Discurso durante a 65ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Conteúdo e importância da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, para a cultura brasileira.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Conteúdo e importância da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, para a cultura brasileira.
Publicação
Publicação no DSF de 22/05/2002 - Página 8799
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, CENTENARIO, EDIÇÃO, LIVRO, AUTORIA, EUCLIDES DA CUNHA (BA), ESCRITOR, DESCRIÇÃO, GUERRA, ESTADO DA BAHIA (BA), HISTORIA, BRASIL.
  • HOMENAGEM POSTUMA, ELOGIO, VIDA PUBLICA, EUCLIDES DA CUNHA (BA), ESCRITOR, JORNALISTA.

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O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (Bloco/PSDB - CE) - Sr. Presidente, Sras. Senadoras e Srs. Senadores, em 2002 estamos comemorando os cem anos da publicação do clássico maior sobre o Brasil, o livro Os Sertões, do escritor fluminense Euclides da Cunha. A primeira edição circulou no dia 2 de dezembro de 1902, editado pela Laemmert, do Rio de Janeiro. Desta, então, sucederam-se edições em português e inúmeras traduções em diversas línguas, como o espanhol, francês, inglês, italiano, russo e o chinês.

Euclides iniciou sua formação política no momento da crise final do Império. Foi na Escola Militar onde deu seu primeiro aceno à política. Lá, demonstrou o seu repúdio ao Antigo Regime, que o levou à instauração de um processo de expulsão, terminada em uma solução negociada, mas sem evitar o desligamento da instituição.

A grande expansão cafeeira nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e a modernização econômica das duas últimas décadas da monarquia, acabou constituindo uma sociedade na qual a estrutura imperial não mais conseguia dar respostas. Jovens, como Euclides, procuraram no positivismo de Auguste Comte uma solução para edificar o projeto nacional republicano. Porém, paradoxalmente, para chegar ao governo não imaginavam formas democráticas, mas um verdadeiro assalto ao poder. Daí a aliança entre os jovens militares e a burguesia cafeeira paulista, o que levará ao 15 de novembro de 1889 e à derrocada da velha ordem monárquica.

Com o novo regime, Euclides retorna à Escola Militar. Formado, participa da defesa da capital federal quando da Revolta da Armada, deixando registrados esses momentos no também clássico Contrastes e confrontos. O retrato que traça de Floriano Peixoto é de extrema severidade: cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar - porque se lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um país, sem avançar - porque era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado superior das suas tradições. Neste momento, Euclides era um descrente das soluções militaristas e do abandono das formas democráticas. Identificou no Marechal de Ferro a velha raiz ibérica do caudilhismo, do poder da força que se sobrepõe ao livre debate, da negação do consenso pelo diálogo entre adversários, enfim, da negação da construção do que hoje chamamos de cidadania.

A desilusão com os rumos da República levou o jovem militar a pedir o desligamento do Exército Nacional. Vai para São Paulo, onde tem amigos desde os tempos da propaganda republicana, passando a trabalhar para o governo estadual e colaborando de forma mais assídua em O Estado de S. Paulo, jornal do seu amigo Júlio de Mesquita. É de São Paulo e da amizade com Mesquita que levou o escritor fluminense a acompanhar o Marechal Carlos Machado Bittencourt, ministro da Guerra, na viagem à Bahia e depois para Monte Santo, principal base de operações na guerra contra Canudos. A guerra já tinha chamado a atenção de Euclides na derrota da terceira expedição, comandada pelo coronel Antônio Moreira César, morto em combate. Dias depois de receber a notícia, Euclides escreve A Nossa Vendéia, em que analisa os reflexos políticos do desastre sofrido pelo Exército.

Ao embarcar para Salvador, segue com o firme propósito de escrever um livro contando a guerra. Lá chegando, escreve diversos artigos e telegramas, os quais vão sendo publicados pelo O Estado de S. Paulo.

Quando analisados comparativamente com outros artigos publicados na imprensa carioca - afinal, foram deslocados dez jornalistas para cobrir in loco os combates -, Euclides não se destacou como um jornalista perspicaz, segundo os padrões da época, basta compará-lo, por exemplo, com Manuel Benício, correspondente do Jornal do Commercio, e que dois anos após o final da guerra publicou o livro O Rei dos Jagunços, obra republicada na coleção Memória Brasileira, do Senado Federal, cujo Conselho Editorial tenho a honra de presidir. Mas hoje, lendo as reportagens, com mais de cem anos de intervalo, vemos quão arguto era Euclides, nunca satisfeito com as explicações superficiais, procurando sempre, de forma incessante, as razões estruturais do conflito, não perdendo-se no episódico.

As reportagens foram publicadas em livro somente em 1939, pela editora José Olympio, na coleção Documentos Brasileiros, com prefácio de Gilberto Freyre. Muitos leram, neste momento, pela primeira vez, as reportagens, tendo em vista que O Estado de S. Paulo, em 1897, era um jornal que restringia sua área de influência ao território paulista, pois os jornais cariocas é que formavam a consciência política da Nação. Contudo, quando hoje lemos o Diário de uma expedição - denominação dada às reportagens, ficamos com a nítida impressão de que lá já estava o grande escritor, revelado somente em 1902.

Quando retorna da Bahia para São Paulo, com a saúde debilitada pelas dificuldades encontradas na região conflagrada, Euclides foi transferido pelo governo estadual para São José do Rio Pardo, logo no início de 1898. Foi nesta cidade, onde acabou formando um seleto grupo de amigos, que escreveu a sua obra-prima. Nos três anos de permanência nesta cidade, esteve encarregado da construção da ponte sobre o rio Pardo, muito importante para a economia da região, pois estabelecia a ligação com o sul de Minas Gerais. Foi entre os afazeres da construção da ponte que Euclides foi redigindo Os Sertões. Após concluir o livro vingador, como chamou sua obra, foi transferido para São Carlos, meses depois para Lorena, no Vale do Paraíba.

Foi nesta última cidade que recebe as notícias sobre Os Sertões. O primeiro comentário foi do célebre José Veríssimo, para muitos, o maior crítico literário à época. Para Veríssimo, a obra de Euclides é ao mesmo tempo o livro de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato do homem, e estremece todo, tocado até o fundo da alma, comovido até às lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as secas que assolam os sertões do norte brasileiro, venha da estupidez ou maldade dos homens, como a campanha de Canudos.

Entre o fim da guerra e a publicação de Os Sertões, foram editados vários livros que trataram da guerra, desde relatos militares até romances. Mas foi somente com Os Sertões que a guerra de Canudos acabou entrando definitivamente na História do Brasil e sendo conhecida mundialmente. Para muitos estudiosos, a permanência do debate histórico sobre a guerra de Canudos é devida fundamentalmente à relevância adquirida por este acontecimento graças a Os Sertões.

Euclides da Cunha não foi o escritor de uma só obra. Já lembramos de Contrastes e confrontos, também deve ser recordado Peru versus Bolívia, À margem da História, além dos textos sobre a Amazônia, do livro que acabou não completando, e dos diversos artigos em jornais.

Aos 43 anos, no auge do sucesso e do reconhecimento literário, Euclides morre tragicamente a 15 de agosto de 1909, no Rio de Janeiro. Ao contrário do que muitos imaginavam, a significação e a importância de Os Sertões para a literatura brasileira e universal não deixou de crescer.

Cem anos depois temos a certeza de que Euclides acabou produzindo uma espécie de síntese do Brasil, com suas diferenças sociais, regionais e econômicas; seus dilemas em enfrentar situações de tensão social e as dificuldades do Estado de levar para todo o País suas instituições, mesmo hoje, mais de um século depois da tragédia de Canudos.

O que fica para nós, brasileiros deste século XXI, depois de uma leitura de Os Sertões, é a lição de brasilidade e da necessidade de construirmos uma firme sociedade democrática que consiga não só enfrentar os desafios sociais, como também conviver democraticamente com as diferenças entre o litoral e o sertão, entre o norte e o sul do País, entre brancos e negros, entre diversas formas de viver a religiosidade. E isso aprendemos na leitura de Os Sertões, livro crítico, é verdade, mas profundamente esperançoso do futuro deste nosso Brasil.

Era o que tinha a dizer.

Muito obrigado.


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/05/2002 - Página 8799