Discurso durante a 44ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Críticas à política indigenista do governo federal na Comemoração do Dia do Índio, no próximo dia 19.

Autor
Marluce Pinto (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RR)
Nome completo: Maria Marluce Moreira Pinto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA.:
  • Críticas à política indigenista do governo federal na Comemoração do Dia do Índio, no próximo dia 19.
Publicação
Publicação no DSF de 19/04/2002 - Página 5211
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • REGISTRO, COMEMORAÇÃO, DIA, INDIO.
  • CRITICA, POLITICA INDIGENISTA, FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO (FUNAI), EXCESSO, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS, AUSENCIA, AUXILIO, EDUCAÇÃO, SAUDE, INFRAESTRUTURA, GRUPO INDIGENA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 


A SR.ª MARLUCE PINTO (PMDB - RR. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, amanhã, dia 19 de abril, comemora-se o Dia do Índio.

Sinceramente, meu desejo é o de que o dia de amanhã, além das justas homenagens e da exaltação do papel histórico de nossos índios no processo de construção de nossa sociedade, sirva também para uma profunda reflexão para uma mais adequada e justa política que permita aos silvícolas a garantia do pleno exercício de sua cidadania, do respeito ao seu habitat, seus valores morais, seus costumes e sua cultura.

Tenho comigo, Sr. Presidente, que um Estado, para ser verdadeiramente democrático, precisa, necessariamente, respeitar as diversidades culturais e étnicas que sob ele se abrigam.

Volto no tempo, Sr. Presidente, e lembranças do passado me fazem refletir sobre os descendentes daqueles que, no ano de 1500, pacificamente receberam Cabral na Ilha de Vera Cruz. Dos seis milhões de outrora, espalhados pela Terra de Santa Cruz, pouco mais de 300 mil povoam hoje este país chamado Brasil.

Foram precisos 410 anos para que a consciência nacional - talvez não suportando o peso da injustiça contra eles praticada - instituísse, em 1910, o primeiro órgão voltado à sua assistência: o SPI, Serviço de Proteção aos Índios, órgão, aliás, inspirado pelo Marechal Cândido Mariano Rondon, cujos princípios eram “a defesa dos indígenas contra o extermínio e a opressão, dando-lhes meios para a adoção das artes e indústrias da sociedade brasileira, porém sem a responsabilidade de catequese”, isto é, respeitando-se sua cultura e seus costumes.

A verdade, Sr. Presidente, é que as comunidades indígenas foram e ainda são objeto de inúmeras violências, ao ponto de seu contingente populacional ficar reduzido a pouco mais que 0,2% da população brasileira nos dias atuais. Ao todo, são 210 etnias que se comunicam através de 170 línguas identificadas.

Um rosário de atitudes negativas, somadas a interesses escusos, impunidade, omissão de autoridades e a convivência com grupos marginais da população branca permitiram, infelizmente, que chegássemos a esse processo de destruição do habitat e à degeneração dos costumes de nossos silvícolas.

            Em síntese, a questão indígena em nosso País continua seriíssima e não pode, num jargão popular, continuar sendo “empurrada com a barriga”, eternamente subordinada a discussões estéreis e emocionais. E a Funai não pode também, como órgão máximo para as questões indígenas neste País, resumir suas atribuições numa insana política voltada quase que exclusivamente para a demarcação de áreas indígenas.

Realmente, não sei se a Funai, nos dias atuais, cumpre suas reais atribuições concernentes às causas mais justas dos povos indígenas. O que vemos são reuniões e mais reuniões de avaliação acontecendo em gabinetes refrigerados de Brasília, enquanto nossos índios permanecem a centenas de quilômetros de distância, relegados ao abandono e carentes de quase tudo.

Nos últimos meses, não foram poucas as manifestações de contrariedade de nossos índios com o tratamento que recebem da Funai. Uma dezena de invasões de postos avançados aconteceram, inclusive com reféns, e pouco ou nada resultou de positivo em atendimento às reivindicações dos índios.

Uma ação, entretanto, é a cada dia lembrada, acionada e insistentemente mantida pela Funai, que são os famigerados estudos, que resultam em portarias de demarcações e mais demarcações de terras, a torto e à direita, por todo o território nacional, com especial olho gordo nas terras da Amazônia.

Realmente, meus nobres Colegas, não dá para entender essa furiosa ação da Funai, que beira as raias do insano e cujos estudos de demarcação de áreas indígenas não possuem critérios mínimos justificáveis nem respeito aos cidadãos, sejam índios ou não.

Apenas para ilustrar para V. Exªs o tamanho desse absurdo praticado pela Funai, hoje, em solo pátrio, já são 564 as reservas indígenas oficialmente demarcadas. Somam quase 98 milhões de hectares e equivalem a 11,34% do território nacional. Além dessas - até onde sei -, 34 áreas estão em processo de demarcação e outras 62 em estudos. Com um agravante, Sr. Presidente: a existência de denúncias de que, dessas 34 áreas em processo de demarcação, 17 têm a custódia, para não dizer ingerência, do PPTAL, o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal, órgão financiado pelos 7 grandes, o conhecido G-7, fato, no mínimo, estranho e que, a meu ver, merece ser investigado.

Mas quero continuar mostrando aos nobres Colegas o tamanho da presença da Funai na Região Norte, conseguido com essa famigerada política de demarcação de terras.

Apenas 3 Estados - o Amazonas, o Pará e Roraima - abrigam mais de 50% do total de silvícolas existentes no País. O Amazonas com 89 mil índios, o Pará com 45 mil e Roraima com 37 mil.

Em extensão de terras destinadas aos índios, apenas esses três Estados contribuem com mais de 70 milhões de hectares, ou seja, com quase 70% do total de hectares destinados aos índios em todo o território nacional. O Amazonas contribui com aproximados 35 milhões de hectares; o Pará com mais de 22 milhões; e Roraima com 13 milhões.

No Estado do Amazonas, na região conhecida como Cabeça do Cachorro, foram demarcados 10 milhões e 600 mil hectares, em área contínua, para abrigar menos de 30 mil pessoas. A área é superior à Cuba.

No caso específico de Roraima, as terras indígenas ocupam mais de 60% de todo o Estado.

Em percentuais, 12% do Acre, 23% do Amazonas, 10% do Amapá, 21% do Pará, 20% de Rondônia, 7% do Tocantins e quase 60% de Roraima são reservas indígenas.

Percebem V. Exªs que o Norte do País, a Amazônia brasileira, “o pulmão da Terra”, como dizem lá fora, está se tornando uma imensa reserva indígena.

Nossas fronteiras, a partir de Roraima, seguindo em direção ao Oeste, passando pelo Amazonas, toda a fronteira Acre/Peru, até o limite sul de Rondônia, estão totalmente bloqueadas, seja por reservas indígenas, seja por reservas florestais intocáveis. Com o agravante de que a maioria dos rios - fontes de águas potáveis que representam um quinto de toda a água doce do Planeta - estão encravados dentro dessas reservas, como é o caso de todas as nascentes da Calha Norte, os afluentes e formadores do rio Javari, o Purus, o Madeira, o Tapajós, o Xingu etc.

A própria Funai reconhece que a soma das áreas indígenas em solo brasileiro superam as da Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Holanda e Portugal, todos reunidos.

A voracidade da Funai em demarcar terras indígenas, pelo andar dessa carruagem, não tem limites de fronteiras nem no tempo. Vale a pena lembrar aqui que, por duas vezes, por cláusulas constitucionais nas Cartas de 1967 e 1988, foram estabelecidos prazos para a conclusão dos trabalhos de demarcação de terras indígenas existentes do País. O último prazo, estabelecido na Constituição de 1988, expirou em outubro de 1993, sem que a Funai concluísse seus trabalhos. E os trabalhos continuam. Até quando? Que forças ocultas serão essas que superam prazos até mesmo de nossa Carta Magna?

Esses fatos, meus nobres Colegas, é que nos fazem repudiar a manutenção dessa atual, confusa e insensata política indigenista voltada, quase que exclusivamente, para a demarcação de reservas. Os objetivos não são claros, geram apreensão, tolhem nossa integridade territorial e põem em risco nossa soberania. Afinal, quase 12% do nosso território, onde repousam riquezas incalculáveis - de fauna, flora, minérios e água doce -, a nós próprios estamos tornando inacessíveis. Enquanto isso, o mundo inteiro, não é novidade nenhuma, faz as mais esdrúxulas, arrogantes e firmes declarações sobre nossa limitada e restrita soberania sobre a Amazônia, o que consideram um “patrimônio da humanidade”.

Querem, a bem da verdade nos “tapar o sol com a peneira”. É preciso enxergar que o mundo está mudando e, junto com o mundo, também o Brasil exige mudanças. Vivemos em um mundo globalizado, onde o avanço tecnológico, as leis de mercado e adequações socioeconômicas são exigências quase diárias. Com tudo isso, não nos é mais permitido viver à sombra de leis e normas quase seculares, antiquadas e, mais grave ainda, quando tratam de seres humanos.

Não podemos mais, Sr. Presidente, continuar no “chove-não-molha” de uma política onde a norma e a prática se distanciam cada vez mais.

A questão indígena brasileira exige propostas que estabeleçam diretrizes e ações concretas, práticas, que permitam ao índio o exercício pleno de sua cidadania, sem violar sua vida, seus conceitos, seus valores e sua cultura; que permitam ao silvícola a possibilidade de seu acesso aos frutos do progresso econômico e social e, principalmente, que lhes permitam a convivência, em alguns casos, com as comunidades não indígenas.

Se assim não fizermos, estaremos contribuindo para um eterno e aparente isolamento de nossos índios. E digo “aparente”, porque não é de hoje - e sabemos muito bem isso - que são inúmeros os grupos de pessoas, nacionais e estrangeiras, cujos interesses raramente se embasam na filantropia e que se movimentam junto às comunidades indígenas com projetos os mais estranhos, não raramente violentando sua vida, seus conceitos, seus valores e sua cultura. Semana passada, nossos jornais denunciaram um inglês que, vivendo alguns anos entre nossos índios, deles conseguiu informações sobre duas plantas medicinais, retirou-as e hoje detém patente das mesmas na Inglaterra. Este fato é apenas um entre dezenas ou centenas de outros casos de roubo e patenteamento de nossas flora e fauna.

Sr. Presidente, meus nobres Colegas, é irreal e desumana, para nós e para a maioria de nossos grupos indígenas, a idéia de querer mantê-los distantes de benefícios aos quais já se acostumaram e deles já não podem mais prescindir.

O índio, em minha concepção, tem o direito não só à vida mas também à liberdade. A política de valorização da cidadania indígena não apenas deve ter como preocupações permanentes impedir agressões ao seu meio ambiente, cuidar de sua sobrevivência e preservar os seus costumes. Antes, e acima de tudo, tenho comigo que uma correta política de trato ao silvícola deve, principalmente, permitir-lhe o acesso aos bens e serviços públicos básicos que lhe garantam uma existência digna. É crucial que seja definida, de maneira clara, a forma de convivência das comunidades indígenas com os seus irmãos caboclos, mestiços, mulatos e brancos fisicamente próximos.

Mais urgente é deixarmos bastante claro e explícito que a política de Governo em relação às comunidades indígenas não pode se restringir a demarcar reservas.

Nossos índios clamam por melhores condições de vida e merecem amplo apoio nas áreas de saúde, educação, saneamento básico, etc., de forma a que tenham, no mínimo, melhor organização em suas atividades produtivas, dentro do marco de preservação de sua identidade e valores culturais.

Sr. Presidente, nobres colegas, coincidência ou não, o fato é que o dia 19 de abril, no calendário cristão, também é dedicado a Santo Expedito, o santo dos aflitos e desesperados, a quem os católicos entregam as causas urgentes e de difícil solução. Que Santo Expedito, então, nos ajude na solução dos problemas pelos quais passam, em especial, os nossos irmãos índios. Sou cristã e carrego comigo a esperança e a fé. Esperança de que teremos forças para mudar essa absurda realidade e fé de que índios e não-índios continuaremos irmanados em busca de uma sociedade mais justa, mais feliz e menos desigual.

Obrigada.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/04/2002 - Página 5211