Pronunciamento de Geraldo Melo em 14/06/2002
Discurso durante a 88ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal
Comentários ao discurso do Senador Lauro Campos a respeito do fracasso do socialismo.
- Autor
- Geraldo Melo (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RN)
- Nome completo: Geraldo José da Câmara Ferreira de Melo
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.:
- Comentários ao discurso do Senador Lauro Campos a respeito do fracasso do socialismo.
- Aparteantes
- José Fogaça, Lauro Campos, Romero Jucá.
- Publicação
- Publicação no DSF de 15/06/2002 - Página 12078
- Assunto
- Outros > POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.
- Indexação
-
- ELOGIO, DISCURSO, AUTORIA, LAURO CAMPOS, SENADOR, ANALISE, HISTORIA, CAPITALISMO.
- ANALISE, INSUCESSO, SOCIALISMO, COMENTARIO, POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA, PAIS ESTRANGEIRO, CUBA, ALTERAÇÃO, APROPRIAÇÃO, TRABALHO, EXERCICIO, ESTADO, TRABALHADOR.
- ANALISE, EFEITO, CAPITALISMO, POSTERIORIDADE, EXPECTATIVA, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA, AMBITO INTERNACIONAL.
SENADO FEDERAL SF -
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O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não era meu propósito ocupar a tribuna na manhã de hoje, mas, ouvindo com a atenção e o respeito com que sempre ouço o nosso professor e colega Senador Lauro Campos, senti-me instigado a trazer algumas reflexões que as sessões de sexta-feira, de certa forma, encorajam, até por entender que o Senador Lauro Campos talvez seja, dos quadros políticos do Brasil de hoje, uma das poucas pessoas que, além do preparo e do enorme cabedal de conhecimentos sobre esse assunto, tem revelado, ao longo da sua vida e no exercício do seu mandato, a sensibilidade para perceber e analisar as grandes questões da Humanidade, hoje.
O discurso de S. Exª, como sempre, contém uma crítica ácida, enérgica, severa e cirúrgica ao formato que assumiu o capitalismo ao longo da História e às manifestações de seus interesses nos dias de hoje.
De uma coisa, Senador Lauro Campo, fique certo que temos em comum: o sonho de ver um mundo em que a Humanidade inteira tenha o direito e as esperanças reais, fundadas em possibilidades concretas de viver melhor.
Penso que a grande sociedade, que poderá um dia surgir, será aquela em que simplesmente o homem possa de fato amar o próximo como a si mesmo e acho que isso não acontecerá enquanto o homem e seu próximo disputarem o mesmo pedaço de pão. Enquanto não houver pão suficiente para todos, essa postura cristã, que geraria um mundo de paz, harmonia e fraternidade, será difícil de ser encontrada no dia-a-dia de todos nós. Acredito que nós dois, como a maioria dos que têm assento nesta Casa, desejaríamos ver um mundo assim.
O processo de busca desse tipo de mundo colocou diante da Humanidade, dos estadistas e das sociedades, claramente, a partir do início do século passado, em termos já materiais de organização da sociedade, dois caminhos que, na verdade, eram duas tentativas de construção desse sonho.
A experiência socialista, que quase levou o mundo a uma hecatombe nuclear, foi fundada no sonho mais alto que se já se sonhou: o de se construir uma sociedade em que todos tenham direito de receber aquilo que necessitam e o dever de oferecer tudo que possam, de acordo com suas possibilidades.
Na realidade, esse sonho animou as mais importantes experiências que a Humanidade fez, inclusive no plano político, no século XX. Infelizmente, elas fracassaram no plano operacional. A utopia socialista, na alma das pessoas de boa vontade, de boa fé e que, sinceramente, desejam que o mundo seja melhor, está intacta. Apenas a experiência humana demonstrou que esse é um sonho que não sabemos como realizar.
Visitei, em algumas oportunidades, alguns países socialistas. E foi o contato direto com a sua realidade que comprometeu, em mim, algumas das convicções mais nobres que pensava ter na minha juventude - as experiências de visitar a Hungria após a primeira, e talvez única, contra-revolução havida dentro de um regime socialista e a de conviver, durante duas semanas, com a mais clara e mais absoluta manifestação de supressão da liberdade.
Recentemente, visitei Cuba, Senador Lauro Campos, onde encontrei uma forma nova, inesperada mas muito clara e de mais valia, de prática do Estado contra os trabalhadores. Vou dizer a V. Exª, com clareza, o que vi.
Visitei uma fábrica de cigarros - não de charutos - que é uma joint venture do governo cubano com uma empresa oriunda do Brasil, que é a Souza Cruz. Lá, apresentado à diretoria dessa empresa, fiquei sabendo como se paga os salários dos trabalhadores e dos diretores. O pagamento é feito ao Estado. Como se trata de uma empresa exportadora, geradora de divisas, ela tem o dever legal de pagar ao Estado em dólares norte-americanos, que hoje circulam livremente no país, embora muita gente tenha ido ao paredão porque tinha um dólar no bolso. Fiquei sabendo que, ao pagar a remuneração de uma diretora, remuneração essa estimada em 400 pesos, a empresa paga ao governo cubano em dólares, pelo câmbio oficial, que é - pasmem - de um dólar para um peso. A relação oficial, a taxa de câmbio oficial para fins de operações oficiais, é de um dólar equivalente a um peso cubano. Então, por isso, ao pagar ao governo o salário daquela senhora, cujo contrato é celebrado com o Ministério da Agricultura - e a empresa indeniza o Ministério da Agricultura -, se aquela senhora ganha 400 pesos, a empresa deve pagar ao governo cubano 400 dólares. Estes 400 dólares são entregues ao governo, que entrega àquela senhora os 400 pesos. Só que, na verdade, quando entregues a essa senhora esses pesos, não vão circular pelo câmbio das transações oficiais, mas pelo câmbio que se pratica no país, normalmente, que é de 10 pesos para um dólar. De maneira que o governo cubano cobra, por conta do trabalho daquela senhora, daquela trabalhadora, 400 dólares. Ou seja, ela produz para o seu patrão, que é o Estado cubano, 400 dólares com o seu trabalho, e recebe, pelo seu trabalho, 40 dólares. Porque, ao receber 400 pesos, que valem 10 para um - que valem, portanto, 10 centavos de dólar -, ela está recebendo apenas 40 dólares.
De fato, este é um novo formato da mais valia. Acho que nenhum empresário capitalista do mundo, até hoje, teve peito para lançar mão da mais valia com semelhante avidez.
O Sr. Romero Jucá (Bloco/PSDB - RR) - Permite-me V. Exª um aparte?
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Concedo o aparte ao Senador Romero Jucá.
O Sr. Romero Jucá (Bloco/PSDB - RR) - Senador Geraldo Melo, não poderia deixar de apartear V. Exª para registrar a minha felicidade de poder ter assistido, na manhã de hoje, a um debate de alto nível propiciado por V. Exª e pelo Senador Lauro Campos. Sem dúvida alguma, é isto o que temos pregado no Senado: que o debate se eleve na disputa eleitoral para que, efetivamente, os rumos da economia e da sociedade brasileira possam ser discutidos em altíssimo nível, esclarecendo a população. Debate como esse não é só importante para o mercado internacional, não, o mercado internacional é corolário nesta questão. Ele é importante para a sociedade brasileira, que pagará o preço de uma mudança desastrada, como a que ocorreu na Argentina. Quero registrar uma ingratidão da Oposição: com o discurso de V. Exª, ficamos sabendo da paridade um peso/um dólar, em Cuba. Provavelmente, Gustavo Franco deve ter se inspirado no governo cubano. A Esquerda brasileira sempre bateu nisso e nunca reconheceu esse gesto de boa vontade, de identidade política do economista, agora brasileiro-cubano, Gustavo Franco, que estabeleceu a paridade. Mudamos e avançamos. E, infelizmente, Cuba continua teimando no modelo Gustavo Franco. Realmente fiquei feliz em assistir a um debate de altíssimo nível. Espero a réplica do Senador Lauro Campos. Entendo que é assim que vamos avançar no debate político em nosso País. Meus parabéns pelo discurso.
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Senador Romero Jucá, muito obrigado pelo seu aparte, como sempre, generoso e muito bem humorado.
O Sr. Lauro Campos (PDT - DF) - Permite-me V. Exª um aparte?
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Ouço V. Exª, como sempre, com todo o prazer, embora, como já lhe antecipei, esses são apenas os fundamentos da colocação que farei. O que desejo é lhe entregar um tipo de formulação, sobre a qual já lhe falei, à qual gostaria, esta sim, de receber sua crítica.
O S. Lauro Campos (PDT - DF) - Sigo seu conselho e aguardo a oportunidade de aparteá-lo.
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Muito obrigado, Senador.
O Sr. José Fogaça (Bloco/PPS - RS) - Permite-me V. Exª um aparte, nobre Senador Geraldo Melo?
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Ouço o aparte do nobre Senador José Fogaça, com muita honra.
O Sr. José Fogaça (Bloco/PPS - RS) - Senador Geraldo Melo, como a intervenção que pretendo fazer é exatamente sobre este fundamento, eu creio que este seria o momento para aparteá-lo. Portanto, agradeço a V. Exª. Eu também já estive em Cuba e reforço a afirmação de V. Exª: é rigorosamente verdadeira a afirmação da paridade do dólar. Inclusive também é verdadeira a afirmação de que a economia cubana é uma economia dolarizada.
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Eu não tive o prazer de ver a moeda cubana enquanto estive lá.
O Sr. José Fogaça (Bloco/PPS - RS) - Senador Geraldo Melo, embora ela tenha aceitação fluente, ela não é visível fisicamente. Mas, do ponto de vista legal, o país é dolarizado, tal como o Equador, tal como El Salvador e outros países que já oficializaram o dólar como moeda, que vigora paralelamente. Apenas para fazer, talvez, uma pequena observação, que é uma variante, talvez possa ser até uma razoável objeção a uma conclusão apressada. Com 40 dólares, que equivaleria a 40 pesos, todo o cidadão cubano, consumidor, tem duas vias pelas quais ele pode ter acesso aos bens de consumo: a via por la libre, a via livre, que é o mercado chamado de câmbio livre; e a via por la libreta, pela caderneta, por onde o consumidor tem acesso a determinados bens de consumo com valores estabelecidos pela economia planificada. São preços pré-fixados pelo estado, são preços públicos para esses bens de consumo, e esses preços são geralmente muito baixos, como, por exemplo, o pagamento da luz elétrica ou o do aluguel, que geralmente não ultrapassam a um dólar. Além disso, o consumidor tem direito a um determinado volume de alimentos nos supermercados, aos quais só o cidadão detentor da libreta tem acesso, e ali ele paga também 2 ou 3 dólares. De modo que o salário padrão para um trabalhador cubano é de 25 pesos ou de 25 dólares. Portanto, esses 40 dólares que receberia essa senhora, contratada, essa trabalhadora, do ponto de vista da economia planificada e dentro da rigidez da economia planificada, não é um salário, digamos, menor do que o padrão estabelecido para os trabalhadores cubanos, em geral, que têm acesso, portanto, ao aluguel, têm acesso ao transporte pelo preço oficial. Mas, tudo que for além desse limite rigorosamente estabelecido pela libreta, tudo que for pela libre, aí, sim, os preços são os de mercado e, aí, este trabalhador cubano realmente se transforma num cidadão paupérrimo, numa pessoa absolutamente incapacitada do ponto de vista aquisitivo. Então, no momento em que vai gastar o dinheiro, ele é obrigado a viver em dois planos, em dois mundos: um, que é o mundo de la libre, e outro, que é o da libreta. Neste mundo da libreta, há rigorosos limites, os quais não pode extrapolar. Tem direito a tantos quilos de açúcar por mês, tantos quilos de arroz, tantos quilos...
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Tantos gramas.
O Sr. José Fogaça (Bloco/PPS - RS) - Tantos gramas por mês. E isso haverá, de certa forma, de quebrar um pouco a visão de mercado que se possa ter dos valores. Isso confunde muito uma avaliação mais direta e aprofundada, se comparada com valores capitalistas de um país como o Brasil. Isso não é uma objeção, mas apenas uma variante da análise que V. Exª está fazendo.
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Na análise que estou fazendo, o problema cubano foi citado apenas como uma ilustração em relação ao aspecto da forma nova que assumiu dentro da estrutura socialista a mais valia. A mais valia que constitui o elemento nuclear da crítica marxista ao processo capitalista assumiu, dentro de uma sociedade socialista, um formato novo. O exemplo que dei foi apenas para ilustrar essa afirmação. Embora deva dizer a V. Exª o seguinte...
O Sr. José Fogaça (Bloco/PPS - RS) - V. Exª quer dizer que se trata de um capitalismo de Estado, que o Estado desempenha o papel do capitalismo..
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Nem isso, Senador José Fogaça. Ao fazer referência ao salário de US$40 de uma trabalhadora, na verdade, não quis dizer que ela esteja numa faixa baixa de remuneração, não, porque ela está na mais alta faixa de remuneração. Trata-se de uma ex-Ministra cubana que exerce, hoje, o cargo de Diretora de uma empresa de capital cubano-brasileiro. Então, trata-se de um salário altíssimo. E, até onde apreendi, o salário mínimo do trabalhador cubano é de US$15, e não de US$25. São US$15 ou o seu equivalente em peso. Na verdade, porém, se nos detivermos na discussão do problema cubano, não conseguirei apresentar o que vim, de fato, discutir.
Eu dizia apenas que, entre as opções de realização do sonho de construir uma sociedade justa para a humanidade, convivemos já, no plano político, com Estados que operavam, como operam ainda hoje, segundo um marco de propriedade privada dos meios de produção e, ao mesmo tempo, com sociedades que operavam a partir de um outro marco, que era a propriedade coletiva dos meios de produção, em que o atendimento das necessidades humanas se fazia, em uma, segundo os ditames do mercado, em outra, segundo os ditames de um processo de planificação central. Por mais que o sonho socialista permaneça vivo e por mais que se deseje que haja no mundo uma sociedade justa como aquela que se sonhou e que foi a base, a inspiração da implantação de regimes socialistas no mundo, precisamos reconhecer que essas organizações fracassaram e foram a demonstração prática de que o sonho existe, mas nós ainda não sabemos como realizá-lo.
O ponto para onde eu desejava trazer essa discussão era o seguinte: é inegável que a sociedade humana deseja encontrar formas de organizar-se segundo um padrão de justiça, de harmonia nos níveis de distribuição de renda, em que haja um padrão de atendimento às necessidades fundamentais e de contribuição do cidadão às necessidades coletivas, que são as aspirações essenciais, que são as únicas que vão permitir que um dia todos os seres humanos possam amar ao próximo como a si mesmo.
Como eu dizia antes de V. Exª ingressar no recinto, eu não creio que isso seja possível enquanto eu disputar com o meu próximo o mesmo pedaço de pão. Terei dificuldade de amar a pessoa com quem disputo a minha sobrevivência, a minha vida no dia seguinte.
Os fundamentos do capitalismo, que foi objeto da crítica marxista, se referem a um tipo de capitalismo que não existe mais na face da terra. Por exemplo, a decisão de: onde produzir? O que produzir? Quanto produzir? E que, historicamente, na fundamentação de toda a análise marxista, eram decisões privativas do empresário capitalista, essas decisões, hoje, não são mais privativas de ninguém.
Veja-se, por exemplo, aquilo que Peter Dracker destaca em um dos seus livros recentes a respeito do capitalismo americano. Segundo ele, quase 70% do capital das grandes corporações americanas estão nas mãos de quem? De algum Rockfeller dos novos tempos? De algum Henry Ford dos novos tempos? Não! Estão nas mãos dos fundos de pensão. E os fundos de pensão, ao decidirem aportar dinheiro para este empreendimento e não aportar para aquele outro, estão decidindo o que vai ser produzido, quanto vai ser produzido, onde vai ser produzido. E quem decide? Algum Henry Ford? Algum Rockfeller? Algum Goldsmith? Não! Quem decide é um analista de investimento de um fundo de pensão. E quem é um analista? É um trabalhador!
Na realidade, decisões que afetam quase 70% do capital das grandes corporações americanas estão sendo tomadas, segundo o parecer de trabalhadores que são analistas de investimentos dos fundos de pensão, que, por sua vez, são os detentores de mais de 50% do passivo total das empresas americanas, o que significa que são também os grandes prestamistas, os grandes financiadores em substituição aos bancos.
No mínimo se pode dizer que o capitalismo de hoje precisaria encontrar um novo Marx, alguém que, tendo a mesma liberdade intelectual que ele teve, alguém que tendo a mesma dimensão genial que ele teve, a mesma capacidade de análise que ele tinha, pudesse interpretar as contradições internas do capitalismo de hoje, pois o capitalismo que Marx analisou não existe mais.
E é daí que vem a minha inquietação: que caminhos vamos percorrer no futuro? Que esperanças, que sinalização pode haver daqui para frente?
Penso, Senador Lauro Campos, em primeiro lugar, que a visão do processo que marcou toda a formação de todos nós que um dia tivemos maior intimidade e maior amor pelas esperanças socialistas, tudo isso se baseou numa contradição essencial: a contradição entre o capital e o trabalho, entre o empregador e o empregado. Essa contradição, entretanto, essencialmente, a partir do momento em que a decisão, que antes era privativa do capitalista, do empresário capitalista, do empregador, do capital, a partir do momento em que os limites que havia antes se tornaram difusos, diluíram-se pela nova realidade e pelo novo formato que assumiram as próprias atividades operacionais dentro do sistema produtivo, a partir desse instante, alguém vai ter que refletir sobre qual é a nova contradição. E talvez aí o conflito de interesses entre o empresário capitalista e o trabalhador vá se tornando a cada dia um conflito do passado.
Isso não quer dizer que possamos ignorar os tentáculos que o processo capitalista ainda tem, instilados dentro da estrutura. Mas essa é uma visão da tendência que se estabeleceu a partir da velocidade astronômica que assumiu o avanço tecnológico. E, então, aqui - o Sr. Presidente já me adverte quanto ao tempo, eu pediria apenas a sua paciência para me deixar concluir - chega a questão crucial. O avanço tecnológico introduziu o que seria talvez, na minha maneira de ver, o formato novo da mais-valia antiga. Ou seja, as tarefas que se realizam hoje podem ser realizadas numa fração muito pequena do tempo que se exigia do trabalhador antes para realizar a mesma tarefa.
Sabe, Senador Lauro Campos, sou filho de um antigo representante comercial no Rio Grande do Norte. O meu pai representava, entre outros, uma empresa da terra do Senador Fogaça, os fabricantes dos fogões Valig. E quanto tempo meu pai passava entre convencer o seu cliente a comprar um fogão, mandar o pedido para o Rio Grande do Sul pelos correios daqueles tempos - o que já exigia que fossem mandadas três cartas em dias diferentes para ver se uma chegava -, esperar a resposta, a confirmação do pedido, e esperar que esse bendito fogão chegasse à casa de um comerciante lá de Natal? Um mês, dois meses, três meses? Quanto tempo precisaria hoje o meu pai para fazer a mesma coisa? Dez minutos, entre falar ao telefone com seu cliente, mandar um fax para o Rio Grande do Sul e esperar um fax de resposta com a confirmação do pedido. E esse tempo que se ganhou entre a tarefa realizada pelo meu pai e a realizada por quem a esteja realizando hoje, essa diferença de tempo, esse tempo todo que se ganhou para onde foi? Porque quem estiver hoje realizando o trabalho do meu pai não está trabalhando dez minutos por dia, mas continua com o seu dia inteiro sendo utilizado.
O que estou querendo dizer é que o ganho de tempo que o avanço tecnológico permitiu transformou-se integralmente em aumento de produtividade. O sistema produtivo adquiriu a capacidade de se apropriar do ganho de tempo que a tecnologia oferece, e talvez aí esteja o núcleo da nova contradição: beneficiar-se integralmente o sistema produtivo do ganho de produtividade, ou parte desse ganho de tempo transferir-se para a vida das pessoas, sejam elas empregadas ou empregadoras, contanto que o processo de aumento da produtividade prossiga - e deve prosseguir -, mas quem sabe se não se poderia partilhar com o ser humano um pedacinho do tempo que o sistema produtivo está ganhando sozinho?
Eu tinha vontade, Senador Lauro Campos, de colocar essa questão desta tribuna um dia, que é uma forma de colocá-la ao nosso País, mas só servia colocá-la num momento assim, em que as excitações, as tensões, as emoções do cenário que estamos vivendo nessa fase pré-eleitoral não estivessem nem presentes, em que eu contasse com pessoas tão ilustres para me ouvir, e, dentre elas, por que não destacar, com justiça e sei que com a concordância de todos os colegas, alguém com a envergadura intelectual de V. Exª? Do mesmo modo que o seu discurso foi um momento instigante para mim, espero que isso que acabo de dizer... Não é uma afirmação, eu não me sinto com dimensão intelectual suficiente para afirmar nada com relação aos rumos que a humanidade deve seguir. Acho até que é um ato de coragem fazer isso em voz alta, pois não me sinto com a dimensão necessária para fazer semelhante provocação, mas tenho a ousadia de fazê-la. Acredito que é da soma dos pensamentos e inquietações de todos nós que haverá de resultar a descoberta de um caminho que a humanidade não descobriu até hoje, talvez na busca sincera de soluções que permitissem transformar a casa de todos num lugar seguro e tranqüilo, transformar a vida de todos num exercício de fraternidade, amizade e felicidade. Talvez - na busca de tudo isso erramos tanto ao longo de todos esses séculos -, quem sabe a luta da esquerda do passado abandone certos conceitos jurássicos e descubra caminhos novos; e se, pelo menos para pensar sobre eles, eu tiver contribuído, penso que terei feito a minha parte.
O Sr. Lauro Campos (PDT - DF) - V. Exª me permite um aparte?
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Com prazer, ouço V. Exª.
O Sr. Lauro Campos (PDT - DF) - Senador Geraldo Melo, V. Exª acaba de produzir aquilo que eu poderia apelidar de elogio da inteligência, de elogio ao respeito humano. Estou aqui há oito anos aguardando o seu pronunciamento. Realmente, V. Exª acaba de demonstrar que é possível uma discussão, é possível um debate respeitoso, é possível que as chaves que cada um pensa ter nas mãos para abrir as portas do futuro possam ser realmente encaixadas, ou melhor, encaixadas, nas fechaduras corretas, com a participação e a cooperação de todos. As palavras de V. Exª, retirado o excesso de elogio que não mereço, são também um estímulo para que continuemos a nossa procura. Eu não gostaria de perder esta oportunidade, em que a crise presente tem de necessariamente produzir uma mentalidade crítica, pois a cabeça crítica é produto da crise - a crise é crítica, e a cabeça que nasce nessas circunstâncias deve ser crítica; se não for crítica, ela se paralisa, não vai para frente e não encontra pontes para o futuro -, para dizer, neste aparte, que não deve ser longo, que concordo com grande parte do seu pronunciamento. Sou seu admirador antigo, acompanho os seus discursos e tenho o maior respeito e a máxima admiração por V. Exª. Portanto, para mim foi um privilégio ser instigado dessa maneira pela educação, perspicácia e inteligência que compõem a personalidade de V. Exª. Gostaria apenas, para não perder a oportunidade ímpar de responder a V. Exª, tendo sido o veículo que estimulou as suas palavras, que superaram em muito o meu pronunciamento...
O SR. GERALDO MELO (Bloco/PSDB - RN) - Não apoiado, Senador.
O Sr. Lauro Campos (PDT - DF) - (...) de tocar num assunto que realmente permeou suas colocações e angústias. V. Exª, ad latera, toca a questão de Cuba, aquela pequena ilha de 1000 quilômetros por 200 quilômetros de largura, tão próxima dos Estados Unidos. É uma ilha pobre, sem muitos recursos naturais, e que sobrevive há 40 anos a um cerco, a retaliações, a medidas que vêm de fora e que alteram completamente o processo histórico de formação, deformando um sonho que um dia foi implantado ali. Em 1922, também, um terço do território da União Soviética era dominado por tropas estrangeiras. O sistema sofreu 27 tentativas de invasão. Lênin dizia que, se não constituíssem rapidamente os Estados Unidos Comuns da Europa, não poderiam agüentar por muito tempo aquela experiência, baseados apenas nos poucos trabalhadores e soldados que possuíam. Muito tempo depois, outro grande revolucionário, Trotsky, disse em Copenhague que, se o socialismo fracassasse devido a erros e fraquezas do sistema ou por invasões externas, ele renasceria. Em 1927 e durante todo o tempo, houve essa preocupação. Lênin contou nos dedos e, quando chegou a 41, ele comemorou.
(O Sr. Presidente faz soar a campainha.)
O Sr. Lauro Campos (PDT - DF) - Por quê? Porque as comunas de Paris, a grande experiência comunista do mundo, realizada em Paris, durou 40 dias. E lá, na União Soviética, havia durado 41. Por isso, ele comemorou. Muitos tinham - outros talvez se tenham perdido em seus devaneios - a noção de seus limites e dificuldades. Para terminar, algo importantíssimo ficou sem dizer: V. Exª referia-se à escassez existente em Cuba, à falta de recursos, ao uso das cadernetas, aos preços tabelados de aluguéis, aos serviços de saúde e educação gratuitos e às dificuldades de adquirir alguns bens ainda necessários. Tudo é verdade. Agora, ali reina realmente a escassez, e não é possível socializar a escassez. Então, é um socialismo difícil, dificílimo. Gorz tem um livro com esse título: O Socialismo Difícil. Penso que o de Fidel Castro é mais difícil ainda. Por outro lado, existe o contrário: uma economia tão exuberante, eficiente e produtiva que, desde os anos 20, produz um excedente e não sabe o que fazer com ele. O problema daqui é a escassez; o problema de lá é o excesso. Por isso, Roosevelt começou a pagar para que não plantassem, pois havia excesso de produção na agricultura. A Suprema Corte julgou essa medida inconstitucional; então, ele pagou para plantarem cactos, que ninguém pode comprar ou consumir. Essa foi a solução encontrada para o capitalismo - e isso o gênio escamoteado de Keynes soube muito bem colocar, com muita dificuldade e cautela, escondendo o remédio devido a sua perversidade -, para reabsorver a mão-de-obra, aumentar a demanda efetiva e o nível de lucro. Em 1929, havia excesso de produção e a crise de sobreacumulação. Uma economia que produziu 5,3 milhões carros em 1929, e apenas 700 mil em 1949 - de 5,3 milhões caiu, 14 anos depois, com toda a sua eficiência, para 700 mil apenas - tinha o problema oposto ao de Cuba: o que fazer com o excedente.
(O Sr. Presidente faz soar a campainha.)
O Sr. Lauro Campos (PDT - DF) - Para terminar, o excedente se transformou em uma produção muito bem remunerada, a mais bem remunerada de todas aquelas que tinham existido nos Estados Unidos, a produção bélica e a produção espacial. “Duvido que tenhamos conhecido um auge recente capaz de levar ao pleno emprego, exceto durante a guerra” (Keynes, 1958). “Muitos observadores estavam ansiosos por repetir a experiência da produção socializada, tal como a conhecemos durante a guerra, embora a maior parte dos bens e serviços produzidos se destinassem à imediata e infrutífera destruição” (Keynes, 1920). Assim, o problema é como destruir, evitar o excedente ou impedir que o excedente pese e crie uma crise sobre o sistema erotizante, eficiente, etc. Esse excesso de vitalidade, eficácia e eficiência, o governo capitalista teve de desviar, criando um papel-moeda inconversível e arquivando o ouro e a prata; teve que aumentar a demanda efetiva e criar um déficit orçamentário permanente, que elevou a dívida pública americana a 111,9% do seu PIB em 1944. O déficit orçamentário, coberto com novas emissões, que somos proibidos de fazer...
O SR. PRESIDENTE (Fernando Ribeiro) - Senador Lauro Campos, encareço a V. Exª que conclua seu aparte, a fim de que o Senador Geraldo Melo possa também concluir o seu discurso.
O Sr. Lauro Campos (PDT - DF) - Pois não. Eu gostaria de colocar nossas angústias a respeito de como sair destas, de como encontrar realmente um mundo em que os abraços sejam fraternos, em que o próximo seja um irmão, em que não sejamos obrigados a destruir, a queimar o potlash capitalista, o excedente capitalista, que é queimado não como os índios faziam, num cerimonial, mas nesse cerimonial bélico global. Também considero esse descompasso, essa falta de forças produtivas e de eficiência na União Soviética e em Cuba, de um lado, e, de outro, o excesso de eficiência, de produtividade, a produção de um excedente que teve de se transformar necessariamente em anti-humano, em desumano, em bélico, em tanático. Eu gostaria muito de poder continuar este debate que travo com o máximo prazer. Manifesto mais uma vez que, embora tenha gasto grande parte da minha vida tentando desvendar esses hieróglifos do mundo atual, sou apenas um aprendiz de feiticeiro. Não tenho a pretensão de ter chegado perto de qualquer solução. Não sou conselheiro de ninguém - costumo sempre dizer que conselheiro foi meu bisavô, que foi presidente do Conselho de Pedro II. Eu não sou conselheiro de ninguém. Em relação a meus alunos eu dizia: “Eu não sou guru de ninguém”. Eu não era guru dos alunos. Eu ia lá para aprendermos juntos, para rirmos juntos. Ríamos, inclusive, de coisas que lordes, como Keynes, disseram - petas que ele havia pregado com uma fisionomia séria diante dos aplausos daqueles que não o compreenderam bem. V.Exª me honra e distingue. Se eu tivesse apenas esta manhã, em oito anos de mandato, posso garantir a V.Exª que estaria muito satisfeito com o que fiz aqui, com o que vi aqui, com o que aprendi aqui. Muito obrigado a V.Exª.
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