.

Os consumidores, no entanto, não têm auferido qualquer benefício significativo da redução do preço do leite in natura, pois os preços dos produtos lácteos no varejo não apresentam qualquer queda apreciável. Não faltam exemplos de ações do Governo facilitando as importações ao menor sinal de aumento dos preços aos consumidores. Quando isso ocorre, as grandes indústrias se beneficiam duplamente, pois, além de lucrarem com a comercialização do produto importado, aumentam ainda mais seu poder de barganha para determinar o preço pago ao pecuarista. Quando o produtor de leite é quem está sofrendo os prejuízos, contudo, não se observa disposição alguma do Governo para contrabalançar os desequilíbrios do mercado.

Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, não se pode negar que houve avanços em relação ao passado no que tange ao rigor sanitário e à garantia de abastecimento, em especial por conta do advento do leite longa-vida, uma importantíssima inovação industrial. A ultrapasteurização - a 130 graus centígrados - rompeu a barreira biológica da durabilidade, estendendo-a para seis meses. Esses avanços, todavia, não tiveram os efeitos que deles se poderia esperar, pois os produtores recebem cada vez menos pelo leite, as oportunidades tecnológicas e genéticas permanecem inacessíveis àquela esmagadora maioria dos produtores que são de pequeno porte, e o salto de eficiência não permitiu a expansão horizontal do consumo.

Ao contrário, a pobreza de vastos contingentes de nossa população continua condenando um terço dos brasileiros, no mínimo, ao subconsumo de leite. A demanda por leite fluido encontra-se estagnada desde 1990 no Brasil, oscilando ao redor de 56 litros per capita ao ano. A de derivados, por sua vez, aumenta na direta proporção da crescente concentração de renda. As vendas totais de produtos lácteos - leite e derivados - caíram 21% entre 2000 e 2001. Nossa média per capita, de 135 litros ao ano, é muito inferior àquela observada na Argentina ou no Uruguai, de 200 litros ao ano.

É possível supor, entretanto, que mesmo o consumo de derivados não tenha mais espaço para crescer, já tendo encontrado seu limite relativo ao poder de compra da grande maioria da população. Em outras palavras, os ricos já estão comprando todos os laticínios que podem consumir. Só o Estado de São Paulo, por exemplo, consome mais derivados que as regiões Sul, Centro-Oeste e Norte juntas. Os 21 milhões de habitantes das 30 maiores cidades paulistas exibem demanda superior à dos 32 milhões de moradores dos Estados de Minas e do Rio de Janeiro.

            Como se pode ver, também no caso da produção láctea, a desigualdade de renda condiciona e aborta o desenvolvimento brasileiro. E aqui, onde a elasticidade da demanda é refém do mercado interno, a repercussão da desigualdade de renda é brutal. Caro para o consumidor pobre, o preço do leite não paga o custo do produtor, especialmente daquele que investiu muito em tecnologia e entrega o produto de sua ordenha pelo pouco que oferecem as gigantescas indústrias processadoras, para receber o pagamento após 40 dias. Os médios produtores estão abandonando o setor; os mais humildes, por não poderem fazer a mesma coisa, buscam refúgio na informalidade.

Assim, em pleno século XXI, o segmento leiteiro que mais cresce no Brasil é o informal. E a tendência é de que inche ainda mais. Se novas exigências sanitárias forem implantadas sem que se dê oportunidade de capacitação aos pequenos produtores, a informalidade vai explodir, como alerta o veterinário e pesquisador Luís Fernando Laranja, doutor do Departamento de Nutrição e Produção Animal da Universidade de São Paulo.

Vive-se, na verdade, um retrocesso, paralelamente à modernização de alguns nichos produtivos. O leite cru, vendido sem inspeção sanitária, já soma mais de 40% da oferta brasileira, enquanto dez anos atrás equivalia a 30% dela. São, hoje, 8 bilhões e meio de litros, crescimento de quase 200% em relação a 1990. Quase 20% do consumo fluido são atendidos pelo leite sem inspeção sanitária, representando 2 bilhões de litros ao ano. O restante destina-se às queijarias locais e regionais. A venda inspecionada, por seu turno, tem crescimento insignificante. Aumentou apenas 7,5% ao longo de toda a década passada.

A pujança do mercado clandestino reflete os desequilíbrios estruturais de nosso desenvolvimento desigual. No Brasil, o mercado paralelo paga mais aos pequenos produtores do que o cooperativismo - que se encontra desarticulado - ou o agrupamento industrial dominante, que já não se interessa por eles. O leite in natura oferece riscos à saúde se não for fervido corretamente. Mas para o consumidor pobre incorpora um atrativo irresistível: custa 30% menos que o pasteurizado e 60% abaixo do longa-vida, com a vantagem extra de que só se paga ao entregador ao final do mês. No leite, como em tantos outros setores, a ênfase exclusiva na sofisticação tecnológica acentuou um traço típico do desenvolvimento brasileiro: o implante de bolsões de eficiência num ambiente geral de exclusão das maiorias.

Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, o conjunto da situação vigente no setor leiteiro do País favorece a lucratividade dos laticínios líderes de mercado, em detrimento dos produtores primários e das unidades regionais, que só têm definhado. É de se estranhar que o Governo Federal assista impassível a esse estado de coisas. Estaríamos, talvez, diante de um deliberado favorecimento das grandes indústrias e das grandes redes varejistas em prejuízo dos 1 milhão e 200 mil fornecedores, 70% dos quais tiram menos de 50 litros de leite por dia?

A Comissão Nacional de Pecuária de Leite da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) solicitou, no ano passado, que o Governo Federal adquirisse parte do pequeno excedente de produção havido para distribuição em programas sociais. Caso esse pleito tivesse sido atendido, a crise do setor não estaria tão aguda. Afinal, o pequeno excedente de oferta, inferior a 2%, serviu de pretexto a indústrias e supermercados para comprimirem ainda mais os preços pagos aos produtores. As diversas solicitações formuladas pela CNA na ocasião buscavam racionalizar a comercialização, estimulando a estocagem e as exportações.

Deixou, também, o Governo Federal, até o presente, de incluir o leite na Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) e não promoveu a publicação das normas do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite.

A CNA solicitou a inclusão do leite na PGPM, principalmente para garantir ao produtor acesso à política de Empréstimo do Governo Federal (EGF). Essa linha de crédito exige da indústria a estocagem do produto como garantia do financiamento, possibilitando o enxugamento de parte do excesso de oferta do mercado.

Já no caso do Programa de Qualidade do Leite, a falta de sua regulamentação pelo Governo acarreta dificuldades para efetivar exportações para os mercados mais exigentes, freando o escoamento da produção para o mercado externo. Ademais, essa omissão em promover a regulamentação representa total desrespeito ao produtor, que fez investimentos em época de crise, cumprindo o cronograma prévio que definia este ano de 2002 como prazo máximo para a implantação dos tanques de resfriamento e da coleta a granel.

Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, a economia do leite tem enorme importância social em nosso País, respondendo por milhões de empregos. A persistência do modelo atual implicará custos sociais elevadíssimos.

Temos de buscar modelos que assegurem o abastecimento e, ao mesmo tempo, a qualidade, sem nos rendermos ao padrão intensivo norte-americano, de custos inviáveis para 80% dos produtores e consumidores. Vale lembrar que, em 1950, os Estados Unidos tinham 3 milhões e meio de produtores de leite. Hoje, eles são apenas 90 mil. Lá, a oferta saltou para 74 bilhões de litros, mas quase 15 milhões de pessoas saíram do campo para a cidade em menos de uma geração.

O êxodo rural havido no Brasil nas últimas décadas teve proporções assustadoras. Cabe perguntar se nossas cidades têm condições de arcar com novas e gigantescas levas de migrantes.

Caso persista, a derrocada da economia do leite será responsável por despejar nas cidades brasileiras mais alguns milhões de desafortunados.

Não podemos permitir que isso ocorra. Precisamos exigir do Governo Federal uma nova política para o setor. Essa política tem de passar, necessariamente, pela inclusão do leite na Política de Garantia de Preços Mínimos, pela definição de subsídios seletivos ao consumidor de baixa renda, pela criação de câmara setorial de negociação para estabelecer as margens da cadeia láctea e pela mediação dos impasses pelo Governo. É necessário, também, que se criem linhas de crédito específicas para que os pequenos produtores possam se adequar às exigências sanitárias.

Sr. Presidente, Sras e Srs. Senadores, a pecuária de leite brasileira não tem recebido, nos últimos anos, tratamento correspondente à sua efetiva importância econômica e social. Ao contrário, tem sido muito espezinhada. É passada a hora de se reverter essa situação.

Era o que tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/04/2002 - Página 4731