Discurso durante a 75ª Sessão Deliberativa Extraordinária, no Senado Federal

Centenário do romance Canaã, do escritor Graça Aranha, que relata a luta de imigrantes europeus no Estado do Espírito Santo.

Autor
Ricardo Santos (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/ES)
Nome completo: Ricardo Ferreira Santos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Centenário do romance Canaã, do escritor Graça Aranha, que relata a luta de imigrantes europeus no Estado do Espírito Santo.
Publicação
Publicação no DSF de 04/06/2002 - Página 10240
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, CENTENARIO, OBRA LITERARIA, AUTORIA, JOSE PEREIRA DA GRAÇA ARANHA, ESCRITOR, DIPLOMATA, ESTADO DO MARANHÃO (MA), DESCRIÇÃO, LUTA, IMIGRANTE, EUROPA, FIXAÇÃO, TERRAS, BRASIL, ESPECIFICAÇÃO, ESTADO DO ESPIRITO SANTO (ES).

  SENADO FEDERAL SF -

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O SR. RICARDO SANTOS (Bloco/PSDB - ES. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, hoje, neste final de sessão do dia 3 de junho, quero ter a oportunidade de falar sobre um tema bem mais ameno, a obra-prima Canaã, do diplomata maranhense José Pereira da Graça Aranha, a qual está completando, neste ano, seu centenário.

Cabe-nos desta tribuna, portanto, prestar a nossa homenagem e reconhecimento à memória do autor em razão de sua importante contribuição à cultura brasileira e de o território capixaba - mais particularmente a região de Santa Leopoldina - ter sido o berço de seu grande romance.

Sobre a contribuição de Graça Aranha ao modernismo literário, no Brasil, destacaríamos o comentário do jornal O Globo, de 30 de março próximo passado: “O livro dividiu, com Os Sertões (do carioca Euclides da Cunha), editado oito meses depois, a notoriedade de iniciar as mudanças na cultura do País, sacudida de vez com a mostra de quadros de Anita Malfatti, em 1917, e a Semana de Arte Moderna de 1922”.

Para melhor compreendermos o ambiente local onde se desenrola o notório livro de Graça Aranha em terras capixabas, precisamos voltar na história, para fins do século XIX, que marca, de forma indelével, a fase da ocupação do solo e da expansão da cafeicultura no Espírito Santo.

Vamos, então, retornar a essa época, talvez um pouco antes da imigração européia, quando a economia colonial brasileira estruturava-se na produção de açúcar para exportação, em grandes fazendas escravistas.

Registram-se poucas marcas dessa época colonial no Espírito Santo; um ou outro engenho, de pequena expressão econômica, na faixa litoral sul e produção de subsistência, com base na mandioca e no milho. A pequena população (24 mil habitantes, em 1818) e a estagnação econômica dominavam o território capixaba. Mata Atlântica fechada, populações indígenas a defender seus domínios, relevo mais suave para o litoral e excessivamente acidentado em todo o interior constituíam-se em sérios obstáculos à colonização do solo.

Somente com a introdução do café, iniciada pelo sul do Estado, com mão-de-obra escrava em grandes fazendas, e, depois expandindo-se para a província da Capital, Vitória, em pequenas propriedades, desta feita com as “colônias”, distribuídas aos imigrantes europeus, contrastando com as grandes fazendas do sul, deu-se o início efetivo da colonização do solo espírito-santense.

A imigração européia, com o fim do tráfico de escravos, e apesar da resistência inicial dos grandes fazendeiros do sul, foi seguramente a grande indutora do processo de colonização a partir da região serrana central em direção à margem sul do rio Doce.

Basta dizer que, antes mesmo de findo o tráfico de escravos, foram fundadas a colônia açoriana de Santo Agostinho e, pouco depois, em 1847, a colônia de Santa Isabel, constituída por 165 imigrantes de origem alemã, situadas no hoje denominado Município de Domingos Martins. Posteriormente, outros núcleos de colonização surgiram, dentre os quais a colônia de Santa Leopoldina, fundada em 1856 por 140 suíços, agregando-se a ela, logo depois, imigrantes alemães e pomeranos, que ocuparam o interior em direção à região hoje de domínio do Município de Santa Maria de Jetibá. Os imigrantes europeus que desembarcavam em Vitória subiam em canoas o rio Santa Maria da Vitória até Santa Leopoldina, partindo rumo a Santa Teresa, onde se fixou uma colônia de imigrantes italianos, de grande importância para o início da colonização da bacia do rio Santa Maria do rio Doce, pertencente à vasta área geográfica do rio Doce. Toda essa região recebia influência da colônia de Santa Leopoldina. Nesse avanço para o interior, os imigrantes europeus se submetiam a dificuldades de toda sorte: terras íngremes, de solos pouco férteis, sérios problemas de transportes - a partir do porto de Santa Leopoldina transitava-se a pé ou em lombos de muares - mercado de difícil acesso, ofídios, doenças tropicais, abrigos e habitações improvisadas, muitas delas sob rochas, aproveitando-se as formações naturais da região.

Apesar dos percalços e das dificuldades, a região de influência de Santa Leopoldina era, no ano de 1884, a mais importante de todas, transformando-se a colônia, pelo seu porte, no principal centro dinâmico do interior, tanto pelo comércio de café, que descia o rio em canoas rumo ao porto de Vitória, como pelo suprimento de alguns gêneros alimentícios, tecidos e remédios, que subiam as montanhas rumo às outras colônias da região, em tropas de burros.

É das relações sociais forjadas nesse ambiente que Graça Aranha colhe as informações para seu livro Canaã, desenvolvendo a história de Milkau, um imigrante alemão - tendo como eixo central fatos por ele vividos e presenciados quando ocupa o cargo de juiz de direito, na sua juventude, na colônia de Santa Leolpoldina, em 1891. Descrição viva das lutas do imigrante alemão para se fixar em terras brasileiras, o romance denuncia as extorsões praticadas pelos poderosos, os preconceitos e o racismo.

Milkau, recém-chegado à cidade de Vitória, começa a observar, no trajeto de barco até Santa Leopoldina, passando por Cariacica, o desamparo dos habitantes de província. Já na colônia, é apresentado a outro imigrante alemão, Lenz, com quem analisa a paisagem e a raça brasileiras. Milkau pensa encontrar no Brasil a terra prometida - para ele a síntese do rejuvenescimento da civilização, a partir do processo de mistura dos povos, que promove o progresso. Em contraste, Lenz representa o colonizador que acredita na superioridade alemã sobre a mestiçagem nativa, condenada a viver sob a dominação dos povos mais fortes.

No desenrolar da história, Milkau trava conhecimento com a jovem Maria Peruz, assim como ele, colona, mas de origem italiana. Órfã de pai e, depois, de mãe, Maria trabalha em casa do velho amigo de sua genitora, Kraus, que, ao morrer, deixa a jovem sob os cuidados da esposa de seu filho. Porém, temendo uma aproximação amorosa entre Maria e Moritz, neto de Kraus, e por desejar o casamento dele com a rica Emília Schenker, o enviam para longe. Mas Moritz e Maria já eram amantes e ela está grávida.

Passando por toda sorte de humilhações morais e maus tratos físicos, Maria abandona a casa e procura emprego numa estalagem. Milkau, ao saber do drama de Maria, prontifica-se a ajudá-la e arruma-lhe um local para trabalhar na roça, em uma propriedade de conhecidos. Um dia, no cafezal, sente as dores do parto e dá à luz a um bebê, que é mordido por porcos que rondavam as proximidades, vindo a falecer. A filha dos patrões chega na hora e, sem maiores esclarecimentos, acusa Maria de infanticídio. Dias depois, Maria é presa.

A população germânica, horrorizada com o crime, quer que Maria seja exemplarmente punida. Milkau a encontra na cadeia e passa a acompanhar seu julgamento. O imigrante e o juiz aproveitam para discorrer acerca da justiça brasileira. Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela, buscando o vale do Canaã, a terra onde os homens viveriam em harmonia.

Finalizado em Londres, quando Graça Aranha aí desempenhava o ofício de diplomata, o romance leva em conta os argumentos da defesa de Guilhermina Lübk, a verdadeira Maria, a quem Graça Aranha interrogou e deu ordem de prisão. Assim, ele se expressa: “e quando tive de escrever Canaã, o meu amor reabilitava a vítima, que talvez esteja em alguma prisão, pagando um crime que minha emoção declara hoje inocente”.

A obra, que os críticos brasileiros classificam entre o naturalismo e o simbolismo, causou entusiasmo no Rio de Janeiro, fazendo de Graça Aranha um intelectual respeitado em todo o País.

Traduzido para o espanhol, francês, italiano e inglês, o romance Canaã - primeiro best seller do mercado nacional - é considerado, nas palavras do crítico italiano da época, Gugliemo Ferrero, o “romance da América”. A luta entre o velho Brasil e os imigrantes é o drama de toda a América, neste momento histórico, quando a América se vai europeizando e a Europa, americanizando”.

José Pereira da Graça Aranha, advogado maranhense formado no Recife, foi Juiz de Direito em Santa Leopoldina, por três meses. Em 1897, entrou para a Academia Brasileira de Letras, antes mesmo de publicar qualquer livro, por insistência de seu fundador, Machado de Assis, e de Joaquim Nabuco. Em 1900, ingressa no Itamaraty, seguindo uma carreira de 20 anos na Europa, de onde retorna em 1921. Volta desejoso de interferir na renovação artística e social de seu País. Na Semana de Arte Moderna de 1922, a Graça Aranha caberia um papel fundamental, ao romper com o formalismo da Academia, condenando a imobilidade da literatura oficial. Deixa, por fim, a agremiação em 1924, proferindo o discurso intitulado “O Espírito Moderno”. Graça Aranha venceu essa batalha, ao se constatar que o modernismo se instalara definitivamente no cenário literário brasileiro.

Sras e Srs. Senadores, ao reconhecer a genial contribuição de Graça Aranha ao conhecimento mais profundo de nosso País, permitindo sua redescoberta, a ele rendemos nossa gratidão como um tributo à sua memória. Como espírito-santenses, agradecemos ao grande literato a obra-prima escrita durante sua passagem por terras capixabas, onde pôde vivenciar e refletir, na visão de um juiz do interior, uma fase da saga dos imigrantes europeus que se concentraram na região central do Espírito Santo, próxima à capital, no final do século retrasado e início do século passado.

A obra leva o nome de um belíssimo vale situado na região montanhosa do Estado - entre os Municípios de Santa Leopoldina e Santa Teresa -, imortalizado no grande romance de Graça Aranha.

Muito obrigado, Sr. Presidente.

 


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/06/2002 - Página 10240