Discurso durante a 130ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comemoração, amanhã, do Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem a Zumbi dos Palmares. Registro dos compromissos do futuro governo no combate às desigualdades sociais nas comunidades negras.

Autor
Emília Fernandes (PT - Partido dos Trabalhadores/RS)
Nome completo: Emília Therezinha Xavier Fernandes
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Comemoração, amanhã, do Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem a Zumbi dos Palmares. Registro dos compromissos do futuro governo no combate às desigualdades sociais nas comunidades negras.
Publicação
Publicação no DSF de 20/11/2002 - Página 22223
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, NEGRO, HOMENAGEM, VULTO HISTORICO, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
  • ANALISE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, NEGRO, BRASIL, VITIMA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, DIFICULDADE, ACESSO, EMPREGO, RESIDENCIA, FAVELA, BAIXA RENDA.
  • LEITURA, COMENTARIO, ARTIGO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DEMONSTRAÇÃO, TENTATIVA, IMPEDIMENTO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, REGISTRO, INSUFICIENCIA, RESULTADO, NECESSIDADE, EMPENHO, EFETIVAÇÃO, PROVIDENCIA.
  • COMENTARIO, PROGRAMA DE GOVERNO, CANDIDATO ELEITO, PRESIDENCIA DA REPUBLICA, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA, NEGRO, BRASIL.

A SRª EMILIA FERNANDES (Bloco/PT - RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, há pronunciamentos que se fazem desta tribuna, nesta Casa, que têm um significado muito mais amplo do que termos um Plenário nos escutando, até porque entendemos que o Parlamento tem a obrigação de incorporar determinados temas como meta, buscando constantemente perseguir e alcançar esses objetivos.

Então, queremos, também, dizer que se fala, muitas vezes, desta tribuna, para a sociedade brasileira, para os movimentos sociais organizados, para os nossos educadores, para os estudantes deste País e, principalmente, para aqueles movimentos que, na busca da garantia de direitos, combatem todas as formas de violência, todas as formas de discriminação, que, ainda, infelizmente, existem no nosso País.

Este tema que vamos abordar é exatamente um deles e tem esta característica, por isso, estamos mantendo a nossa inscrição, nesta tarde, fazendo um chamamento à sociedade brasileira para o tema que vamos abordar.

Há 307 anos, mais especificamente, no dia 20 de novembro de 1695, morria, neste País, Zumbi dos Palmares - o maior líder da resistência antiescravista das Américas. Em uma guerra de vida e morte, travada entre a escravidão e a liberdade, Zumbi figurou como um gênio militar, como o comandante do Quilombo dos Palmares - reduto de homens e mulheres livres, que chegou a abrigar mais de 30 mil habitantes.

Por sua capacidade de comandar, de resistir e por seu ideal de liberdade, de justiça e de dignidade que ajudaram a construir este País diante das inúmeras tentativas de destruição do Quilombo de Palmares, Zumbi encarnou os sentimentos mais significativos de dignidade humana que estão em seu ideário pela preservação da vida, pela implantação de um clima de justiça e pela busca incessante de liberdade. São sentimentos que estão atualizadas e que precisam ser resgatados constantemente no espírito, na consciência da gente deste tempo e do futuro que se avizinha.

Morto aos 39 anos de idade, Zumbi tornou-se herói nacional. Extrapolou sua figura, sua imagem e agora é reconhecido internacionalmente. Sua luta contra a discriminação racial permanece, ainda hoje, como um desafio para a sociedade. Por isso, a data de sua morte tornou-se um marco: o Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro. Trata-se de uma data para refletirmos sobre os avanços conquistados e os direitos ainda negados aos negros e negras deste País.

Sr. Presidente, em todos os Estados e cidades do País teremos, nesta semana e até o final do mês, atividades alusivas ao Dia Nacional da Consciência Negra. É necessário registrar que, na próxima quarta-feira, 20 de novembro, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, mais de 10 mil integrantes de entidades gaúchas de defesa da comunidade negra e de lideranças das comunidades quilombolas participarão da Marcha pelas Reparações ao Povo Negro.

A mobilização sairá do Parque Marinha do Brasil, às 17 horas, em direção a um ato show que será realizado no Largo Glênio Peres, no centro de Porto Alegre. Trata-se de um lugar de referência para todos os eventos democráticos, culturais e políticos em nossa Capital. A caminhada e uma diversidade de atividades integram a programação da 11ª Semana de Consciência Negra de Porto Alegre, que teve início no último dia 14 de novembro e prossegue até o final do mês.

Os promotores da Marcha distribuirão uma carta à população, falando da vulnerabilidade social a que está sujeita a comunidade negra, da exclusão do mercado de trabalho, da discriminação racial e da falta de oportunidades profissionais e econômicas, que trariam crescimento para essa população. O documento também reivindica políticas públicas contundentes que se proponham a amenizar essas desigualdades.

Srªs e Srs. Senadores, falo de políticas como as implementadas nos últimos três anos pelo nosso Governo Popular e Democrático do Rio Grande do Sul. Em nosso Estado, foram registradas 45 áreas remanescentes de quilombos. O Governo, em conjunto com entidades do movimento negro, trabalha no reconhecimento dos territórios para demarcação, concessão de títulos de propriedade para os remanescentes e ações de trabalho e renda, em convênio com a União.

            Na área da saúde, em 1999, decreto do Governo estabeleceu a política estadual de controle de hemoglobinopatias, como a anemia falciforme, doença que atinge parcela importante da população afrodescendente, já que um em cada 900 nascidos desenvolve a doença. A Secretaria de Saúde do Estado incluiu o quesito raça e etnia nos documentos de busca epidemiológica e no teste do pezinho. São todas reivindicações que valorizam e qualificam a luta e a expressão das comunidades negras.

            Esse programa contempla exames especializados, educação comunitária e divulgação sobre doenças e tratamento para doentes. Cremos que medidas nesse sentido devem ser adotadas em âmbito nacional para garantir a saúde plena da comunidade negra no Brasil.

            Sabemos, Srªs e Srs. Senadores, que a desigualdade social tem cor e endereço: é negra e mora na periferia, na favela, na vila, no morro, sob o viaduto e em comunidade quilombola. Comumente, a população negra é associada a uma minoria, o que denota total equívoco político e numérico. Negros e pardos somam 44,3% da população total brasileira. No entanto, ainda lhe são negados os mais básicos direitos.

De acordo com pesquisa sobre o Índice de Desenvolvimento Humano referente à população afrodescendente brasileira, constatamos que a qualidade de vida do negro no País fica em 101º lugar, e a do branco, em 46º.

Conclui-se, portanto, que os negros brasileiros têm qualidade de vida comparável a de países pobres como o Vietnã (que é o 101º lugar na classificação de desenvolvimento das Nações Unidas) e Argélia (100º lugar), onde o desenvolvimento humano é considerado de médio para baixo. Já os brancos têm qualidade de vida similar a de países de maior desenvolvimento, como a Croácia e os Emirados Árabes.

O Brasil, nos seus 502 anos de existência, deve seu desenvolvimento a quase 400 anos de escravização e de utilização de trabalho forçado de negros e negras. Temos, assim, dois “brasis”: um moderno e rico, com seus habitantes majoritariamente brancos e amarelos; e outro anacrônico e miserável, onde a grande maioria é formada por afrodescendentes.

Esse quadro não é apenas uma simples herança da escravidão, uma vez que o racismo vem sendo recriado e realimentado quotidianamente. Tomando como exemplo o mercado de trabalho, verificamos, em termos de renda, que existe uma ordem incontestável: homem branco, mulher branca, homem negro, mulher negra. Ou seja, os homens brancos recebem, em média, 6,3 salários mínimos; os negros e pardos, 2,9 salários mínimos. As mulheres brancas recebem 3,6 salários mínimos; as negras e pardas, 1,7 salário mínimo.

Verificamos que, em todas as regiões do País, homens e mulheres negros são evidentemente discriminados no mercado de trabalho. As desvantagens geradas por atitudes discriminatórias ocorrem ao longo de todo o ciclo socioeconômico de vida da população negra.

No caso da mulher negra, sabemos que a situação ainda é pior. Quando o assunto é desemprego, por exemplo, a maior taxa ocorre na população de mulheres pobres e negras, em todas as localidades pesquisadas.

Sr. Presidente, do ponto de vista legal, a nossa Constituição Cidadã, a de 1988, garante que a cidadania e a dignidade da pessoa humana são princípios estruturantes do estado democrático e de direito, proclamando-se a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Podemos considerar como avanços da Constituição de 1988, do ponto de vista do ordenamento jurídico:

- radicalização do tratamento da discriminação racial, transformando-a em crime imprescritível e inafiançável;

- criação da figura jurídica dos “remanescentes de quilombos”;

- abertura da possibilidade de ações reparatórias, seja em relação a esses últimos, seja em relação à população negra em geral, ao aceitar a possibilidade de ações afirmativas de reparação das desigualdades raciais.

Nossas normas estaduais e municipais sinalizam novas e mais promissoras possibilidades de enfrentamento eficaz das desigualdades raciais, porque, entre outros motivos:

- não se limitam a fixar princípios de não discriminação ou estabelecer sanções negativas;

- estabelecem medidas positivas para a promoção da igualdade, o que implica papel ativo, uma obrigação positiva para o Estado e não apenas uma abstenção (não discriminar);

- introduzem princípios e regras que, ao menos teoricamente, autorizam adoção de medidas destinadas a compensar as desigualdades;

- lançam mão de métodos persuasivos, preocupados em evitar que a discriminação aconteça e preocupados também com a educação para a tolerância;

- ao adotarem métodos persuasivos, sinalizam preocupações com causas e não apenas com resultados.

No entanto, sabemos que as distâncias entre conquistas legais e a concretização das ações políticas são muito grandes. Nesse sentido, é fundamental a persistência de estratégias, resistências e lutas históricas da população negra, para que se fortaleça e se reavive a memória, desde a escravidão até os dias atuais.

A Marcha Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, realizada em novembro de 1995, em Brasília, foi um momento marcante da atualidade. Ao reunir cerca de 30 mil pessoas, essa Marcha foi, sem dúvida, o maior evento sobre a questão racial na história do País, contribuindo, de lá para cá, para avançar, fortalecer a ampliar as ações políticas.

Fatos mais recentes foram as mobilizações e formulações para a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na África do Sul, em setembro de 2001, reunindo 16 mil pessoas de 173 países.

            Alguns aspectos das conclusões dessa Conferência foram: a escravidão considerada crime contra a humanidade; o comprometimento com a erradicação do racismo e o estímulo ao desenvolvimento político, econômico e social da população negra, principalmente das mulheres negras.

            O documento oficial brasileiro foi levado para a Conferência e depois retirado do seu relatório. O Governo brasileiro admite que, apesar do atraso histórico, houve alguns avanços, reconhece a sua responsabilidade histórica pelo escravismo e pela marginalização econômica, social e política dos descendentes de africanos e propõe como recomendação “alteração do Código Penal Brasileiro, para incluir agravantes de crimes como o racismo, a xenofobia e formas correlatas de intolerância”.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, todo esse acúmulo de lutas e proposições resultam em novas possibilidades de vida para a população negra e expressa a incessante tarefa sugerida aos setores comprometidos com a luta anti-racismo de denunciar as desigualdades, formular propostas e monitorar a implementação das políticas públicas.

            Mas é necessário avançar ainda mais. O atual momento político brasileiro - em que o País, em sua transição democrática de poder, busca garantir o tratamento da questão social como principal eixo estruturante para a reconstrução nacional - é extremamente favorável para que seja enfrentado com prioridade o debate e a formulação de propostas de combate ao racismo, o que contribuirá para a busca de garantia da eqüidade e justiça social.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, registro da tribuna desta Casa, para a sociedade, para o Parlamento brasileiro e para os movimentos organizados dos negros e das negras, os compromissos do futuro governo deste País, já publicamente divulgados, para que, na organização da sociedade, na movimentação do Parlamento e na luta de homens e de mulheres, façamos com que se tornem realidade:

- efetivar a titularidade da terra às comunidades remanescentes de quilombos urbanos e rurais;

- assegurar o desenvolvimento de programas de profissionalização de mão-de-obra e de geração de renda para os membros dos grupos excluídos, incluindo a população negra;

- introduzir, nas políticas de apoio à pesquisa científica e tecnológica, a igualdade de tratamento para os projetos referentes às relações raciais;

- garantir o cumprimento da Convenção III da Organização Internacional do Trabalho, que trata da assistência às situações de discriminação em relação ao emprego e na admissão do mercado de trabalho entre homens e mulheres, brancos e negros, brancas e negras, acompanhado dos dados estatísticos sobre desigualdade racial no mercado de trabalho;

- intensificar a implementação do Programa Integral da Saúde da Mulher, incluindo o desenvolvimento de programas específicos que contemplem o binômio raça/gênero;

- assegurar o desenvolvimento na detecção da anemia falciforme, da hipertensão e das miomatoses, males cuja incidência maior é na população negra e que acarretam repercussões na saúde reprodutiva;

- assegurar uma boa qualidade de ensino e a adoção de uma pedagogia que pregue a igualdade, que não seja sexista e que trabalhe a etnia como algo consistente da própria vida cultural do nosso País;

- desenvolver programas que assegurem igualdade de oportunidade e de tratamento nas políticas culturais;

- promover o mapeamento e o tombamento dos sítios e documentos detentores de reminiscências históricas dos quilombos bem como a proteção das manifestações culturais afro-brasileiras;

- estabelecer, definitivamente, como prioridade, programas de combate à violência racial, com foco especial para as condições vividas pela juventude negra;

- criar instrumentos e canais de participação que diagnostiquem, proponham, acompanhem, avaliem e fiscalizem a execução das políticas anti-racismo, com ênfase no fortalecimento institucional dos atores sociais que protagonizam essa luta;

- garantir o desenvolvimento de políticas de combate à feminilização da pobreza, com base na proteção do trabalho da mulher, mediante incentivos específicos que contemplem as mulheres negras, por meio de programas de acesso, de capacitação e de treinamento para o mercado de trabalho;

- garantir a implementação do programa de prevenção à violência contra grupos em situação mais vulnerável, como crianças, adolescentes, idosos, mulheres, negros e negras, portadores de deficiência, indígenas, homossexuais e trabalhadores sem terra.

É importante que o nosso Governo, que será liderado pelo nosso Presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, tenha consciência da importância de garantir a representação e a visibilidade dos grupos étnicos em todas as atividades: políticas públicas, campanhas, atividades de comunicação do Governo e de entidades que tenham investimentos político-econômicos da União.

Essa é a missão do País neste novo momento em que a dignidade, a justiça e o combate à pobreza e à exclusão são desafiadores. Ao mesmo tempo, a sociedade deve organizar-se, para que a resistência e a luta manifestem-se.

Esse Dia Nacional da Consciência Negra, quando resgatamos a história e fortalecemos a luta do presente com a perspectiva de um futuro melhor, precisa ser registrado nos Anais desta Casa como compromisso nosso, como compromisso do Parlamento, mas principalmente como compromisso do novo tempo que o Brasil viverá, quando a sociedade brasileira e os movimentos organizados de negros e negras ajudarão a resgatar essa grande dívida social.

Dessa forma, Srªs e Srs. Senadores, na inspiração de Zumbi dos Palmares, temos convicção de que estaremos contribuindo de forma efetiva para a construção e o fortalecimento de uma sociedade mais justa, mais igualitária, revertendo o processo histórico de exclusão da comunidade negra brasileira.

Era a homenagem que queria fazer à história de luta da comunidade negra, uma história que se perpetua durante os nossos dias e que, portanto, é sempre tema para os registros nos Anais desta Casa.

Muito obrigada, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/11/2002 - Página 22223