Discurso durante a 111ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcurso, hoje, dos 100 anos do livro "Os Sertões", de Euclides da Cunha, monumento da literatura nacional.

Autor
Bernardo Cabral (PFL - Partido da Frente Liberal/AM)
Nome completo: José Bernardo Cabral
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Transcurso, hoje, dos 100 anos do livro "Os Sertões", de Euclides da Cunha, monumento da literatura nacional.
Publicação
Publicação no DSF de 10/10/2002 - Página 18337
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, OBRA LITERARIA, AUTORIA, EUCLIDES DA CUNHA (BA), ESCRITOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), OPORTUNIDADE, ANALISE, IMPORTANCIA, LIVRO, DESCRIÇÃO, GUERRA, MUNICIPIO, CANUDOS (BA), ESTADO DA BAHIA (BA).

O SR. BERNARDO CABRAL (PFL - AM. Para uma comunicação inadiável. Sem revisão do orador.) - Eminente Presidente, Senador Edison Lobão, Srªs e Srs. Senadores, infelizmente, a comunicação inadiável exige que eu faça este discurso na totalidade. O Senado Federal tem um registro obrigatório a fazer: Os Sertões, de Euclides da Cunha, está fazendo 100 anos. Foi publicado em 1902, cinco anos depois do fim do episódio que lhe serve de tema: a Guerra de Canudos. Nem seria preciso dizer, mas diga-se: o livro continua um monumento. É um monumento literário e também um monumento de reflexão sobre esse tema sempre intrigante chamado Brasil.

Quem o leu conhece o sertão baiano mesmo sem tê-lo visitado. Conhece seu solo recrestado, castigado pelas secas, seu relevo bizarro, seu clima instável, seus rios transitórios, sua flora decídua. Conhece o sertanejo forte e franzino, amoroso da terra até o fim, religioso, retrógrado, produto inevitável de isolamento físico e cultural. Sabe por que o sertanejo acolheu a liderança do Conselheiro e empenhou esta vida terrena, de pouca valia, para defender-se de quem queria roubar-lhe a outra, a eterna.

Os Sertões, uma obra-prima, possivelmente o maior livro que já se escreveu até hoje, no Brasil, é, simultaneamente, uma obra de um cientista - geógrafo, etnógrafo, geopolítico -, de um homem de pensamento e de idéias e de um antecessor da hoje denominada Ciência Política, e uma obra de arte da linguagem. O pensador enciclopédico, contudo, não limitado nem detido pelos estudos matemáticos, sociológicos, geopolíticos e mesmo os de teor filosófico, era, sobretudo, sensibilizado pela geografia humana, muito mais do que pela geografia física, dos humilhados e oprimidos, dos ignorados pelos litorâneos, e de toda uma vasta população de camponeses, rudes e deserdados. Seguidores fanáticos dos messias que falavam em nome de Deus e anunciavam o fim do mundo, o perdão divino diante da inclemência da seca e a ressurreição, após a vida terrena, para outra melhor, misericordiosamente feliz.

Esse é o primeiro aspecto da grandeza da obra, resumido na frase que o gênio de Euclides da Cunha forjou para explicar por que os militares que combateram em Canudos não apenas agiam na certeza da impunidade como não temiam o juízo do futuro: “a História não iria até lá”. O sertão era demasiado pobre e distante, demasiado inglório para merecer a atenção da posteridade. “O sertão é o homizio”, acrescentou Euclides. Escreveu ainda: “Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava”.

Eis um conceito, este de que “a História não iria até lá”, que comporta larga reflexão na realidade brasileira. Vale não só para o juízo do futuro, mas também do presente. Há crimes cometidos na certeza de que estão imunes não só à História, mas ao mero registro dos contemporâneos. Nos porões da ditadura, reinava a certeza de que a História não chegaria lá. Atualmente, os morros cariocas exemplificam, por excelência, um rincão onde a História não chega. Assim como o deserto, assim como o sertão na descrição de Euclides, o morro é um homizio. Ele está no alto, não num vale como Canudos, mas também é um parêntese, um hiato, um vácuo. Não existe.

Outro aspecto, extremamente relevante e atual que a obra aborda, é o da relação entre comunicação e guerra. Na história mundial, tem-se documentada a primeira grande campanha da imprensa que teve por objetivo instigar a operação militar em amplo território estrangeiro...

Sei, Sr. Presidente, que não dará tempo de ler tudo, nem vou abusar do Regimento. V. Exª, evidentemente timbrado pela generosidade, está a fazer vista cega ao excesso de tempo. Peço a V. Exª que determine a publicação desse discurso na íntegra, não só em homenagem a este seu velho companheiro que tanto o estima, mas, sobretudo, em reconhecimento à grande obra de Euclides da Cunha.

            O SR. PRESIDENTE (Edison Lobão) - V. Exª será atendido por inteiro, na forma do Regimento. 

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SEGUE, NA ÍNTEGRA, PRONUNCIAMENTO DO

SR. SENADOR BERNARDO CARBAL

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O SR. BERNARDO CABRAL (PFL - AM) - Sr. Presidente,Srªs e Srs. Senadores, o Senado Federal tem um registro obrigatório a fazer: Os Sertões, de Euclides da Cunha, está fazendo 100 anos. Foi publicado em 1902, cinco anos depois do fim do episódio que lhe serve de tema, a Guerra de Canudos. Nem seria preciso dizer, mas diga-se: o livro continua um monumento. É um monumento literário e também um monumento de reflexão sobre esse tema sempre intrigante chamado Brasil.

Quem o leu, conhece o sertão baiano mesmo sem tê-lo visitado. Conhece seu solo recrestado, castigado pelas secas, seu relevo bizarro, seu clima instável, seus rios transitórios, sua flora decídua. Conhece o sertanejo forte e franzino, amoroso da terra até o fim, e religioso, retrógrado, produto inevitável de isolamento físico e cultural. Sabe por que o sertanejo acolheu a liderança do Conselheiro e empenhou esta vida terrena, de pouca valia, para defender-se de quem queria roubar-lhe a outra, a eterna.

Os Sertões, uma obra-prima, possivelmente o maior livro que já se escreveu até hoje, no Brasil, é, simultaneamente, obra de um cientista - geógrafo, etnógrafo, geopolítico -, de um homem de pensamento e de idéias e de um antecessor da hoje denominada Ciência Política. Também do criador de uma especial obra de arte da linguagem. O pensador enciclopédico, contudo, não limitado nem detido pelos estudos matemáticos, sociológicos, geopolíticos e mesmo os de teor filosófico, era, sobretudo, sensibilizado pela geografia humana, muito mais do que pela geografia física, dos humilhados e oprimidos, dos ignorados pelos litorâneos, e de toda uma vasta população de camponeses, rudes e deserdados. Seguidores fanáticos dos messias que falavam em nome de Deus e anunciavam o fim do mundo, o perdão divino diante da inclemência da seca e a ressurreição, após a vida terrena, para outra, melhor, misericordiosamente feliz.

Esse é o primeiro aspecto da grandeza da obra, resumido na frase que o gênio de Euclides da Cunha forjou para explicar por que os militares que combateram em Canudos não apenas agiam na certeza da impunidade como não temiam o juízo do futuro: “a História não iria até lá”. O sertão era demasiado pobre e distante, demasiado inglório para merecer a atenção da posteridade. “O sertão é o homizio”, acrescentou Euclides. Escreveu ainda: “Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava”.

Eis um conceito, este de que “a História não iria até lá”, que comporta larga reflexão na realidade brasileira. Vale não só para o juízo do futuro, mas mesmo do presente. Há crimes cometidos na certeza de que estão imunes não só à História, mas ao mero registro dos contemporâneos. Nos porões da ditadura, reinava a certeza de que a História não chegaria lá. Atualmente, os morros cariocas exemplificam por excelência um rincão onde a História não chega. Assim como o sertão, na descrição de Euclides, o morro é um homizio. Ele está no alto, não num vale como Canudos, mas também é um parêntese, um hiato, um vácuo. Não existe.

Outro aspecto, extremamente relevante e atual que a obra aborda, é o da relação entre Comunicação e Guerra. Na história mundial, tem-se documentado a primeira grande campanha da imprensa que teve por objetivo instigar a operação militar em um amplo território estrangeiro: a ilha de Cuba, no fim do século XIX. Segundo vários historiadores, “essa intervenção poderia ter sido evitada sem a histeria da lógica da guerra desencadeada por uma imprensa que não recuou diante de qualquer mentira para provocar o desfecho fatal”. Durante essa movimentação de incitar o governo norte-americano a intervir contra a ilha de Cuba, uma das últimas possessões do império espanhol, um repórter, ao chegar à Ilha, telegrafa ao seu patrão W. R. Hearst: “Tudo está calmo. Não haverá guerra, gostaria de voltar”. Hearst, de imediato, responde: “Peço-lhe para ficar. Forneça instruções que me encarrego da guerra”.

O jornalismo brasileiro, como em outras partes do mundo ocidental, desenvolveu-se ao lado da literatura. Essa experiência pode ser observada desde o século XIX, por meio do romance-folhetim, passando pela década de 50, com o surgimento dos suplementos literários, até os dias de hoje, com os “segundos cadernos”. Muitos dos escritores que marcaram a história nacional eram também jornalistas, como Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio de Azevedo, Lima Barreto e Euclides da Cunha.

Mas este último ainda ocasionou um confronto de gêneros no momento em que, mesmo na condição de correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, fez com que a representação sobre a guerra de Canudos saísse das páginas dos jornais para as páginas literárias, iniciando-se um processo em que a comunicação estava construindo a história. Os acontecimentos agendados pelos veículos de comunicação certamente farão parte da história, mas é por meio da expressão artística e literária que eles obtêm uma visibilidade mais consistente, principalmente pela diferença do seu processo de produção e recepção, menos fugaz que o da comunicação jornalística.

Euclides da Cunha afirma que não elegeu nenhum protagonista em Os Sertões. Mas repudiou a forma como a opinião pública matriz estava sendo construída, a partir de interesses privados. Para ele, os grandes vilões da História foram aqueles que fizeram o acontecimento, nos emergentes meios de comunicação. Os maiores jornais do País enviaram à guerra de Canudos correspondentes, para que estes lhes informassem todos os acontecimentos, de acordo com os interesses de cada grupo envolvido. Este fato é registrado nas obras contemporâneas do ciclo canudiano, cujos personagens comunicadores estão sempre presentes. São os personagens escritores, geralmente jornalistas correspondentes dos jornais da época, que buscavam noticiar, documentar os fatos da guerra e propagá-los.

O medo tácito em encontrar palavras para não ofender a República, nem o Exército, que os faziam oscilar entre as opiniões preconcebidas e a realidade crua que estavam presenciando, propiciou uma manipulação dos dados. Os jornalistas deram forma ao cotidiano e à cultura dos sertões, aos embates fratricidas e às lutas políticas, lembrando as razões da degenerescência social e, algumas vezes, citando até os textos euclidianos.

A guerra de Canudos, nos últimos meses de 1897, foi fartamente coberta pela imprensa, que deu grande importância ao acontecimento. Tornou-se conhecida de muitos cidadãos que, isolados num país tão vasto, buscavam informações sobre “um canto” do sertão nordestino. As notícias se polarizavam entre a Caatinga e a “Rua do Ouvidor”, representação euclidiana da Nação e da imprensa.

Escapando à ligeireza jornalística, a escrita literária é a garantia de uma memória, não permitida pelo jornal, que noticia acontecimentos, mas não dá a eles o poder e a marca histórica, como acontece na literatura.

Esse confronto de gêneros foi provocado por Euclides da Cunha, que perpetuou o tema da guerra, consolidou as formas de expressão dos temas nacionais e as bases de uma comunicação nacional, ancorada em referências locais. Quando Euclides da Cunha afirma que não elegeu nenhum protagonista em Os Sertões, mas deixa margem para que se entenda que os grandes antagonistas da estória foram aqueles que fizeram o acontecimento nos emergentes meios de comunicação, ele não só revela a forma como os jornais manipularam a opinião, bem como evidencia a crise e os conflitos de opinião surgidos após a guerra.

O que seria apenas uma notícia sobre um acontecimento transformou-se em uma interpretação do País, da sua gente e do próprio fenômeno. A descrição dos detalhes da região e de sua cultura, comparada com o fato histórico presenciado e analisado, tem dimensão de uma cena de perspectiva universal.

Finalizando, Srªs e Srs. Senadores, é válido que se indague e se reflita quais foram as mudanças verdadeiramente alcançadas após um século de história. Em Os Sertões, quando Euclides denuncia o empenho da “Rua do Ouvidor”, alimentado pelos jornais, em desejar a derrota das caatingas, o autor alerta: “Não vimos o traço superior do acontecimento. Aquele afloramento originalíssimo do passado, patenteando todas as falhas da nossa evolução, era um belo ensejo para estudarmo-las, corrigirmo-las ou anularmo-las. Não entendemos a lição eloqüente”.

Será que, cem anos depois, já aprendemos a lição?

Tendo renunciado, em nome da brevidade e da concisão, a abordar tantos aspectos da obra, não posso, contudo, omitir dois deles que a notabilizaram e fizeram-na um marco da literatura brasileira.

Como toda verdadeira obra-prima, ao longo do século XX, Os Sertões exerceu influência sobre outros autores e foi sucedido por romances que, a partir do seu legado, geraram uma nova imagem da inteligência brasileira, principalmente a partir da Semana de Arte Moderna, por meio de autores como José Américo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e outros. No plano internacional, destaca-se a obra de Vargas Llosa, A guerra do fim do Mundo, como literatura exemplar do ciclo temático canudiano.

Outra marca distintiva da obra é o seu estilo exuberante, de feição barroca. Quer obra de ficção, narrativa heróica, realística e inventiva, quer epopéia em prosa, a transfiguração lingüística de Os Sertões foge à regra geral dos livros até então escritos em nossa língua. Ao escrever sobre o sertanejo rude e fanático, Euclides da Cunha constrói o coletivo na obsessão da palavra rude, como rudes são o sertanejo e o jagunço. Linguagem de cipó, como de cipó é a vegetação da natureza física dos sertões da Bahia, impiedosa com seus habitantes e retirantes, tangidos pela inclemência da pior de todas as aflições: a sede.

Ao aproximar-se desse universo, Os Sertões tornou-se um livro vingador. Depoimento para a posteridade, do qual emerge Canudos, guerra sem vencedores nem vencidos, mas prova eloqüente e trágica de que o Nordeste brasileiro precisa ser redimido.

Os Sertões é considerado por muitos estudiosos “o livro mais importante de nossa cultura”, como diz Carlos Heitor Cony. É uma consideração que só o tempo poderá confirmar.

Não há dúvida, entretanto, de que faz parte de qualquer cânone que se queira estabelecer para a Literatura Brasileira.

Euclides da Cunha instaurou o debate, no meio literário, sobre as ambigüidades de um texto narrativo que escolhia um fato histórico como matéria discursiva. Possibilitou um diálogo de gêneros, no momento em que a representação sobre a guerra saiu das páginas dos jornais para as páginas literárias, iniciando-se um processo de avaliação não apenas do objeto concebido, mas da forma como a comunicação estava construindo a História.

Os Sertões, Srªs e Srs. Senadores, trouxe para a cena literária, pela primeira vez, as contradições, a beleza e a tragédia do homem brasileiro.

Este livro é uma semente, que merecerá, sempre, as deferências e as homenagens que viermos a lhe prestar.

Muito Obrigado! 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/10/2002 - Página 18337