Discurso durante a 119ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem à memória do poeta Carlos Drummond de Andrade pelo transcurso do centenário de seu nascimento.

Autor
Tião Viana (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Sebastião Afonso Viana Macedo Neves
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem à memória do poeta Carlos Drummond de Andrade pelo transcurso do centenário de seu nascimento.
Publicação
Publicação no DSF de 01/11/2002 - Página 18770
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, POETA, ESTADO DE MINAS GERAIS (MG), ELOGIO, OBRA LITERARIA.
  • LEITURA, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, BIOGRAFIA, CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, ESCRITOR, ESTADO DE MINAS GERAIS (MG).

O SR. TIÃO VIANA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, faço questão de registrar ser este um dos momentos mais importantes da história do Senado Federal, quando temos o dever e a responsabilidade de contribuir para a homenagem que está sendo dada por todo o País a uma figura das mais extraordinárias da literatura mundial.

Carlos Drummond de Andrade, sem dúvida alguma, representa um dos momentos mais sublimes da história da literatura. Homem de fato à altura de seu tempo, soube traduzir, em sua poesia, em seus poemas, o século que viveu - o mais violento, o mais assassino de todos os séculos -, que foi o século XX. Um homem que soube depurar, como ele próprio dizia, o sentimento de um choque cultural profundo. Herdeiro que era de uma formação moral e cultural ainda anterior à Revolução Industrial - ele mesmo afirma, em documentários, que quem cuidava de sua infância era ainda do tempo da escravidão do Brasil -, Drummond conseguiu ser lido, ouvido e admirado por todos os brasileiros.

É unânime a homenagem prestada a ele pelo Brasil. Belíssimo momento da história nacional, por exemplo, é a estátua recentemente colocada no calçadão de uma famosa avenida do Rio de Janeiro, representando Drummond no seu jeito simples de estar, de pensar e de refletir sobre a vida e sobre o momento presente. Quando vejo a televisão brasileira exibindo diariamente trechos dos poemas de Drummond, considero isso um momento muito bonito da nossa história, principalmente por sermos um País com uma enorme dívida com a cultura. Pouquíssimos brasileiros têm acesso aos livros. O acesso ao cinema brasileiro é escasso. Se isso ocorre com o cinema que circula em nosso País, muito mais ainda com a literatura e a poesia.

Portanto, essa homenagem prestada a Drummond, que atravessa os corredores do Congresso Nacional, com uma pedra no caminho do Congresso Nacional, reflete o momento de percepção da história, da contemporaneidade, reflete o momento de sensibilidade desta Casa a Carlos Drummond de Andrade.

Vale lembrar o momento feliz que teve o Senado Federal, durante o ano passado, ao decidir que este ano seria o Ano Carlos Drummond de Andrade. Esse foi um momento de percepção e de justa homenagem.

É muito difícil - eu diria até impossível - falar, fazer uma análise literária de Carlos Drummond de Andrade. Os gênios da história da literatura brasileira, os grandes nomes da literatura brasileira e do jornalismo já o fizeram muito bem. Então vou me resumir a fazer comentários que julgo importantes sobre esse grande personagem do nosso tempo.

Está feita aqui, no Projeto Releituras, uma análise muito bonita da biografia de Drummond, que passo a ler:

O modernismo não chega a ser dominante nem mesmo nos primeiros livros de Drummond, Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934), em que o poema-piada e a descontração sintática pareceriam revelar o contrário. A dominante é a individualidade do autor, poeta da ordem e da consolidação, ainda que sempre, e fecundamente, contraditórias. Torturado pelo passado, assombrado com o futuro, ele se detém num presente dilacerado por este e por aquele, testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de vista melancólico e cético. Mas, enquanto ironiza os costumes e a sociedade, asperamente satírico em seu amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação estética desse modo de ser e estar.

Vem daí o rigor, que beira a obsessão. O poeta trabalha sobretudo com o tempo, em sua cintilação cotidiana e subjetiva, no que destila do corrosivo. Em Sentimento do mundo (1940), em José (1942) e sobretudo em A rosa do povo (1945), Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente, descobrindo na luta a explicitação da sua mais íntima apreensão para com a vida como um todo.

Entendo que essa análise é uma tradução fantástica do que foi Carlos Drummond de Andrade.

Vale ressaltar momentos bonitos da sua história, da sua vida: o nascimento, no dia 31 de outubro de 1902; os momentos fortes de sua biografia, como, em 1927, o drama da perda de um filho com meia hora de vida; um ano depois, o nascimento de sua filha.

Aos 17 anos de idade, Drummond foi expulso do Colégio Anchieta, da ordem jesuíta, mesmo depois de ter sido obrigado a retratar-se de uma manifestação que teria feito na atividade escolar. E a justificativa da expulsão - “insubordinação mental” - marcou toda a sua vida.

Momento bonito da história de Drummond foi a homenagem prestada por um dos mais fortes exemplos da cultura popular brasileira, a Escola de Samba da Mangueira, em 1987. Drummond não pôde participar daquele desfile da cultura popular e emitiu a seguinte mensagem à Escola de Samba da Mangueira:

De posse de sua amável comunicação, venho agradecer calorosamente à Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira a alta distinção que me conferiu, tornando minha vida e obra literária tema do enredo para o carnaval de 1987. Sempre me habituei a ver na gloriosa Mangueira uma das forças mais representativas da nossa cultura popular. Por tradição, ela soube captar os sentimentos e aspirações do seu povo, transformando-os em matéria rica de criação artística, internacionalmente admirada. Por isso, o distinto presidente e seus companheiros podem avaliar a emoção com que tive a notícia da homenagem a mim prestada e pela qual manifesto o meu profundo agradecimento.

Então, é um homem em sintonia com as manifestações populares, em sintonia plena com o erudito, com o século XX no seu comportamento estrutural, ou seja, o comportamento das guerras, das violências, do choque moral que viveu o século XX. Drummond conseguiu traduzir esse sentimento em suas poesias e manifestações.

Vale lembrar um poema seu intitulado Procura da Poesia, como tradutor de seus sentimentos para com a literatura:

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.

Não me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de

[espuma.

O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consuma

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito,

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Sr. Presidente, falar da biografia de Drummond é um desafio profundo. Ele não queria uma biografia com as nossas palavras, mas talvez uma biografia escrita por ele mesmo. Por essa razão, faço a leitura, para publicação nos Anais do Senado Federal, da autobiografia escrita para uma revista pelo próprio Carlos Drummond de Andrade:

Convidado pela Revista Acadêmica a escrever minha autobiografia, relutei a princípio, por me parecer que esse trabalho seria, antes de tudo, manifestação de impudor. Refleti logo, porém, que, sendo inevitável a biografia, era preferível que eu próprio a fizesse, e não outro. Primeiro, pela autoridade natural que me advém de ter vivido a minha vida. Segundo, porque, praticando aparentemente um ato de vaidade, no fundo castigo o meu orgulho, contando sem ênfase os pobres e miúdos acontecimentos que assinalam a minha passagem pelo mundo, e evitando assim qualquer adjetivo ou palavra generosa, com que o redator da revista quisesse, sincero ou não, gratificar-me.

Isto posto, declaro que nasci em Itabira, Minas Gerais, no ano de 1902, filho de pais burgueses, que me criaram no temor de Deus. Ao sair do grupo escolar, tomei parte na guerra européia (pesa-me dizê-lo) ao lado dos alemães. Quando o primeiro navio mercante brasileiro foi torpedeado, tive que retificar a minha posição. A esse tempo já conhecia os padres alemães do Verbo Divino (rápida passagem pelo Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte). Dois anos em Friburgo, com os jesuítas. Primeiro aluno da classe, é verdade que mais velho que a maioria dos colegas, comportava-me como um anjo, tinha saudades da família, e todos os outros bons sentimentos, mas expulsaram-me por “insubordinação mental”. O bom reitor que me fulminou com essa sentença condenatória morreu, alguns anos depois, num desastre de bonde na Rua São Clemente. A saída brusca do colégio teve influência enorme no desenvolvimento dos meus estudos e de toda a minha vida. Perdi a Fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz alguns amigos inesquecíveis. Casado, fui lecionar geografia no interior. Voltei a Belo Horizonte, como redator de jornais oficiais e oficiosos. Mário Casassanta levou-me para a burocracia, de que tenho tirado o meu sustento. De repente, a vida começou a impor-se, a desafiar-me com seus pontos de interrogação, que se desmanchavam para dar lugar a outros. Eu liquidava esses outros, mas apareciam novos. Meu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), traduz uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleição ingênua com o próprio indivíduo. Já em Brejo das Almas (1934), alguma coisa se compôs, se organizou; o individualismo será mais exacerbado, mas há também uma consciência presente de sua precariedade e uma desaprovação tácita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor. Penso ter resolvido as contradições elementares da minha poesia num terceiro volume, Sentimento do Mundo (1940). Só as elementares: meu progresso é lentíssimo, componho muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta. Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista... Mas iríamos longe nesta conversa. Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais.

Acredito ser essa autobiografia uma peça, um libelo da história literária brasileira, uma manifestação que Carlos Drummond de Andrade fez e com a qual prestou uma belíssima homenagem a si próprio. Ele não desejava maiores considerações em relação à sua personalidade. Entendia que era preciso compreender sua vida como a de alguém que depurava o seu interior e o tornava público como uma manifestação de um tempo. Muito mais do que moderno, ele se definia e queria ser definido como alguém atual.

É a homenagem que presto, Sr. Presidente. O Senado Federal está “sem discurso”, segundo o poema “José”, de Drummond, que diz, ainda: “Não veio a utopia”.

Só divirjo de Drummond para dizer que a utopia está chegando a partir de 27 de outubro. Novos tempos estão sendo anunciados. O Brasil vive um grande e belíssimo projeto de sociedade. É preciso muita união e determinação para construí-lo. Quando observamos a chegada da poesia, a chegada do poema ao Plenário do Senado Federal, vemos um sentimento de respeito e felicidade do Brasil inteiro em homenagear o seu poeta Carlos Drummond de Andrade. Colocando-o no pódio, como dizia hoje Carlos Heitor Cony, ao lado João Cabral de Mello Neto e de Manuel Bandeira, estamos cientes de que esta é a oportunidade de um novo momento.

O Canto ao Homem do Povo, uma homenagem a Charles Chaplin feita por Carlos Drummond de Andrade, é uma das mais preciosas peças da literatura em forma de poema que ele poderia ter feito. Encerrarei a minha homenagem a Carlos Drummond de Andrade fazendo uma leitura desse Canto ao Homem do Povo - Charles Chaplin.

Era preciso que um poeta brasileiro,

não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,

girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver

como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,

de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior

onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos

e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,

era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,

preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,

viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse

para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

Para dizer-te como os brasileiros te amam

e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece

com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus

de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem

nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,

vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor

como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,

e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,

e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,

só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,

eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,

nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti

como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos

[jardins.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,

que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,

são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,

visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.

Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,

os párias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os

[cismarentos,

os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,

falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os

[botões,

os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,

cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

Sr. Presidente, peço que seja incluído esse poema, uma peça extraordinária, nessa homenagem que faço a Carlos Drummond de Andrade. E, como disse, não ousaria fazer uma análise literária desse grande poeta, porque gênios da literatura brasileira já o fizeram. Os poetas seus contemporâneos já o fizeram. Os professores da Língua Portuguesa e da Literatura já o fizeram, os jornalistas renomados já o fizeram, e, como ele próprio gostaria de dizer, discurso não há.

Esta é uma homenagem de quem admira e ama Drummond e sabe que, a partir do dia de hoje, mais jovens brasileiros conhecerão a poesia e os poemas de Carlos Drummond de Andrade.

Muito obrigado.

 

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SEGUE DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR TIÃO VIANA EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido na forma do disposto no art. 210 do Regimento Interno.)

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/11/2002 - Página 18770