Discurso durante a 132ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

SOLICITAÇÃO DE ENCAMINHAMENTO AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, PELA MESA DO SENADO, DE CORRESPONDENCIA DA PROCURADORIA DA REPUBLICA CONTRARIA A CONCESSÃO DE FORO PRIVILEGIADO PARA CRIMES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JUDICIARIO.:
  • SOLICITAÇÃO DE ENCAMINHAMENTO AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, PELA MESA DO SENADO, DE CORRESPONDENCIA DA PROCURADORIA DA REPUBLICA CONTRARIA A CONCESSÃO DE FORO PRIVILEGIADO PARA CRIMES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
Publicação
Publicação no DSF de 22/11/2002 - Página 22465
Assunto
Outros > JUDICIARIO.
Indexação
  • COMENTARIO, POSSIBILIDADE, APROVAÇÃO, EXTENSÃO, FORO ESPECIAL, CRIME, IMPROBIDADE, ADMINISTRAÇÃO.
  • ESCLARECIMENTOS, ORIGEM, FORO ESPECIAL, PROCURADOR DA REPUBLICA.
  • MANIFESTAÇÃO, OPOSIÇÃO, FORO ESPECIAL, CRIME, IMPROBIDADE, ADMINISTRAÇÃO, DESRESPEITO, ARTIGO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, PREVISÃO, IGUALDADE, POPULAÇÃO, BRASIL.
  • SOLICITAÇÃO, REMESSA, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), ANALISE, EXTENSÃO, FORO ESPECIAL, CRIME, IMPROBIDADE, ADMINISTRAÇÃO, AUTORIA, PROCURADOR DA REPUBLICA, OBJETIVO, AUXILIO, ESTUDO, ASSUNTO.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Lindberg Cury, Srªs e Srs. Senadores, o Supremo Tribunal Federal interrompeu ontem, 20/11, o julgamento da Reclamação nº 2.138, que discute o foro privilegiado e a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), aos agentes políticos.

Até o momento, a tese que tem prevalecido é a do voto do Ministro Nelson Jobim. Segundo ele, os agentes políticos não podem ser julgados pela Lei de Improbidade Administrativa, porque já estavam submetidos a regime especial de responsabilidade, previsto anteriormente pela Lei nº 1.079, de 1950, que prevê os crimes de responsabilidade.

No caso em questão, a União, que é a reclamante, pretende ver extinto o processo que tramita no primeiro grau da Justiça Federal de Brasília, contra o Ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Mota Sardemberg. Ele foi condenado ao ressarcimento do Erário e à perda dos direitos políticos por oito anos por ter utilizado indevidamente aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB).

Após a leitura do voto pelo Ministro Nelson Jobim, Relator da ação, houve sustentação oral. O Advogado-Geral da União, José Bonifácio Borges de Andrada, defendeu a procedência da ação. No mesmo sentido, falou o Ministério Público, representado pelo Vice-Procurador-Geral da República, Haroldo Ferraz da Nóbrega.

Não puderam fazer sustentação oral a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), o Ministério Público do Paraná e a Procuradora da República no Distrito Federal Walquíria Quixadá. Eles se posicionaram contra a Reclamação e tentaram impugná-la e apresentar sustentação oral na tribuna. Porém tiveram o seu requerimento indeferido pela maioria dos Ministros no plenário.

A maioria entendeu que o Ministério Público tem interesse na causa, mas, perante o Supremo Tribunal Federal, a instituição é representada pelo Procurador-Geral da República. Nesse ponto, ficaram vencidos os Ministros Carlos Velloso, Celso de Mello, Ilmar Galvão, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio. Eles defenderam tese distinta, a de que o Procurador-Geral da República atua no Supremo como mero fiscal da lei e não como parte no processo.

Portanto, para essa corrente, a Procuradora Walquíria Quixadá poderia ter ingressado como interessada, já que atuou como parte na ação por improbidade contra o Ministro Sardemberg junto à primeira instância da Justiça Federal.

Terminada essa parte, o Relator do processo, Ministro Nelson Jobim, que havia anteriormente concedido liminar no processo, votou pela procedência da reclamação. De acordo com ele, o julgamento de um agente político, como Ministro de Estado, por um juiz de primeira instância é incompatível com a Constituição Federal (Art. 102, inciso I, letra “c”), que concede prerrogativa de foro a essas autoridades.

Nelson Jobim lembrou que essa prerrogativa não é privilégio pessoal dos agentes políticos, mas uma garantia para que possam exercer suas atribuições político-administrativas, que consistem em expressar a vontade soberana do Estado. Para o Ministro, os agentes políticos, além dos crimes de responsabilidade, podem ainda ser punidos pela lei penal comum, mas também desde que sejam julgados pelo juízo competente, conforme o previsto pela Constituição Federal. Não caberia, portanto, para o Relator, a submissão do agente político a uma outra lei para que fosse julgado por autoridade inferior.

“Se se quisesse introduzir essa mudança, ela haveria de provir de emenda constitucional”, defendeu Jobim. “E nessa hipótese, melhor seria suprimir de vez a competência desta Corte para processar e julgar os Ministros de Estado, em sede penal e de responsabilidade”, concluiu ele.

O Ministro deu exemplo de situações que derivam do processamento de autoridades pela primeira instância, como o afastamento cautelar do Presidente da República, do Congresso Nacional ou mesmo do Supremo Tribunal Federal.

Em seu voto, o Ministro criticou também a propositura de ações que classificou de “espetaculares”, derivadas da inadequada aplicação das leis, sendo que a maioria destituída de qualquer fundamento.

“O propósito notório é dar ao perseguidor uma aura de coragem e notoriedade e impor ao atingido o maior constrangimento possível”, afirmou ele, lembrando também a ampla divulgação pelos meios de comunicação dessas ações.

Em seu voto, também pela procedência da reclamação, o Ministro Gilmar Mendes ressaltou o argumento do Relator no sentido de que os delitos previstos pela Lei de Improbidade são “autênticos crimes de responsabilidade”. Além disso, para ele, se um agente político deve ser julgado por infrações penais comuns pelo Supremo Tribunal Federal, então não poderia ser julgado por instância inferior por delitos da Lei de Improbidade Administrativa, que pode acarretar penas bem mais graves do que a de alguns crimes comuns. Ele citou a perda do cargo ou dos direitos políticos.

Em seguida, também fazendo referência ao voto do Ministro Nelson Jobim, votaram a Ministra Ellen Gracie e os Ministros Maurício Corrêa e Ilmar Galvão no mesmo sentido. Após esses cinco votos pela procedência da ação, o Ministro Carlos Velloso pediu vista dos autos para melhor refletir sobre o tema. Para a conclusão do julgamento, faltam os votos de mais seis dos onze Ministros da Casa.

Caso vença a tese do Relator, o processo contra Ronaldo Mota Sardemberg, junto a 14ª Vara Federal do Distrito Federal, será extinto, sendo nula a condenação que sofreu.

Quanto ao tratamento da matéria na reforma do Judiciário, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania havia decidido acrescer ao art. 96 da Constituição Federal um parágrafo único, dispondo que “a competência especial por prerrogativa de função prevalece ainda ao inquérito ou a ação judicial, inclusive de improbidade, relativos a atos compreendidos nas atribuições administrativas do agente, sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”.

Sobre esse dispositivo, foi oferecida a Emenda nº 114 de Plenário, de autoria do Senador Pedro Simon, de natureza supressiva, que mereceu parecer favorável da CCJ. Vale destacar que a questão de foro especial por prerrogativa de função de agentes políticos mereceu tratamento acurado e restritivo pelo Relator da matéria, Senador Bernardo Cabral, que lembrou, à exaustão, o cancelamento da Súmula nº 394 do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Inquérito nº 687-4, de 25 de agosto de 1999, na esteira do voto do Ministro Sydney Sanches. Dizia a Súmula nº 394: “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Vê-se, pois, que o texto é bastante semelhante ao que se pretendia inserir no parágrafo único do art. 96 da Constituição Federal, fulminado pela emenda do Senador Pedro Simon. A única diferença era exatamente a explicitação do ato de improbidade como crime.

Não há, no texto, referências a foro privilegiado, quer no STF, quer no STJ ou nos Tribunais de Justiça, para os atos de improbidade administrativa.

Assim, a questão acaba por se limitar, realmente, ao debate hermenêutico que se trava agora no Supremo Tribunal Federal, no sentido de se estabelecer se o ato de improbidade administrativa de que trata a Lei nº 8.429/92 é ou não de natureza penal, quer como crime comum, quer de responsabilidade, como sustenta o Ministro Nelson Jobim, ou se é de outra ordem, como vêm advogando juristas oponentes dessa tese.

A respeito desse assunto, Sr. Presidente, recebi uma contribuição de excelente qualidade das Procuradoras da República que têm vivido esse problema. São elas as Srªs Procuradoras Maria Luísa Duarte, Isabel Groba Vieira e Mônica Nicida Garcia, que levaram adiante conclusões decorrentes da CPI do Judiciário, relacionadas tanto ao que ocorreu com o Juiz Nicolau dos Santos Neto como também com o Senador nesta Casa.

Gostaria de expressar a importância dessa contribuição sobre o tema do foro privilegiado.

Eis as palavras das Procuradoras acima referidas:

A corrupção é um dos problemas sempre presentes na história brasileira. O combate à corrupção e a outras formas de desvios de conduta dos agentes públicos, por outro lado, nem sempre foi efetivo e muito menos eficaz. Nem tanto, talvez, pela falta de instrumentos, mas antes pela inércia e complacência da própria sociedade, do povo ainda não muito consciente de ser e constituir uma República.

A sociedade, entretanto, mudou e acordou para a realidade de que a República é a res publica - é de todos; por todos e para todos deve ser cuidada. Os constantes ataques à coisa pública, por parte justamente daqueles que deveriam preservá-la, acabaram por fragilizá-la de tal forma que a sociedade se sensibilizou e compreendeu que os agentes públicos não cuidam do que é seu, para seu proveito próprio, mas, sim, do que é de todos, para o proveito de todos.

Não há mais, assim, complacência da sociedade para com o agente público que não pauta sua conduta por essa concepção de coisa pública, de res publica. A nova atitude e a nova disposição do povo brasileiro constituem, assim, campo fértil para a proliferação das ações de combate e punição dos agentes corruptos, dos agentes ímprobos, dos agentes que se desviam do código de conduta que a República impõe. A Constituição de 1988 trouxe os mecanismos necessários para que a vontade do povo se concretize.

A Administração Pública ganhou um capítulo todo dedicado à sua disciplina, tendo ficado expresso, no Texto Constitucional, que toda ela está sujeita aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. A intolerância da nova ordem constitucional para com o agente público desonesto ou para com aquele que age de forma delegada pela administração sem cumprir as diretrizes legais ficou expressa no texto, ao determinar que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao Erário. Nenhuma Constituição na história brasileira anterior à atual continha dispositivo tão contundente e tão significativo.

A Constituição da República de 1988 desenhou também um novo Ministério Público, encarregando-o da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, missão da qual não se esquivou, aceitou e vem cumprindo com reconhecida dedicação e eficiência. A defesa intransigente dos valores consagrados na Constituição, por meio do combate à corrupção e à improbidade, não tem poupado qualquer agente público cuja conduta tenha se desviado daquele código constitucionalmente estabelecido, seja ele de que espécie for: do servidor público concursado aos agentes políticos, eleitos ou não, incluindo assim parlamentares, prefeitos, governadores, ministros e Presidente da República.

Esse combate firme, decidido e permanente trouxe à tona o debate sobre o chamado foro por prerrogativa de função; na verdade, o foro privilegiado.

Estabelecer um foro especial, como prerrogativa de uma função pública exercida, significa retirar o julgamento de uma determinada causa da competência de um juízo, para outorgar essa competência a um outro juízo, normalmente o Tribunal de Justiça, o Tribunal Regional Federal, o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal, ou seja, às instâncias superiores, longe do olhar da população local, nas cidades onde se encontram os juízes federais e estaduais, que hoje julgam as ações de improbidade.

Diz-se que o estabelecimento desse foro diferenciado se dá não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício. O fundamento do foro privilegiado, revelado pelo Ministro Victor Nunes Leal, no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Reclamação nº 473, é o de que “presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele”.

Isenção do juiz e capacidade de resistir a influências que sobre ele se fizerem: essas as qualidades que se quer garantir quando se estabelece um foro especial.

Mas, pergunta-se: não são essas as qualidades exigíveis, indispensáveis e impostergáveis em qualquer juiz? É possível admitir-se, nesta quadra da história, que um juiz de uma comarca possa ser menos isento, imparcial e independente que um Ministro do Supremo Tribunal Federal? É possível admitir-se a existência de graus de isenção no seio da própria magistratura? Isenção, imparcialidade e independência não são atributos de todo e qualquer juiz que dispõe de um estatuto constitucional a lhe garantir o exercício isento, imparcial e independente de suas elevadas e graves funções? É claro que sim! Há, portanto, um vício de origem, no raciocínio que fundamenta o foro privilegiado, e que precisa ser desmascarado, para que esse foro privilegiado seja desmistificado. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal não são mais isentos, independentes e imparciais do que os Ministros do Superior Tribunal de Justiça, que também não são mais isentos, independentes e imparciais do que os Desembargadores dos Tribunais, que não são mais isentos, independentes e imparciais que os juizes de primeira instância. Todos são - ou pelo menos devem ser - igualmente isentos, independentes e imparciais, e nossa Constituição lhes dá instrumentos para o serem.

É que todos os juízes gozam igualmente das mesmas garantias de vitaliciedade, de inamovibilidade e de irredutibilidade de subsídio, ingressando na carreira, em sua grande maioria, pela via do concurso público de provas e títulos, não se verificando, mais, a precariedade das nomeações, que recaíam sobre pessoas escolhidas a dedo pelos governantes e detentores do poder, característica do Brasil-Colônia e do Brasil-Império, quando o foro privilegiado foi instituído.

Realmente, o foro especial por prerrogativa de função foi previsto no art. 179 da Constituição do Império, de 1824. Não se desconhece o que era o Brasil de 1824, ainda mergulhado num regime absolutista, com um regime de produção baseado no trabalho escravo, ainda dominado pelas oligarquias, pelos fazendeiros e senhores de engenho, que tinham total ascendência sobre os agentes públicos em geral e sobre os juízes, em particular, que lhes deviam as nomeações. Nessa época, em que o público e o privado se confundiam, em que o arrecadador de tributos usava o dinheiro arrecadado para suas próprias despesas, para depois acertar as contas com o fisco; em que, à falta de instalações adequadas, os juízes não raro realizavam audiências em suas residências particulares, recebendo as partes e ouvindo as testemunhas, era inconcebível falar-se em imparcialidade, em isenção, em independência. O foro especial talvez se justificasse, então, na prática.

Mas não é mais essa a realidade brasileira. Quase dois séculos depois da independência e mais de um século depois da proclamação da república, já conseguimos distinguir o público do privado, já conseguimos entender que o que é público é de todos, já conseguimos exigir que o agente público paute sua conduta pela busca do interesse público e não do seu interesse pessoal. Ainda temos oligarquias, mas já temos juízes concursados, independentes; ainda temos desvios de conduta, mas já temos um Ministério Público presente e atuante; abolimos a escravidão e já temos cidadãos que demonstram, em toda e qualquer oportunidade, que conhecem seus direitos e deveres e por eles zelam.

Somos, hoje, uma República. Uma República na qual todos devem ser tratados igualmente, onde prerrogativas devem ser interpretadas de acordo com a Constituição e não de forma ampliada. É isso, pelo menos, que diz nossa Constituição e é isso que devemos construir. Mas a República não se compatibiliza com privilégios. Na República, nenhum particular é dono do poder, mas todos os que o exercem devem ser considerados meros funcionários ou servidores do bem comum (res publica). Na República, não devem existir privilégios de qualquer espécie; não devem existir privilégios de foro.

A Constituição da República diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. É o princípio da igualdade, que deve ser todos os dias, todas as horas, todos os minutos, buscado.

Ora, o foro privilegiado não se compatibiliza com o princípio da igualdade. Ao contrário, o fere. Todos os agentes públicos, seja de que hierarquia forem, exercem cargos e funções pública, e esse exercício deve ser para todos igualmente garantido. E essa garantia não advém do estabelecimento de um foro privilegiado, mas sim do fato de que todos os juízes, hoje, seja de que grau forem, têm o mesmo estatuto consagrador de sua independência, imparcialidade e isenção.

Os juízes e os membros do Ministério Público, repita-se, não são mais nomeados ao bel-prazer dos donos do poder, mas conquistam seus cargos pela árdua via do concurso público. Na verdade, há os que são nomeados independentemente de concurso e são, precisamente, aqueles que pertencem aos Tribunais Superiores que constituem o foro privilegiado.

Esse foro especial não se coaduna com o princípio republicano. O foro especial não se coaduna com o princípio de igualdade. E se permanece hoje previsto no texto constitucional não é senão por força da inércia, da falta de vontade e de coragem de expurgá-lo, da tendência natural e cômoda de se manterem pretensos privilégios estabelecidos dentro de um contexto fático que não mais perdura e não mais o autoriza.

Se já há razões suficientes para se acabar com o foro por prerrogativa de função, há razões mais do que suficientes para não se admitir qualquer ampliação desse privilégio de foro.

Estender o foro privilegiado para as ações de improbidade, como se tem pretendido, constitui-se em um verdadeiro atentado aos princípios republicano e da igualdade, por tudo o que já se disse.

Mas há mais.

Estabelecer foro privilegiado num Tribunal significa suprimir instâncias de julgamento. Um servidor julgado pela prática de ato de improbidade por um juiz de 1o grau pode recorrer ao Tribunal de Justiça, para o Superior Tribunal de Justiça e, eventualmente, até para o Supremo Tribunal Federal.

Mas se o foro estabelecido para uma autoridade for o Supremo Tribunal Federal, realizado o julgamento nessa única instância, nenhum outro recurso poderá ser interposto, ficando, assim, frustrada qualquer expectativa, que é inerente à natureza humana, de manifestar um eventual inconformismo com a decisão tomada.

Há, ainda, uma razão prática, que de forma alguma é irrelevante: os tribunais são órgãos colegiados, vocacionados para o julgamento de recursos, e não para a instrução e julgamento de ações. Estas exigem uma agilidade que os tribunais não têm. No transcorrer dos processos, ninguém o ignora, há inúmeras manifestações das partes, juntadas de documentos, produção de perícias, oitiva de testemunhas, interrogatórios, audiências.

O Superior Tribunal de Justiça, por seus 33 Ministros, tem condições de processar, instruir os feitos e julgar todos os Governadores de Estado, Desembargadores de Tribunais, membros de Tribunais de Contas de Municípios, que lamentavelmente têm sido acionados por improbidade administrativa, a par de todos os milhares de feitos que já estão sob sua responsabilidade e que abarrotam prateleiras das secretarias?

O Supremo Tribunal Federal, por seus 11 Ministros, tem condições de processar, instruir os feitos e julgar os Ministros de Estado, os membros dos Tribunais de Contas, os membros do Congresso Nacional, entre outros, contra quem correm incontáveis e graves ações de improbidade administrativa, além de julgar todos os recursos extraordinários, as ações diretas de inconstitucionalidade, os mandados de injunção, as extradições, etc?

Os Tribunais de Justiça dos Estados teriam condições de assim proceder em relação aos Prefeitos, contra os quais correm grande número de ações por improbidade?

É óbvio que não! O Ministro Sidney Sanches, recentemente, julgando a Questão de Ordem 687-SP, quando se decidiu cancelar a Súmula 394, que mantinha o foro privilegiado, em matéria criminal, mesmo depois de cessado o exercício da função, deixou muito claro: “Objetar-se-á, ainda, que os processos envolvendo ex-titulares de cargos ou mandatos, com prerrogativa de foro perante esta Corte não são, assim, tão numerosos, de sorte que possam agravar a sobrecarga já existente sem eles. Mas não se pode negar, por outro lado, que são eles trabalhosíssimos, exigindo dos Relatores que atuem como verdadeiros Juízes de 1º grau, à busca de uma instrução que propicie as garantias que justificaram a Súmula 394”.

Houvesse uma justificativa teórica, jurídica, em que se estivesse fundado o estabelecimento de foro por prerrogativa de função, essas questões práticas poderiam e deveriam ser resolvidas e superadas. Mas, na medida em que essa justificativa não existe, as conseqüências práticas que podem advir de sua instituição adquirem cores dramáticas e devem ser definitivas no momento da opção política.

Foro especial por prerrogativa de função é privilégio. É foro privilegiado. Não se coaduna com a República que estamos tentando construir. Não se compatibiliza com o princípio de igualdade, que tanto precisamos enaltecer e respeitar. Não pode o foro privilegiado prevalecer e, muito menos, ser ampliado.

A não extensão do foro privilegiado para os casos de improbidade administrativa, aliás, já foi reconhecida por decisões judiciais, emanadas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, e que determinaram a continuidade das investigações e das ações perante o juiz de 1º grau.

Essas investigações e essas ações têm, assim, prosseguido, levadas a efeito por promotores e procuradores que, com dedicação e competência, munidos do instrumental que a proximidade com os fatos lhes outorga, têm conseguido resultados importantes em matéria de responsabilização de agentes ímprobos, como no famoso caso do TRT paulista. Essa atuação vem incomodando alguns poderosos, particularmente alguns agentes políticos, que agora se movimentam, buscando institucionalizar um privilégio que a Constituição não permite, tanto pela via do Judiciário, como pela via legislativa.

Estender o foro privilegiado para os casos de improbidade administrativa, porém, é chancelar um tratamento antiisonômico e anti-republicano, é permitir um verdadeiro atentado à Constituição.

Não é disso que precisamos. Precisamos, isto sim, ser mais República, e, para tanto, precisamos ter a coragem de não perpetuar, por inércia ou por comodidade, instituições que não se justificavam sequer na realidade do Brasil Império.

Sr. Presidente, requeiro, dada a qualidade da contribuição das Procuradoras da República Maria Luísa Duarte, Isabel Groba Vieira e Mônica Nicida Garcia, que seja encaminhado aos Ministros do Supremo Tribunal Federal a contribuição que acabo de ler, para que possam S. Exªs, não apenas os Ministros que já votaram essa matéria - Nelson Jobim, Helen Gracie, Maurício Corrêa, Ilmar Galvão -, no caso, de uma maneira, mas também para que o Ministro Carlos Velloso, que requereu vistas do processo, e os demais Ministros - pois são seis que irão votar - possam tomar conhecimento dessa contribuição que avalio importante para o exame desta matéria, tanto lá no Supremo Tribunal Federal como aqui, nas próximas semanas, quando vamos avaliar a proposta de emenda à Constituição sobre a reforma do Judiciário.

Eis, portanto, o meu requerimento. Que possa esta contribuição, na forma do que aqui registrei, ser encaminhada aos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Muito obrigado.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/11/2002 - Página 22465