Discurso durante a 68ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, pelo transcurso dos 50 anos de sua fundação.

Autor
Ronaldo Cunha Lima (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/PB)
Nome completo: Ronaldo José da Cunha Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, pelo transcurso dos 50 anos de sua fundação.
Publicação
Publicação no DSF de 24/05/2002 - Página 8996
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CINQUENTENARIO, ANIVERSARIO DE FUNDAÇÃO, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), ELOGIO, ASSISTENCIA SOCIAL, ESFORÇO, MELHORIA, DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, REDUÇÃO, DESIGUALDADE REGIONAL, BENEFICIO, JUSTIÇA SOCIAL.
  • HOMENAGEM POSTUMA, HELDER CAMARA, ARCEBISPO, ELOGIO, VIDA PUBLICA.

O SR. RONALDO CUNHA LIMA (Bloco/PSDB - PB) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, a celebração dos 50 anos de existência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil extrapola, em muito, as fronteiras da religião: estende muito além de seus templos e edifícios e envolve muito mais que o universo dos católicos brasileiros, pois, afinal, mais que um colegiado episcopal, a CNBB se confunde, no Brasil, com a defesa da justiça em sua dimensão mais genuinamente evangélica e com a construção da cidadania em sua abrangência mais libertadora.

Ninguém, dentre todos os cristãos, desconhecerá a função até profética da CNBB na construção e consolidação da colegialidade dos bispos, que entre nós começou, pioneiramente, mais de dez anos antes que o Concílio Vaticano II a preconizasse para todo o mundo. Ninguém desconhecerá o trabalho quase inacreditável da CNBB na aprovação de diretrizes gerais de ação evangelizadora que serve para o planejamento pastoral de cada uma das 264 dioceses do Brasil.

Que outra Conferência, em todo o mundo, tem naturalmente exercido um tal papel unificador de práticas e de mensagens, de postura e de abordagens do mundo e de seus problemas, em países de tal diversidade socioreligiosa como o Brasil? Que outra Conferência, em todo o mundo, tem conseguido levar o planejamento e a pastoral orgânica a um país de dimensões continentais como o Brasil? Que outra, em todo o mundo, tem dado exemplos mais eloqüentes de unidade na pluralidade e de tolerância com o contraditório?

Independentemente de sua crença e fé, ninguém no Brasil ousará desconhecer ou minimizar o papel e a importância da CNBB na luta pela cidadania no Brasil. Por inspiração da CNBB, nenhuma outra instituição mais que a Igreja Católica emprestou aos brasileiros sua voz quando o obscurantismo político a muitos perseguia, a outros tantos silenciava e a quase todos aterrorizava. Mais que emprestar a voz, a Igreja franqueou seus púlpitos e escancarou seus templos e sacristias, que, em alguma época, se tornaram os menos inseguros dos refúgios contra a arbitrariedade das prisões e o risco da tortura.

A mesma convicção evangélica de que o livre arbítrio que preside as ações e a absoluta individualidade de cada homem não é dádiva de regimes ou de governos, mas é intrínseco à dignidade do homem, imagem e semelhança do Criador, une e motiva padres e bispos em tantas cidades do Brasil. Respeitar o livre arbítrio, com todos os desdobramentos inevitáveis dessa postura, é indispensável à convivência harmônica do homem e dos povos, das civilizações e da história: é a base do que se entende como tolerância; é o fundamento do que imaginamos como civilização.

Nos momentos mais duros de nossa história recente, a Igreja não cuidou apenas de fiéis; preocupou-se com o homem, imagem e semelhança de Deus, sua criatura e filho, qualquer que fosse sua fé, não importando sua ideologia.

Quantas lutas sociais se organizaram, quantos sindicatos se fortaleceram nas sacristias católicas das igrejas de São Paulo e do ABC paulista, para citar apenas os episódios mais conhecidos de nossa história recente? Como desvincular da Igreja Católica e, por extensão, da própria CNBB, a luta pela terra, a defesa do índio e a opção preferencial pelos pobres? Como desvincular da Igreja Católica e, por absoluta justiça, da própria CNBB, a luta contra a tortura no Brasil? Como dissociar da Igreja e da CNBB todo o clamor nacional contra a injustiça social, contra a violência de estruturas de opressão e de conjunturas de dominação?

Permitam-me evocar dois momentos que hoje já pertencem à história, mas nem por isso podem estar menos presentes na memória do Brasil. Permitam-me evocar Dom Hélder Câmara, idealizador e primeiro secretário-geral da CNBB, uma figura quase mítica de poeta da esperança, mas sobretudo profeta da fé. Permitam-me lembrá-lo na sua figura miúda e franzina que, espantosamente, guardava a força moral de gigantes e a coragem de heróis, em sua marcha à frente do cortejo fúnebre do padre Antônio Henrique, no Recife. Padre Henrique foi torturado e morto por quem perseguia a Igreja, por quem queria atingir o próprio Arcebispo, mas temia o desencadear da ira nacional e da revolta universal. Quem desconhece que, sem a corajosa serenidade de dom Hélder, à frente da procissão fúnebre, Recife poderia ter assistido a uma tragédia social de dimensões impensáveis?

Permitam-me, mais ainda, evocar a figura emblemática de Dom Paulo Evaristo, na noite em que o Brasil se concentrou na Catedral de São Paulo para chorar a morte do jornalista Vladimir Herzog. Só os pastores muito diligentes, só os muito heróicos, ou apenas os santos com a bravura que lhes concede a fé, só a esses se reservam a coragem e o destemor com que dom Paulo, mitra e báculo à mão, ainda com os paramentos da celebração ecumênica, comandou a dispersão de uma multidão de oprimidos, diante do cerco de tropas da repressão. Quem desconhece que, sem a providencial intervenção de dom Paulo, poderia ter havido um massacre com dimensões de um genocídio?

Quantos homens, quantos nomes, quantos bispos, quantos riscos se poderiam hoje evocar, nessa festiva celebração dos 50 anos da CNBB, e todos com reconhecida contribuição à história da Igreja, mas também à História do Brasil? E aí se evidencia toda a riqueza de uma Conferência Episcopal que soube, como poucas, entender o momento histórico de desafios ingentes e urgentes do Brasil e, como raras, soube entender que a religião não pode restringir-se apenas a uma ponte individual com o Eterno, mas funciona, sobretudo, como hipoteca irresgatável da cidadania mais solidária. Quantos nomes, enfim, a evocar e celebrar? Centenas, talvez; dezenas, com certeza. Alguns absolutamente inesquecíveis e inevitáveis-- e neles se homenageiam a coragem e a fé, o amor e a esperança...

Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Aloísio Lorscheider, dom Ivo Lorscheider, dom Pedro Casaldáliga, dom Mauro Moretti, dom Luciano Mendes... Muitos perseguidos, como Dom José Maria Pires, outros até presos, como dom Marcelo Carvalheira, estes dois últimos levados pela graça de Deus a ecoar em nossa Paraíba um mesmo sinal de apóstolos e de cristãos: a luta contra a injustiça e a desigualdade, o grito de amor em defesa sobretudo dos mais pobres, como pregoeiros de uma espiritualidade que inspire os fundamentos éticos da dignidade do homem e legitime sua responsabilidade social.

A CNBB, como poucas, parece haver resolvido, em sua colegialidade, um grave desafio de todas as igrejas: o estabelecimento de um meio-termo teologicamente correto, eticamente aceitável entre o engajamento político ou social das religiões e dos religiosos, que muitos defendem, e o absoluto distanciamento, quase alheamento das questões terrenas, sejam quais forem. As religiões, afinal, funcionam como ponte entre criatura e Criador, mas as criaturas não são apenas alma e espírito, têm uma dimensão humana e ter a visão histórica da CNBB, que não seja apenas pessoal em sua dimensão, mas que seja ainda social em suas preocupações. Uma ética não apenas entre pessoas, mas também entre povos e nações.

Afinal, é inevitável questionar a postura das religiões, de todas as religiões, quando países desenvolvidos se usurpam o direito de impor aos pobres normas escorchantes de comércio, ou os transformam em lixões de produtos químicos e tóxicos que eles próprios condenam e proíbem em seus territórios. É inevitável questionar a postura das religiões, de todas as religiões, quando os direitos mais elementares do homem se transformam em meros insumos de produção.

Nesse momento histórico de graves transformações sociais, econômicas e políticas em escala universal, é inevitável relembrar o profeta Hélder Câmara, com sua pregação questionadora. Ensinava Dom Hélder, com a antevisão dos santos e dos sábios, que é preciso permear de ética a ordem econômica internacional que globaliza mercados e meios de produção e transforma o homem em mero insumo econômico, reduzindo sua dignidade a um item secundário de planilha de custos. É preciso, mais ainda, insurgir-se contra a violência da ordem econômica, que escraviza países, que oprime continentes inteiros, esmagando-os com o peso de interesses nem sempre explícitos, mas freqüentemente perversos. Tal violência estrutural e econômica às vezes, é verdade, pode até nem provocar guerras, em suas formas mais conhecidas, mas com certeza espalha os mesmos rastros de destruição e extermínio de homens e de culturas.

O que hoje todos exigimos já era o clamor de dom Hélder há mais de 20 anos. Bendito Dom Hélder!

A comemoração dos primeiros 50 anos da CNBB nos traz a todos a absoluta certeza de que a instituição já não pertence apenas aos católicos e à Igreja, a seus bispos e às estruturas eclesiásticas. A CNBB pertence ao Brasil, faz parte de nossa história. E com suas diretrizes e reflexões, com seus ensinamentos e ações, com seu clamor de justiça e sua pregação da igualdade, com certeza ajudará o Brasil a plantar bases muito mais sólidas de um futuro com mais dignidade e justiça. E a dignidade e a justiça são exigências novas e cada vez mais consistentes da ética individual e social, que deverá permear o futuro de nossos sonhos e de nossas esperanças.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/05/2002 - Página 8996