Pronunciamento de José Sarney em 31/10/2002
Discurso durante a 119ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal
Homenagem à memória do poeta Carlos Drummond de Andrade pelo transcurso do centenário de seu nascimento.
- Autor
- José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
- Nome completo: José Sarney
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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HOMENAGEM.:
- Homenagem à memória do poeta Carlos Drummond de Andrade pelo transcurso do centenário de seu nascimento.
- Publicação
- Publicação no DSF de 01/11/2002 - Página 18783
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, POETA, ESTADO DE MINAS GERAIS (MG), ELOGIO, OBRA LITERARIA, IMPORTANCIA, LITERATURA, PAIS.
O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nada tenho a acrescentar, em louvor da glória de Carlos Drummond de Andrade, às palavras aqui proferidas em nome do Senado pelos Senadores Lúcio Alcântara, José Alencar e Tião Viana.
Entretanto, ninguém nesta Casa entenderia, nem eu mesmo, se ficasse calado, sem dar uma palavra a respeito da obra e da vida de Carlos Drummond de Andrade, essa figura solar da Literatura brasileira.
Falar sobre Drummond é, sem dúvida, uma grande e impossível aventura de subir a uma montanha de centenas e centenas de livros escritos sobre ele, conferências, ensaios, estudos e críticas, além de ser matéria constante de interesse do cotidiano, incorporada à vida e à história do Brasil.
Confesso que ingressei na obra de Carlos Drummond de Andrade como leitor e como devoto. A partir da convivência com sua poesia, tinha a impressão de que estava praticando um ato de devoção a quase um deus, porque já se tem dito - e eu mesmo, muitas vezes, repeti - que a poesia é uma arte de Deus, é uma obra de criação. O primeiro grande poeta foi realmente o Criador, ao fazer do nada, por intermédio das palavras “no princípio era o Verbo”, aquilo que se tornou a realidade do mundo.
A poesia que Drummond tinha como necessária, como objeto do ofício exercido a cada dia, atingia um toque mágico naquela simplicidade formal que traz, desde o primeiro verso, o milagre da sua iniciação poética. Quero dar um toque, uma achega pessoal, também sobre o homem Carlos Drummond de Andrade, o meu conhecimento de Carlos Drummond de Andrade.
Eu chegava ao Rio de Janeiro pela primeira vez quando tinha 17 anos. Conversava com Josué Montello, já então um grande escritor deste País, que me disse: “Você quer conhecer Carlos Drummond de Andrade, quer estar com Carlos Drummond de Andrade?”. Era algo impossível para mim, poeta de província, menino de 17 anos chegando ao Rio de Janeiro, ter aquela oportunidade de conhecer Carlos Drummond de Andrade. Ele ligou e marcou uma visita a Carlos Drummond de Andrade. Que ousadia de um menino de 17 anos!
Fui ao encontro dele, que, a esse tempo, ainda trabalhava no prédio do Ministério da Educação e que me recebeu numa sala de absoluta simplicidade. Evidentemente, como todos podem imaginar, eu não sabia nem o que devia dizer. Não tive condições de lhe dizer tudo o que eu tinha pensado. E ele, vendo aquela dificuldade, aquela certa perplexidade daquele menino, perguntou-me: “O que você faz no Maranhão?”. E eu lhe disse: “Versos”. Ele, naturalmente, já procurado por muitos jovens, pensando que eu os traria, questionou-me: “E os seus versos, trouxe-os?”. A que lhe respondi: “Não tive coragem. Não são versos para que o senhor possa ler”.
Enfim, diante de poucos minutos que ali passamos juntos, ele, com aquela grande compreensão humana, sabendo dessa dificuldade em que se encontrava aquele menino, começou a falar sobre os amigos comuns: Josué Montello, Odilo Costa Filho, o grande elo pelo qual muitas vezes estive com Drummond. Odilo foi o santo bom que Deus pôs na minha vida. Posso dizer que me tornei amigo de Carlos Drummond de Andrade naquela acepção que São Paulo dá à palavra “amigo”. Esse foi o meu encontro pessoal com ele.
Também quando estive com Carlos Drummond, já havia me iniciado em sua obra, na sua obra dum constante questionamento do poder, do fenômeno social. Basta dizer que Alguma Poesia foi editada no ano do meu nascimento; é de 1930 a primeira edição desse livro. Depois, já no período de redemocratização, depois de Getúlio, ele completava, nessa sensibilidade social, com o Sentimento do Mundo, com a Rosa do Povo. E foi aprofundando infinitamente, por meio dos livros que escreveu, aquela melodia das suas palavras, da sua poesia, que foi ficando cada vez mais despojada, livrada dos adjetivos, livrada de tudo que era desnecessário, para ficar só a palavra poética, que é a transfiguração das coisas na sua eternidade.
Drummond tinha um certo sorriso, um sorriso no canto da boca, de que a gente não esquece. E gostava de entremear a sua conversa com um “viu?”, que era muito mais baixo do que as coisas que ele falava num sorriso firme. Para a minha geração, não contava somente o poeta do Claro Enigma, mas também o cronista, o cronista Carlos Drummond de Andrade. Era, no cronista, o poeta e, no poeta, o homem historiador do cotidiano, como são todos os cronistas. Nessa arte, creio que não houve ninguém maior do que ele, senão Machado de Assis, na Literatura brasileira.
Quero também falar de um ponto que é uma certa identidade que tenho com o homem: a paixão por sua filha Julieta. A paixão de Drummond por Maria Julieta era excepcional. Ela também era excepcional, de uma conversa arrebatadora. Nos últimos anos de vida, ela foi amiga de minha mulher, Marly, com grande encantamento. Essa filha era a concretude de toda a sua criação. O destino fez com que Maria Julieta morresse no dia 5 de agosto e ele, no dia 17 de agosto, de tal modo que não se podia separar as datas, sabendo que sua vida estava ligada, no âmago, à filha, o poema mais belo que ele havia escrito.
Estava no México, como Presidente da República, quando morreu Carlos Drummond de Andrade. Sabia que essa perda atingia a todos do País e, de lá, mandei uma mensagem, dizendo do meu sentimento, do que isso significava para o Brasil. Ao mesmo tempo, dizia que podíamos destruir tudo no mundo, até a pedra mais dura, mas uma coisa era impossível de ser destruída: a palavra. A palavra de um grande poeta se torna eterna e indestrutível.
Em setembro de 1985, também como Presidente da República, em discurso nas Nações Unidas, em nome do Brasil - era tradição os Presidentes se pronunciarem -, fiz algo quase incomum em um fórum daquela natureza: incluir a poesia em um discurso de Chefe de Estado. Citei Carlos Drummond de Andrade, quando ele fala do “sentimento do mundo”, nas Nações Unidas.
Tive, como disse, o privilégio de ser seu amigo, aquela figura gauche e frágil - sua palavra, como falei, era de tom baixo -, de uma conversa em que não se tinha vontade ou desejo de mostrar-se brilhante. Ele não tinha o gosto de brilhar pela conversa, mas a sua conversa era como currente calamo, que se desdobrava na beleza. Desse modo, ele parecia estar sempre escrevendo quando falava com aquelas palavras comedidas que só ele, na sua grandeza de poeta, unindo a personalidade do homem e do poeta, podia juntar.
Enfim, eram essas as achegas pessoais. Eu não pretendia, como disse, pronunciar-me, pois penso que a homenagem do Senado está muito bem concretizada nos discursos aqui proferidos, na iniciativa do Senador Tião Viana, que tem grande sensibilidade para as coisas da Literatura, para que pudéssemos homenagear Carlos Drummond de Andrade, em seu centenário de nascimento.
É uma honra, não para ele, mas para o Senado, saber que aqui, nesta Casa de políticos - e todos pensam que os políticos são extremamente pragmáticos -, também temos sensiblidade para erigir estátuas à Poesia.
Carlos Drummond de Andrade era um deus. Vou regredir às minhas palavras iniciais: quando voltei do meu encontro com Drummond, Josué Montello me perguntou como havia sido a conversa. Tive a oportunidade de dizer-lhe: “Josué, entrei como se entrasse em uma igreja”. Josué me perguntou: “O que vocês conversaram?”. Respondi: “Aquilo que se conversa com os santos que estão no altar. Eu não disse nada! Olhei, admirei e saí cheio de graças!”.
Pois esta graça, no momento em que falo no Senado, ainda a guardo: de ter tido a ventura de conhecer esse grande poeta e de ser brasileiro, natural de um País que gerou um homem de extraordinária grandeza intelectual, esse monumento humano chamado Carlos Drummond de Andrade.
Muito obrigado.