Discurso durante a 60ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reflexão acerca da importância da adoção de ações afirmativas para sanar as desigualdades sociais no Brasil, por ocasião da comemoração, no último dia 13, do Dia da Abolição da Escravatura

Autor
Emília Fernandes (PT - Partido dos Trabalhadores/RS)
Nome completo: Emília Therezinha Xavier Fernandes
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Reflexão acerca da importância da adoção de ações afirmativas para sanar as desigualdades sociais no Brasil, por ocasião da comemoração, no último dia 13, do Dia da Abolição da Escravatura
Publicação
Publicação no DSF de 15/05/2002 - Página 8008
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, ELOGIO, LIDERANÇA, VULTO HISTORICO, ANALISE, HISTORIA, PROCESSO, LIBERDADE, ESCRAVO, EFEITO, DESIGUALDADE SOCIAL, NEGRO, ATUALIDADE, REGISTRO, DADOS, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA (IBGE).
  • DEFESA, POLITICA, CIDADANIA, INSERÇÃO, TRABALHO, SAUDE, EDUCAÇÃO, HABITAÇÃO, DESCENDENTE, NEGRO, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, COMPENSAÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, ELOGIO, PROGRAMA, GOVERNO, RESERVA, COTA, SERVIÇO PUBLICO, UNIVERSIDADE.

  SENADO FEDERAL SF -

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A SRª EMILIA FERNANDES (Bloco/PT - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o dia 13 de maio, data em que se comemora a Abolição da Escravatura, estimula-nos a uma reflexão. Como professora de História durante 23 anos sempre procurei dialogar com os meus alunos sobre o verdadeiro sentido de determinados fatos históricos e de determinadas datas significativas no contexto da construção da civilização do nosso País e suas repercussões. Inclusive até tentava resgatar o verdadeiro lado, a face que fatos históricos e posições de pessoas ilustres da história brasileira tem a ver com a vida das pessoas.

E como há uma certa confusão em relação ao que realmente significou o 13 de Maio e à legislação feita à época, ou seja, o que realmente aconteceu com a comunidade negra da época e suas repercussões até hoje, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, trago uma reflexão sobre isso.

Em discurso datado de 1823, o líder abolicionista José Bonifácio fez o seguinte questionamento:

Por que espécie de Justiça um homem rouba a liberdade de outro e, ainda pior, a liberdade dos filhos desse homem e dos filhos de seus filhos?

Não há, Srªs e Srs. Senadores, até hoje, resposta plausível para essa indagação. Os contemporâneos de José Bonifácio, cidadãs e cidadãos do Brasil colonial, também não encontraram justificativa.

O discurso de José Bonifácio é eco do movimento abolicionista deflagrado no Brasil Colônia, da pressão dos movimentos libertários dos escravos que clamavam por igualdade e, acima de tudo, por liberdade.

Em vez de uma liberdade plena, os negros oprimidos conseguiram uma liberdade de fachada, garantida por decreto, em 13 de maio de 1888. A Princesa Isabel, governando interinamente o País na ausência de seu pai, Dom Pedro II, assinou a Lei Áurea, decretando a libertação de todos os escravos do Brasil.

Registro hoje, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, os 114 anos de abolição oficial da escravatura no Brasil. Devemos lembrar, no entanto, que a Lei Áurea não foi um justo reconhecimento ao direito de igualdade entre negros e brancos. Ao contrário.

Enquanto a escravidão era “apenas” moralmente errada, ela foi sustentada pelo poder, incentivada pelos donos de terra e suportada como um mal obrigatório por aqueles que tinham alguma consciência.

A abolição ocorre na segunda metade do século XIX, quando a escravidão torna-se economicamente errada, alterando profundamente o quadro político, econômico e social do País.

A Lei Áurea surge, assim, mais como tábua de salvação da elite colonial do que do negro oprimido. A elite começava a pagar um preço muito alto para manter a escravidão: o sistema escravista entrara em decadência com o início da imigração européia, a instituição do trabalho livre assalariado, o fim do tráfico em 1850 e as fugas e rebeliões seculares dos escravos.

São essas fugas, é essa obstinada resistência negra que conserva o caráter revolucionário do movimento pela liberdade. Os negros fugidios escondiam-se na mata e organizavam-se em grupos, os quilombos, para sobreviver à hostilidade do ambiente e às investidas dos brancos.

O Quilombo dos Palmares é, certamente, um dos maiores símbolos da resistência negra. Foi o que mais tempo durou: a nação palmarina começou a ser formada a partir de 1597, segundo afirmam alguns historiadores. Palmares, em permanente crescimento com a vinda de negros fugidos do cativeiro, ocupava uma área de aproximadamente 400 quilômetros quadrados dos atuais Estados de Pernambuco e Alagoas. Chegou a ter mais de 30 mil habitantes - homens, mulheres e crianças negras - no auge de sua existência.

Esse quilombo se organizou como um verdadeiro Estado, detentor de combativo exército e com estruturas dos Estados africanos, onde cada aldeia tinha um chefe, os quais elegiam um rei. O maior deles foi Zumbi dos Palmares. 

Em uma guerra de vida ou morte, travada entre a escravidão e a liberdade, Zumbi figura como um gênio negro militar que começa a entrar para a história como o general mais jovem do Brasil e, talvez, do mundo, aos 19 anos.

Por sua capacidade de comandar e resistir às inúmeras tentativas de destruição daquele reduto de homens e mulheres livres, encarnou os sentimentos mais significativos de dignidade humana, que estão em seu ideário pela preservação da vida, pela implantação de um clima de justiça e pela busca incessante dos caminhos da liberdade.

Escravocratas uniram-se para destruir aquela organização política, aquela República Negra. Dezesseis batalhas foram vencidas pelos quilombolas: duas sob o domínio holandês e 14 sob a tutela de Portugal. Após três anos de brava resistência, ocorre a derrota em um cruento massacre dos mocambos que compunham Palmares. Zumbi consegue escapar e manter por mais um ano a luta de guerrilhas, até ser capturado e degolado, em 20 de novembro de 1695, aos 39 anos de idade.

Srªs e Srs. Senadores, Zumbi dos Palmares é um herói nacional. Tinha uma visão de futuro que somente os grandes revolucionários possuem. Resgatar sua trajetória é contar a própria história de bravura e de tenacidade do povo negro. Ele é o marco, o símbolo maior, mas não o único.

Devemos destacar que a história brasileira está repleta de exemplos de homens e mulheres que lutaram pelos direitos, pela liberdade, pela participação e pela democratização de oportunidades para a comunidade negra.

Se tivemos avanços nos últimos séculos foi graças ao trabalho abnegado desses heróis, muitos deles anônimos, mas todos símbolos da resistência, da militância, da força e da beleza de uma raça, a nos dizer insistentemente que a nação brasileira perde com a discriminação. Todos acabam perdendo.

Há 114 anos, o desafio que enfrentamos é o de construirmos juntos um país mais justo e democrático; luta essa incansável, cotidiana, que objetiva uma sociedade cidadã que conheça e respeite os direitos humanos, de todos e para todos. Tarefa árdua por demais.

A escravidão, encerrada por decreto em 1888, retirou o escravo oprimido do cativeiro, mas não garantiu a liberdade, deixando profundas cicatrizes na sociedade brasileira. A abolição forjou uma sociedade desigual, racialmente injusta e ainda muito distante da cidadania plena que almejamos e merecemos.

Em pleno século XXI, nossa discriminação, hipocritamente camuflada, não nos permite respeitar as diferenças étnico-culturais, os inúmeros matizes que formam o povo brasileiro.

Em nosso país continental, vive a segunda maior população negra do planeta. Só perdemos para a Nigéria. Esta é a nação de negros e de negras que precisam se orgulhar de sua raça, de sua cor.

O Censo 2000, do IBGE, cujo resultado foi divulgado há poucos dias, aponta o crescimento, durante a década de 90, do percentual de brasileiros e brasileiras que se identificam como negros. E a isso temos que saudar, porque é importante o resgate da auto-estima dos nossos afrodescendentes, que estão dizendo, publicamente, com orgulho: nós somos negros. É preciso ressaltar esse fato quando lembramos de uma data que é um símbolo, embora não tenha havido um avanço, de fato, nas conquistas da população negra.

A proporção de pessoas que se declararam de cor negra no Brasil aumentou de 5%, em 1991, para 6,2%, em 2000. Ao mesmo tempo, diminuiu a proporção de pardos: de 42,6%, em 1991, para 39,1%, em 2000. Esses números revelam a afirmação da auto-estima de nossos afrodescendentes. As pessoas estão se gostando, estão reconhecendo seus direitos e, principalmente, a dívida histórica que este País tem com os negros.

Mas o Governo e a nossa sociedade, por vezes, recusam-se a enxergar essa legião de cidadãos e de cidadãs que merecem o nosso respeito pelo papel fundamental que tiveram na construção da nossa cultura, da nossa história, da nossa música, da nossa culinária, enfim, na formação da cidadania brasileira. A exclusão brasileira ainda tem cor. Negros e pardos no Brasil constituem 46% da população, sendo que 64% dos pobres são negros, índice que atinge 69% quando observado o total de indigentes.

São números que se transmutam em triste realidade ao lançarmos um olhar atento ao nosso redor e verificarmos a cor da pele das pessoas que dormem nas ruas, sob as pontes, que vivem amontoadas em nosso sistema carcerário, que fazem dobrar as filas por emprego, que morrem às portas dos hospitais.

Uma população invisível aos olhos do nosso Poder Público, quase imperceptível nas universidades, nos partidos políticos, na igreja, na grande mídia nacional, nos bancos escolares, nas Câmaras Municipais, nas Assembléias Legislativas, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, sem falar nos grandes cargos do Poder Executivo.

O País não pode mais negar à população negra, aos afrodescendentes, o direito à inclusão social. Não podemos ignorar sua contribuição para a formação da identidade nacional. É preciso, portanto, Srªs e Srs. Senadores, buscar a cidadania, respeitar as diferenças, promover uma justa distribuição das nossas riquezas, implantar políticas públicas compensatórias, afirmativas, a fim de assegurar à maioria da população excluída, violentada e discriminada condições dignas de vida: saúde, trabalho, educação e moradia.

É preciso proteger os afro-brasileiros, que são vítimas preferenciais da violência policial, da discriminação no mercado de trabalho pelo critério da “boa aparência”, da fragilidade judiciária, que insiste em não tipificar os crimes de racismo.

Injusto seria, Sras e Srs. Senadores, não destacarmos aqui os avanços registrados até agora. O Governo brasileiro reconheceu, pela primeira vez na história, a dívida social e histórica que tem com o povo negro. Reconhecimento tardio, feito no apagar das luzes de um governo neoliberal que exclui, desemprega, empobrece e que já dura oito anos. Mesmo assim, o fato deve ser registrado como uma iniciativa louvável.

A reserva de cotas para negros no serviço público federal foi confirmada ontem com o lançamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas, parte do Programa Nacional de Direitos Humanos. Em até 60 dias, ministérios, secretarias, autarquias e órgãos vinculados à administração federal deverão se adaptar, traçando o perfil racial dos seus servidores.

Com base nesse levantamento, será estabelecido o percentual de vagas reservadas aos negros. No Ministério da Justiça, onde o sistema de cotas já vigora, há reserva de 20% das vagas para negros, 20% para mulheres e 5% para deficientes físicos.

Empresas de informática, de limpeza ou qualquer outro serviço contratado serão obrigadas a obedecer ao regime. Será incluída, como critério de desempate técnico em licitações públicas, a existência de políticas de ações afirmativas nas empresas, como contratação de negros e deficientes.

Por enquanto, a reserva de vagas não atinge concursos públicos. A extensão aos concursos depende da aprovação do Projeto de Lei do Senado nº 65, de 1999, pelo Congresso Nacional. Projeto esse que já foi aprovado no Senado Federal e está em apreciação na Câmara dos Deputados, estabelecendo reserva de 20% de vagas em concursos públicos, nas universidades e nos contratos de crédito educativo, pelos próximos 50 anos, para negros e pardos.

Também devemos destacar outras iniciativas, outras propostas compensatórias que estão sendo abraçadas pelo Congresso Nacional, como a que garante às comunidades remanescentes de quilombos o direito à propriedade das terras que habitam e a alteração do Código de Defesa do Consumidor para coibir a discriminação no fornecimento de produtos e serviços baseado na raça, cor, etnia, religião, sexo, estado civil ou idade do consumidor.

Todas essas iniciativas são louváveis. Mas não devemos parar por aí. É hora de a sociedade exigir e de nós, Parlamentares e Poder Público, trabalharmos na elaboração, aprovação, cumprimento e implementação de políticas afirmativas que revertam imediatamente o processo histórico de exclusão da comunidade negra. A igualdade de direitos políticos, sociais e econômicos deve vir agora e para todos.

No Brasil contemporâneo, homens ainda privam seu semelhante de oportunidades e, ainda pior, roubam as oportunidades dos filhos e filhas dessas pessoas e dos filhos de seus filhos. É isso, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que temos o dever moral de impedir.

Na inspiração de Zumbi, a resistência da luta e dos avanços dos nossos irmãos afrodescendentes.

A todos, o nosso compromisso.

Sr. Presidente, esse é o registro que gostaríamos de fazer nesta data.

Muito obrigada.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/05/2002 - Página 8008