Discurso durante a 128ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcurso, no próximo dia 15 de novembro, do aniversário da Proclamação da República.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Transcurso, no próximo dia 15 de novembro, do aniversário da Proclamação da República.
Publicação
Publicação no DSF de 15/11/2002 - Página 21870
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, PROCLAMAÇÃO, REPUBLICA, ANALISE, HISTORIA, BRASIL, ATUAÇÃO, FORÇAS ARMADAS, BUSCA, APERFEIÇOAMENTO, DEMOCRACIA, ATUALIDADE.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (Bloco/PSDB - CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, na ocasião do transcurso de mais um 15 de novembro, parece claro ter o povo brasileiro, mais do que em qualquer outro momento da sua história, motivos para comemorar o aniversário da Proclamação da República.

Digo que temos, hoje, razões mais sólidas para celebrar a data porque, decorridos já 113 anos da revolta militar que pôs fim às quase sete décadas de regime monárquico, o País finalmente começa a dar concretude aos ideais do movimento republicano; começa a dar vigência efetiva aos princípios basilares de uma forma de governo que, por definição, volta-se para a defesa da res publica, do interesse comum, da coletividade.

Afinal, quando o Marechal Deodoro da Fonseca, do dorso de seu cavalo, desembainhou a espada e bradou “Viva a República!”, aqueles que durante décadas haviam propagandeado o novo regime e sonhado com sua instauração não esperavam que a mudança viesse a se resumir à substituição do Imperador por um Presidente da República, com poderes ainda bastante ampliados em relação ao anterior Chefe de Estado, com a diminuição do papel do Parlamento, com governos ainda mais autoritários que o imperial, marcados pela repressão e pela perseguição aos oponentes.

É certo que uma das distinções essenciais entre a forma monárquica de governo e a republicana é a vitaliciedade e a hereditariedade que caracterizam a primeira em contraposição à temporalidade no exercício da Chefia de Estado que se verifica na segunda.

Mas, por essencial que seja essa característica da República, não merece a designação de republicano um regime que se limite à periódica substituição do Primeiro Mandatário do País.

República é a forma de governo na qual o povo tem a titularidade do poder político, exercendo-a por meio do voto. Aquela na qual o povo escolhe seus governantes por meio de eleições livres, para que estes, durante um período determinado, promovam o bem comum, defendam os interesses da coletividade. É o regime da responsabilidade popular na definição dos rumos da Nação. Em uma palavra, o regime da cidadania, dos direitos e dos deveres do cidadão.

Não foi, por certo, um regime com essas características que o povo brasileiro viu surgir após os episódios de 15 de novembro de 1889. E, aliás, não é de surpreender que assim tenha sido, haja vista as circunstâncias em que foi concretizada a derrubada da monarquia.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é irônico que a forma de governo definida como a da soberania popular tenha sido instaurada, em nosso País, por meio de um golpe militar. Mais ainda, um golpe liderado pelos militares de mais alta patente, os Marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, e que sequer republicanos eram - pelo menos até as vésperas do golpe.

A esse propósito, é ilustrativo o trecho de uma carta escrita por Deodoro a um sobrinho já em 1888, ano imediatamente anterior à Proclamação. Na correspondência, trazida a público no livro Os Militares e a República, do antropólogo Celso Castro, afirma o Marechal: “República no Brasil é coisa impossível, porque será verdadeira desgraça. (...) Os brasileiros estão e estarão muito mal-educados para ‘republicanos’. O único sustentáculo do nosso Brasil é a monarquia; se mal com ela, pior sem ela.”

Na verdade, a iniciativa da rebelião de 15 de novembro foi de um grupo de jovens oficiais da Academia Militar, conhecido na época como “mocidade militar”. Desse grupo faziam parte Euclides da Cunha, que mais tarde se tornaria famoso como o autor de Os Sertões; Cândido Rondon, que ficaria conhecido pelo trabalho indigenista; Serzedelo Corrêa, futuro Governador do Paraná; e Lauro Müller, que seria Governador de Santa Catarina.

Esse grupo conseguiu atrair para a radicalização política Benjamin Constant - seu mestre na Academia Militar, geralmente apontado como líder da conspiração - e se unir a Deodoro da Fonseca e a um pequeno grupo de oficiais com outro perfil.

É evidente que essa aproximação foi possível porque algumas idéias já eram comuns aos dois grupos, como a valorização da ascensão pessoal por mérito, a crença em doutrinas cientificistas, um ressentimento em não pertencer à elite social da época. Não é verdadeiro, contudo, que Deodoro tenha sido levado ao confronto com o governo monárquico a que servia em virtude de firmadas convicções republicanas. A pesquisa histórica deixa claro que o chefe militar chegou a esse rompimento por questões de defesa da honra do Exército e por especificidades da política do Rio Grande do Sul, que o indispuseram com o gabinete do Visconde de Ouro Preto.

Os alunos da Academia Militar, estes sim, haviam fundado um grupo republicano secreto dez anos antes. Vindos, em sua grande maioria, do que, na época, se poderia chamar de “Norte”, ou seja, todo o território ao norte do Rio de Janeiro, a região menos desenvolvida do Império, eles contavam entre 20 e 30 anos de idade e muitos não participavam, de forma alguma, da elite política, social ou econômica. Influenciados pelo positivismo, doutrina abraçada por seu mestre Benjamin Constant, os jovens estavam afinados com o cientificismo e valorizavam a ascensão por mérito. Pouco voltados para a carreira militar, acreditavam que a República era o regime político científico.

Desencadeada por uma parcela reduzida do Exército, a rebelião antimonárquica contou com participação popular nula. Coube a um dedicado propagandista da república, Aristides Lobo, retratar, em frase que se tornaria famosa, o estupor da população do Rio diante do desenrolar dos eventos: “O povo a tudo assistiria bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar”. Na condição de republicano autêntico, Aristides lamentava, profundamente decepcionado, o fato de o povo - que, pelo ideário republicano, deveria ter sido protagonista dos acontecimentos - não ter tido qualquer participação na Proclamação da República.

O desapontamento de Aristides Lobo foi compartilhado pelo conjunto dos verdadeiros republicanos e fica bem evidente nas frases de dois de seus maiores ícones. Benjamin Constant, logo depois de ter sido destratado pelo Marechal Deodoro, afirmou: “Não era esta a República que eu sonhava”. Silva Jardim, por seu turno, profetizou: “Se a República nascer das armas, morrerá pelas armas”.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, assim desprovida de participação popular, a implantação do novo regime caracterizou-se, mais uma vez, como “transição pelo alto”, tradição tão cara à nossa história política. Os militares progressistas - socialmente representantes dos extratos médios da população - foram rapidamente afastados ou cooptados pela elite agrária. Nascia a República Velha, a “República do Café com Leite”, verdadeiro pacto das oligarquias para a repartição e manutenção do poder.

Embora nossas instituições fossem formalmente democráticas, as relações políticas existentes jamais ultrapassaram os limites da atuação aristocrática. O direito de voto é rigorosamente restrito, dele estando afastado o enorme contingente de mulheres e analfabetos - com efeito, apenas dez por cento da população podiam votar. Esses poucos que podiam votar não tinham assegurado o direito ao sigilo do voto. Não existindo Justiça Eleitoral, as apurações sofriam toda espécie de manipulação, sendo os resultados definidos “a bico de pena”. Os partidos políticos tinham, via de regra, caráter meramente regional. Nesse quadro, pode-se afirmar que o sistema político brasileiro implantado logo após a Proclamação da República constituía uma espécie de negação do ideal e dos princípios republicanos.

A título meramente exemplificativo, podemos mencionar o Governo do segundo Presidente da recém-criada República, o Marechal Floriano Peixoto, que foi marcado por deportações de intelectuais, políticos e militares. Até o poeta Olavo Bilac - futuro patrono do serviço militar - seria mandado para os confins da Amazônia, por discordar da linha-dura implantada pelo Marechal. Ou ainda a presidência de Arthur Bernardes, entre 1922 e 1926, exercida com mão de ferro, em permanente estado de sítio.

Tampouco a Revolução de 1930, marco do encerramento da República Velha, foi capaz de promover uma ruptura histórica. Uma vez mais, a tradicional acomodação se fez presente, embora importantes avanços se tenham verificado, como a criação da Justiça Eleitoral e a introdução do voto feminino.

Nas seis décadas que se seguiram à Revolução de 1930, vivemos períodos alternados de normalidade democrática e de governos ditatoriais, com franca predominância destes últimos. Dessa forma, o ideal republicano, a consciência de cidadania só muito lentamente conseguiram evoluir.

O marco do despertar da nacionalidade para uma nova vivência político-social é, sem dúvida alguma, a Constituição democrática de 1988. É significativa, a esse propósito, uma inversão que se observa na Carta de 88 em relação a todas que a precederam. Enquanto todas as anteriores tratavam primeiramente da organização do Estado, a nova Constituição se ocupa, de início, dos direitos e garantias fundamentais. Trata-se de uma alteração aparentemente pequena, afetando a ordenação dos Títulos que compõem o texto constitucional. Poderia até passar despercebida. Mas, com certeza, não foi uma alteração fortuita. Com ela, quiseram os Constituintes sinalizar claramente para a ênfase, para a prioridade que deram ao caráter democrático-republicano da nova Carta, para sua natureza de Constituição cidadã.

A partir do processo constituinte de 1987-1988, o Brasil passa a viver um estágio bem diferenciado em sua experiência histórica. Amplia-se de modo significativo o conceito e a prática da cidadania entre nós. O ideal de democracia é hoje perseguido tendo em vista não apenas seus aspectos meramente formais, mas também as questões de fundo, aquelas que atingem a essência do regime. O fortalecimento dos mecanismos da democracia representativa se dá simultaneamente à valorização dos instrumentos de democracia participativa, fazendo com que, ao lado de instituições tradicionais, como os partidos políticos, a sociedade vá abrindo novos canais de participação.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, penso, de fato, que o povo brasileiro tem hoje mais motivos para comemorar o 15 de novembro do que teve no passado.

Se a República brasileira nasceu, paradoxalmente, prescindindo da vontade popular; se, ao longo de quase um século, os princípios republicanos estiveram, quase sempre, desfigurados pela debilidade e pela distorção dos mecanismos de participação popular - ou, pura e simplesmente, pelo arbítrio, pelo sufocamento das aspirações populares; hoje, a realidade é muito distinta.

A República festeja mais um aniversário em um momento positivamente especial. Vivemos um dos mais longos períodos republicanos de estabilidade política dentro do Estado de direito. As eleições gerais recentemente realizadas contaram com ampla e entusiástica participação de todos os segmentos da sociedade. As exigências de respeito ao patrimônio público, por parte daqueles que aspiram a cargos eletivos, são colocadas com muita firmeza pelo eleitorado. A conduta de responsabilidade na gestão fiscal é objeto de legislação específica recentemente editada, muito elogiada pelos formadores de opinião e pelo público em geral.

O conceito de cidadania cresce em prestígio. A prática da cidadania se fortalece e se dissemina. O “ser cidadão” adquire, enfim, uma densidade que jamais teve entre nós.

Por tudo isso, Srªs. e Srs. Senadores, hoje se justifica bradar: Viva a República!

Era o que tinha a dizer.

Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/11/2002 - Página 21870