Discurso durante a 119ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem à memória do poeta Carlos Drummond de Andrade pelo transcurso do centenário de seu nascimento.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem à memória do poeta Carlos Drummond de Andrade pelo transcurso do centenário de seu nascimento.
Publicação
Publicação no DSF de 01/11/2002 - Página 18766
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, POETA, ESTADO DE MINAS GERAIS (MG), IMPORTANCIA, OBRA LITERARIA, LITERATURA, PAIS.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (Bloco/PSDB - CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Muito obrigado, Excelência.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, para um espírito como o dele, que, em vida, recusou-se sistematicamente a participar de celebrações de qualquer natureza, talvez sejam muitas as homenagens com que, este ano, comemorou-se o centenário do nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade.

Na realidade, quantas sejam as homenagens que lhe façam, são insuficientes diante da dimensão literária de sua obra. Não se fala em literatura no Brasil sem se falar em Drummond. Um dos críticos literários mais respeitados internacionalmente, o americano Harold Bloom, da Universidade de Nova York, colocou o poeta Carlos Drummond de Andrade como o único representante brasileiro no seu famoso O Cânone Ocidental, que relaciona os melhores escritores de todos os tempos.

Dizia-se do alemão Goethe que o século XVIII, ao passar por ele, tomou sua verdadeira feição. Afirmação análoga se pode fazer a respeito da importância de Drummond para a literatura brasileira: ao passar por ele, encontrou, finalmente, a modernidade.

Neste pronunciamento, que não pode ter a profundidade de uma análise literária e que não quer se ater apenas aos dados biográficos do autor, destaco exatamente esse aspecto instigante da obra drummondiana, que é a sua modernidade, representada pela simplicidade de sua poesia.

Os poemas de Carlos Drummond de Andrade desconcertam e encantam pela simplicidade. Tradicionalmente, a poesia expressava-se por um tipo de texto obscuro e, ao mesmo tempo, convencional, em que a linguagem se mostrava opulenta, luxuriosa e esotérica, usando e abusando de comparações, metáforas e alegorias, exigindo, enfim, um estilo exaltado e sublime, no qual todos os recursos clássicos da retórica - convencimento, sedução e mistério - eram valores maiores a serem colocados à disposição do leitor. Assim é que Drummond dizia que escrever é cortar palavras.

A poesia tinha algo a ver com o latim que escutávamos todos em belas e comoventes litanias na hora da missa, mas cujo significado nos escapava por completo. Sentíamo-nos reconfortados moralmente, sabe-se lá como, ao sair da igreja. Uma língua sonora e opulenta, que escapava ao entendimento racional e ia ao encontro da sublimação da nossa miserável condição humana, tinha de ser a mais prezada nas alturas espirituais, lugar de onde vinha essa outra fala privilegiada, a da família real dos poetas.

Por fugir às regras da tradição, a simplicidade da poesia de Drummond - como a de outros modernistas - desconcertou nosso leitor habitual de poemas. Desde os anos 30, tornou-se peça de escárnio e de escândalo, mas também razão para repentina celebridade, o conhecido e iconoclasta poema “No meio do caminho”: “No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho”. Essa simplicidade dos versos drummondianos encantou mais e mais o leitor, pouco ou nada acostumado à leitura da poesia.

Os poemas de Drummond são de tal modo singelos e significativos, que democratizaram a poesia, tornaram-se amados pelo grande público, memorizados e repetidos sem a ajuda do livro, do mesmo modo que só acontece com outro grande poeta da língua portuguesa, o múltiplo Fernando Pessoa.

No entanto, se a poesia simples de Drummond desconcerta o leitor habitual e exigente de poemas, acostumado a textos barrocos e complicados, isso não quer dizer que ele fique alheio a ela, ou a despreze, como sendo por demais vulgar para o seu paladar de literato. De todos os poetas modernistas da literatura brasileira, é, sem dúvida, Drummond o que recebeu a maior consagração por parte da crítica, tanto da militante em jornais, quanto da acadêmica.

Integram a fortuna crítica do poeta nomes como Mário de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Othon Moacyr Garcia, Haroldo de Campos, Afrânio Coutinho, Antônio Houaiss, Luiz Costa Lima, Gilberto Mendonça Teles, Antônio Cândido, Alfredo Bosi, Affonso Romano de Sant´anna, José Guilherme Merquior, Silviano Santiago, Roberto Schwarz, Tristão de Athayde e muitos outros.

O melhor da intelectualidade brasileira debruçou-se sobre a obra do poeta itabirano, que foi e é objeto, também, de inúmeras teses de mestrado e doutorado e de constantes ensaios e monografias. Seus poemas foram, ainda, adaptados para filmes e peças teatrais, inspirando composições musicais e outros poemas.

Sua obra foi fonte de análises, exegeses, críticas e teorias. Descobriram-se fases e influências. Identificaram-se características, processos criativos, temas recorrentes e aparentes contradições. O regional e o cosmpolita. O asceta e o erótico. O comedimento e a exaltação.

Os seminários, debates, mesas-redondas, palestras e ciclos de leitura, que se realizaram em comemoração ao centenário de Drummond, evidenciaram a riqueza e a multiplicidade de enfoques de sua obra.

Uns destacaram o “sentimento do mundo”, outros, a presença da família, o engajamento poético, o humor corrosivo, a reflexão sobre o próprio fazer poético.

Em que pese a importância de todos esses aspectos para a compreensão da obra do poeta, ainda permaneço impressionado com aquela simplicidade reveladora que me fez, ainda adolescente, constatar maravilhado: “mas isso é poesia?”

No caso de Carlos Drummond de Andrade, a simplicidade é um exercício ético, que tem como campo de trabalho - o poeta diria de luta - as palavras nas suas manifestações imperiosamente coloquiais. Noite e dia, trabalhá-las de tal modo conseqüente, que, ao romper da aurora, tenham-se quebrado os tabus da dificuldade em se comunicar com o outro e o semelhante.

A comunicabilidade com o outro pela palavra poética, no caso, com o leitor, é conquista e fracasso do individualismo e é, ao mesmo tempo, um ideal ascético de exigência introspectiva e de simplicidade humana, vale dizer, de responsabilidade cidadã e de aversão ao culto do escritor como alguém que, por exercer uma profissão dita nobre, difere dos outros.

É essa opção radical pela comunicabilidade, coerente em quem tanto denunciou a tragédia do isolamento humano, que destaco no “vasto mundo” drummondiano. Esse gesto de abandonar a “torre de marfim” e misturar-se com os homens que, “embora taciturnos, nutrem grandes esperanças”.

A mesma coerência verifica-se na rigorosa dignidade intelectual de Drummond. Coerentemente, Drummond - como observou Paulo Francis várias vezes - não usava seu imenso prestígio para interferir no debate cultural e político brasileiro. Coerentemente, não se candidatou a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Coerentemente, pediu que seu sepultamento não tivesse nenhum aceno religioso, e esse desejo foi atendido. Cético, apesar de sua sensibilidade, conseguiu, no entanto, graças a seu talento, tornar alcançável à nossa consciência um ângulo inesperado para observar o mundo.

Por essa coerência essencial, presumo que Drummond não levaria muito a sério as honrarias que ora lhe são prestadas: os selos, as moedas, as estátuas e até este modesto pronunciamento.

Imagino que apreciou, de fato, ser homenageado pela Estação Primeira de Mangueira, em 1987, com o samba-enredo “O reino das palavras”, com que, muito justamente, foi campeã do carnaval carioca naquele ano. No mesmo ano, em 5 de agosto, morreu sua filha Maria Julieta, a pessoa que ele próprio declarou que mais amou no mundo. Desolado, Drummond pediu a sua cardiologista que lhe receitasse um “infarto fulminante”, e apenas 12 dias depois, a 17 de agosto de 1987, faleceu numa clínica em Botafogo, no Rio de Janeiro. Cáustico e coerente até o fim.

O poeta, que nascera no ano seguinte àquele em que começou o século XX, teria morrido quatro anos antes do fim do século que o viu nascer, pois, segundo a cronologia original e correta, estabelecida pelo historiador Eric Hobsbawn, o século XX terminou em 1991.

Na literatura brasileira, ninguém retratou melhor o seu século. Drummond foi, por um lado, o introdutor da sensibilidade moderna, isto é, da experiência existencial do homem da grande cidade e da sociedade de massa, na alta literatura lírica; por outro, o fundador de uma escrita poética moderna, escrita de ruptura radical, ao mesmo tempo, com a tradição clássica e com o romantismo.

Na história da poesia, essas duas conquistas são obra de Drummond, um clássico moderno. Seu legado é imortal. O Poeta, cansado de ser “moderno, tornou-se “eterno”.

O homem, “triste, orgulhoso, de ferro”, esse “não há mais”.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/11/2002 - Página 18766