Discurso durante a 136ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

HOMENAGEM A EUCLIDES DA CUNHA PELO TRANSCURSO DO CENTENARIO DA OBRA OS SERTÕES.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A EUCLIDES DA CUNHA PELO TRANSCURSO DO CENTENARIO DA OBRA OS SERTÕES.
Aparteantes
José Sarney.
Publicação
Publicação no DSF de 28/11/2002 - Página 22922
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, PUBLICAÇÃO, LIVRO, OS SERTÕES, AUTORIA, EUCLIDES DA CUNHA (BA), ESCRITOR, HISTORIA, GUERRA, MUNICIPIO, CANUDOS (BA), ESTADO DA BAHIA (BA), ELOGIO, IMPORTANCIA, OBRA LITERARIA.
  • HOMENAGEM, LEITURA, PREAMBULO, OBRA LITERARIA, AUTORIA, WALNICE NOGUEIRA GALVÃO, ESCRITOR.
  • ANUNCIO, APRESENTAÇÃO, FILME, HOMENAGEM, OBRA LITERARIA, ESCRITOR, REGISTRO, CONVITE, JOSE SARNEY, SENADOR, PARTICIPAÇÃO, ESPETACULO.
  • ELOGIO, DIRETOR, PESQUISADOR, FILME, ESFORÇO, DESCRIÇÃO, HISTORIA, OBRA LITERARIA.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Carlos Wilson, Srªs e Srs. Senadores, comemora-se, no dia 2 de dezembro de 2002, o centenário da publicação de Os Sertões. Vale lembrar a frase de Monteiro Lobato de que um país se faz com homens e livros. Não há dúvida de ambos: o homem Euclides da Cunha e sua obra maior Os Sertões são fatores do maior relevo na construção da Nação brasileira.

Embora o homem Euclides tenha há muito nos deixado, permanece o seu exemplo de admirável integridade intelectual e humana. Permanece, sobretudo, esse livro, singular em toda a literatura universal, ao qual o homem Euclides dedicou o melhor de seus esforços e o brilho intenso de sua incomparável inteligência.

Os Sertões não são, contudo, produto de um só homem. Por meio dele, expressa-se toda uma comunidade, toda uma experiência histórica. Essa experiência é a dos habitantes do sertão, dos sertanejos de modo geral; e é, muito particularmente, a da comunidade dos seguidores de Antonio Conselheiro, que se fixaram no arraial de Canudos, personagens de uma experiência histórica de trágico desfecho no ano de 1897.

Euclides da Cunha nasceu em 1866, em Cantagalo, no Rio de Janeiro. Com a perda da sua mãe, aos 3 anos de idade, o menino Euclides passou a viver com parentes, freqüentemente mudando de cidade. Já rapaz, a escassez dos seus recursos financeiros contribuiu para que escolhesse o curso de Estado-Maior e Engenharia Militar da Escola Militar, onde recebia um modesto soldo. Lá tomou contato com as idéias positivistas, evolucionistas e republicanas, que desfrutavam de crescente prestígio nos quartéis.

Ardoroso republicano, Euclides vive um episódio, no ano de 1888, que o faz momentaneamente famoso na Capital do Império. Quando da inspeção do Ministro da Guerra, o jovem cadete lança sua espada ao chão, em protesto político. Euclides será, por esse feito, desligado da carreira militar. Recebe, então, convite de Júlio Mesquita para escrever no jornal A Província de S.Paulo, que logo se tornará, com a proclamação da República, O Estado de S. Paulo. Não é à toa, pois, que O Estado de S.Paulo sempre recorda a história de Euclides da Cunha e de Os Sertões. Afinal de contas, suas histórias se confundem. Trata-se de uma história em que Euclides da Cunha teve um papel fundamental, contribuindo para que O Estado de S.Paulo se tornasse um dos principais jornais de nosso continente.

A mudança do regime fez com que Euclides fosse reconduzido ao Exército, concluindo o curso de Engenharia Militar e recebendo a patente de primeiro-tenente. Não se adaptou, entretanto, à carreira militar e passou a trabalhar como engenheiro para o Governo de São Paulo, ao mesmo tempo em que voltou a colaborar na imprensa.

Os acontecimentos da guerra de Canudos levam-no a escrever dois artigos sobre o assunto e, em seguida, a viajar para o palco das operações, como correspondente de O Estado de S.Paulo, empenhando-se em relatar os eventos da quarta e última expedição das tropas governistas, bem como a analisar os antecedentes, o contexto e o significado do conflito.

O livro Os Sertões será escrito ao longo dos 4 ou 5 anos seguintes, principalmente em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde trabalha na reconstrução de uma ponte. O escopo do livro torna-se muito mais amplo do que o das reportagens que o antecederam. Seguindo as orientações deterministas vigentes na época, Euclides pretende explicar o momento histórico pela ação do meio e da raça, dividindo o livro em três partes que lhes correspondem: a terra, o homem, a luta. Ademais, sua visão do conflito entre os camponeses e as tropas governistas sofre substancial mudança.

Sr. Presidente, um fato marcante para qualquer um que se aventure por Os Sertões, de Euclides da Cunha, é o seu estilo. Parecendo, de início, tão impenetrável quanto à caatinga vai, aos poucos, arrebatando nossa imaginação e emoção. A sua descrição da terra sertaneja recebe, juntamente com as contribuições dos mais diversos conhecimentos científicos da época, uma impressionante dramaticidade, pela qual os elementos naturais ganham vida e se fazem quase humanos.

A caracterização da experiência humana nos sertões nordestinos é tão brilhante quanto comovente, em que pesem os vários reparos que devem ser feitos. Preso aos esquematismos de um pensamento racista que passava então por científico, Euclides preocupa-se com a sorte do homem brasileiro em geral, produto da mestiçagem de várias etnias. O sertanejo, particularmente, expressaria a persistência de elementos mais arcaicos, refratários ao influxo da civilização que chegava pelo litoral.

Quando Euclides da Cunha erra pela ciência, que tanto evoluiu desde seu tempo, ele logo acerta pela poesia, pelas qualidades excepcionais do escritor. Em outras palavras, acerta por sua sensibilidade de observador, agudamente atenta aos sofrimentos e grandezas dos seres humanos comuns. Assim é que o retrato do sertanejo, mesmo sofrendo das distorções de certos preconceitos, sai marcado por profunda empatia. Sua aparência, desgraciosa e fatigada à primeira vista, esconde um dinamismo e energia que impressionam, tão logo os acontecimentos o exijam. “É antes de tudo um forte”, na expressão antológica, aquele que enfrenta sem abatimento ou queixa as duras lides, as adversidades do sertão.

O Sr. José Sarney (PMDB - AP) - Concede-me V. Exª um aparte?

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Com muita honra, Senador José Sarney, concedo o aparte a V. Exª, que tão bem conhece a literatura brasileira e, obviamente, Os Sertões, de Euclides da Cunha.

O Sr. José Sarney (PMDB - AP) - Senador Eduardo Suplicy, quero associar-me ao registro que V. Exª faz, nesta tarde, dos 100 anos da publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha. V. Exª tem sido um homem que se preocupa não só com os fatos políticos deste País, mas também, nos diversos momentos em que nós todos devemos lembrar figuras da nossa literatura, eventos da nossa história literária, V. Exª tem sempre comparecido a essa tribuna. V. Exª hoje, nesta tarde, expressa um sentimento que é muito bom de ser expresso pela classe política brasileira diante de um fato tão extraordinário como este, da comemoração dos 100 anos de um livro que passou a ser uma obra definitiva na história da literatura deste País, Os Sertões. É um livro monumental. Quando começa a ler as 60 primeiras páginas, dedicadas à descrição da terra, o leitor não se sente desestimulado quando enfrenta as outras 150 páginas, em que ele descreve o homem de uma maneira magistral, para finalmente entrar no que se refere à luta de Canudos, que é a terceira parte do livro. De linguagem dominadora, vai ao poético para depois descer ao científico; e não fica só nos detalhes, mas também nos grandes vôos com que ele procura definir o corpo desse livro tão bem construído. Quando chegamos àquele desespero das páginas finais, nosso coração se dilacera. Agora tive a oportunidade de reler mais uma vez Os Sertões, porque fui convidado a fazer o prefácio de sua edição comemorativa deste ano, e pude ter a noção de como é gigantesca a obra de Euclides da Cunha. S. Sª disse que não é um livro de defesa - é de denúncia -, profundamente dedicado a estudar o homem e as sub-raças do sertão, e que constituem a parte fundamental do livro. Ele é pessimista quando diz que aquele simplório homem do sertão, na figura do jagunço e do tabaréu, a civilização destruiria. Somos testemunhas de que eles permanecem ainda nos sertões brasileiros, principalmente nos sertões onde se desenrolou a Guerra de Canudos. Verificamos que, de certo modo, nas velhas raças do Brasil, podemos ter uma longa visão desse tempo todo. Presume-se que a inspiração para o nome do livro Os Sertões tenha vindo de quando ele leu uma crônica de Machado de Assis, sobre o livro de Coelho Neto, meu conterrâneo, quando escreveu um livro sobre sertões. Nessa crônica, Machado de Assis fala que ainda havia de surgir um escritor para escrever um livro sobre sertões. E esse escritor aparece: Euclides da Cunha, a quem Machado convidou a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Mas ele não quis. Pediu a Rio Branco que o convencesse a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Como V. Exª mesmo fixou, esse foi um livro escrito em São Paulo, em Rio Pardo, quando ali passou 30 anos servindo, em sua carreira militar. Em 3 anos escreveu o livro, de 1898 a 1901. O livro saiu em 1902, pelos Editores Lambert, e encontrou grande sucesso. Da primeira vez não houve exatamente um grande sucesso, mas, a partir da segunda edição, quando o próprio Euclides disse que desejava fazer aquela edição como definitiva e respondeu a algumas indagações, aí, então, o livro ganhou sua independência como grande obra. Euclides passou a ser o autor dos sertões, assim como o sertão passou a dominar a figura de Euclides da Cunha. Realmente, V. Exª aponta um momento dos mais extraordinários da literatura brasileira quando, aqui no Senado, relembra, nesta tarde, o centenário de Os Sertões. Enquanto existir neste País o homem, a literatura, a força da palavra escrita, evidentemente Os Sertões estará incluído como um dos livros mais definitivos já criados pela inteligência do nosso País. Muito obrigado a V. Exª pela gentileza de conceder-me participar desse discurso brilhante que profere neste instante.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Muito obrigado, Senador José Sarney. V. Exª demonstra conhecimento em profundidade dessa obra tão importante para a História do Brasil, a história de nossa literatura, que vem sendo comemorada de inúmeras formas, seja ali em São José do Rio Pardo, seja na Bahia, na terra de Canudos.

Tive oportunidade de conhecer a região de Os Sertões quando Lula fez a sua caravana de cidadania vindo desde Pernambuco até São Paulo, São Bernardo, passando pela região de Canudos. Ali pude verificar, não propriamente Canudos, que hoje está sob as águas da represa ali criada, mas o local onde às vezes ressurge.

V. Exª, como aquele que escreve o prefácio do mencionado livro, torna-se, então, parceiro de uma outra notável escritora brasileira, talvez aquela que mais aprofundadamente escreveu sobre Os Sertões e que, pela Editora Ática, escreveu um prefácio bem como a edição crítica tão notável, Professora Walnice Nogueira Galvão, na série Bom Livro Especial, Euclides da Cunha, Os Sertões - Campanha de Canudos.

Prezado Senador José Sarney, há uma passagem deste prefácio que me comoveu. Vou ler uns trechos, em homenagem a Walnice Nogueira Galvão:

Tal é, em linhas gerais, a complexa questão da composição de Os Sertões. E a maneira como o texto a enfrenta está à altura, ao pôr em jogo recursos nada simplistas ou lineares, acentuados pelas galas de uma retórica do excesso e pela exacerbação de um discurso persuasivo. Para amarrar a matéria, Euclides tomou ainda emprestada dos canudenses milenaristas e messianistas - que ali se concentraram para esperar o Juízo Final anunciado pela chegada do novo século, numa vida de oração e penitência para salvar a alma - a visão escatológica. E mostra como, através da inversão demoníaca das imagens bíblicas que presidem à crença salvacionista, é possível aderir ao ponto de vista deles. Isto se efetiva através da mimese do grande sintagma narrativo da Bíblia, por meio do qual é traçado o arco que vai da criação do arraial de Canudos, o Gênesis bíblico, até seu aniquilamento pelo fogo, o Apocalipse, em conjunção com as profecias das sagradas Escrituras.

Euclides, por sua formação como engenheiro militar, era adepto do progresso e da ciência, o que já se vê na escolha da profissão. Nunca lhe tinha ocorrido que a modernização é causa de dores e perdas para os pobres, os quais chacina sem piedade quando os encontra em seu caminho. Abrir uma estrada de ferro. Escavar uma barragem. Perfurar uma mina. Implantar um aeroporto ou base aérea. Urbanizar o centro de uma cidade. Automatizar uma fábrica. Adotar a reengenharia em uma empresa. Grilar, registrar no cartório e cercar áreas devolutas, tornando de um só aquilo que era de todos. Desativar ou relocalizar uma indústria. Alinhar a economia de um país ao mercado globalizado. Ou mesmo substituir uma monarquia por uma república.

São todos, em diferentes instâncias, fenômenos da modernização. Tanto Euclides acreditava nela que termina por condenar a guerra no fecho do livro, dizendo que os canudenses deviam ter sido tratados a cartilha e não a bala, concluindo pela ilusão ilustrada de acreditar na educação como panacéia para a iniqüidade.

Gostaria, Senador José Sarney, de informar V. Exª e de transmitir-lhe um convite. O Teatro Oficina, na Bela Vista, no próximo dia 2, às 18 horas, apresentará Os Sertões, sob a direção de José Celso Martinez Correa, que também faz o papel de Antonio Conselheiro. Certamente, José Celso gostaria, se possível, de contar também com a presença de V. Exª.

E quero aqui homenagear José Celso Martinez Correa por esse seu trabalho. Há anos, ele o vem preparando para apresentá-lo agora, por ocasião da comemoração dos cem anos.

As descrições de Euclides da Cunha, da comunidade de Canudos e de seu líder, bem como o seu relato e a sua interpretação do conflito armado em que aquela foi dizimada, caracterizam a obra.

Para Euclides da Cunha, tão marcado pelo Positivismo, o cearense Antonio Maciel, dito o Conselheiro, deveria ser “um documento vivo de atavismo”, um caso patológico de “psicose progressiva”, que entrou “para a história como poderia ter ido para um hospício”. Euclides reconhece, entretanto, que o que faz com que Antonio Conselheiro não se torne um simples louco é o fato de que expressa em profundidade o mundo de onde surge e em que passa a ser um protagonista de relevo. Esse “grande homem pelo avesso”, como o caracteriza, é capaz de gestos e ações verdadeiramente grandiosos.

Após duas décadas de peregrinações no interior do Nordeste, a princípio solitárias, Antonio Conselheiro vai reunindo um número cada vez maior de fiéis em torno de si. Estes mostram-se prontos a segui-lo aonde quer que vá, a ouvir suas prédicas, a participar de seus mutirões para construir igrejas e cemitérios, obtendo apenas o suficiente para viver. Seus sermões falam do desmantelo dos tempos de então, dos erros nos costumes, da lamentável separação entre a Igreja e o Estado que adveio da República, de um mundo melhor que se avizinha.

Começam os conflitos com as autoridades civis e religiosas, assim como com os detentores do poder econômico, preocupados com a crescente popularidade do Conselheiro. Este vai procurar abrigo com sua gente na velha fazenda de Canudos, abandonada à beira do rio Vaza-Barris, protegida pelas serras do Cambaio e Canabrava. Lá é fundado o Império de Belo Monte, que cresce vertiginosamente. Os moradores, homens, mulheres e crianças, ajudam-se uns aos outros na construção das casas; os alimentos são igualmente distribuídos. Todos os que chegam à comunidade e assim o desejam são a ela integrados, num espírito comunitário que faz lembrar A Utopia, de Thomas Morus, e todos aqueles que querem construir um mundo mais solidário.

Iniciam-se as expedições militares contra a cidade de Belo Monte ou Canudos, já então com uma população estimada entre 10 e 25 mil habitantes, o que a tornava uma das mais populosas da Bahia. As duas primeiras expedições foram prontamente rechaçadas. A terceira, preparada com estardalhaço e muitos recursos, reúne 1.300 soldados sob o comando do Coronel Moreira César, que é morto no primeiro ataque. A derrota faz-se completa, requerendo uma nova expedição, com 8 mil homens e poderoso aparato bélico,que termina por incendiar a cidade de Canudos e massacrar os seus habitantes.

Acompanhando a guerra de perto, a visão maniqueísta de Euclides da Cunha, da luta da civilização progressista e republicana contra a barbárie monarquista e fanática, desmorona. A crueldade e a covardia empregadas pelas forças governistas são descritas em seu livro de modo pungente, sem falseamentos. A campanha militar, que se queria gloriosa, aparece em tintas sombrias, denunciando Euclides o massacre organizado, a prática sistemática das execuções sumárias.

Não faltam, entretanto, em Os Sertões, momentos em que os combatentes demonstram heroísmo e intensa coragem. Euclides manifesta larga admiração pela persistência e firmeza dos jagunços de Canudos, lutando nas condições mais adversas, assolados pela desnutrição e pela superioridade das armas adversárias. Um destes episódios marcantes é o do prisioneiro negro, de aparência transtornada pelos rigores da luta e pela fome, que mostra espantoso brio no momento de sua execução improvisada. Como o cabo de esquadra que procurava cingir-lhe o pescoço com a corda tivesse dificuldade em desincumbir-se da tarefa, pela maior estatura do condenado, este mesmo o ajuda, tranqüilamente ajeitando a corda e enlaçando o próprio pescoço. Neste momento, revelam as palavras comovedoras de Euclides:

Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro, aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte. Seguiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável, feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos.

A epopéia sangrenta testemunhada por Euclides da Cunha, assim como o contato direto com a terra e o homem sertanejos, alteram em profundidade sua compreensão da problemática que dera origem ao conflito. O que movia a comunidade de Belo Monte não era a questão política, mas uma muito mais profunda questão social. O divórcio entre as civilizações do litoral e do sertão deveria ser superado. Condenando a guerra, Euclides concluía o livro dizendo que os sertanejos deviam ser educados e integrados ao conjunto da Nação, tratados à cartilha e não à bala.

O decorrer do tempo, no entanto, trouxe novas e mais completas abordagens da comunidade de Belo Monte e do seu trágico confronto com as forças governistas. Rui Facó e Nelson Werneck Sodré passaram a interpretar o episódio como uma manifestação de conflito entre classes sociais. Nas palavras de Rui Facó, publicadas em 1963,

O movimento messiânico de Canudos, sob a liderança carismática de Antonio Vicente Mendes Maciel, foi expressão da extrema pobreza das massas rurais, em luta armada contra os potentados latifundiários, e não simplesmente uma conseqüência de fanatismo religioso.

            Não se pode deixar de ressaltar a imensa importância da dedicação do historiador sergipano José Calasans para ampliar nossos conhecimentos dos eventos de Canudos. Ele começou suas pesquisas ainda na década de 40, entrevistando vários dos sobreviventes e levantando inúmeras outras fontes. Despido dos preconceitos de um século atrás, José Calasans, que faleceu no ano passado, aos 85 anos, desenvolveu profunda empatia com a comunidade desaparecida de Belo Monte, chegando a definir-se como um “conselheirista”.

Há, de fato, muito a ser valorizado naquela malograda experiência comunitária, na qual se nota, hoje, o empenho para fazer com que as pessoas desvalidas do sertão tivessem sua dignidade reconhecida, independentemente de quaisquer determinantes socioeconômicos ou étnicos. Constatamos, na construção do arraial de Canudos, intuições profundas dos conceitos de cidadania e de justiça social.

É preciso ir além de Euclides da Cunha em busca da verdade histórica mais completa sobre a comunidade de Canudos e a guerra que a exterminou, Sr. Presidente, Senador Bello Parga. O que não é possível é dispensarmos o imenso e magistral legado euclidiano, que tanto amplia nossa consciência da Nação brasileira, com sua grandeza e seus problemas. Sem Os Sertões, sem o vigor de seu pensamento e de sua expressão artística, o movimento liderado por Antonio Conselheiro estaria muito mais esquecido, como tantas outras organizações comunitárias e revoltas populares esmagadas pela repressão dos poderosos.

Abro um parêntese, Sr. Presidente, para agradecer a contribuição do assessor João Francisco, do Senado Federal, que me ajudou na elaboração de tal memória sobre a obra Os Sertões.

Introduzindo na consciência histórica brasileira a “pessoa coletiva”, no dizer de Walnice Nogueira Galvão, dirigindo um olhar interessado e comovido aos pobres do sertão, Euclides da Cunha pôde superar as limitações da época e trazer até os dias de hoje o seu vivíssimo apelo pelo fim das desigualdades imensas que dividem a sociedade brasileira.

Possa o conhecimento e a memória de Os Sertões nos encher de energias, ainda mais agora que o Brasil elege Presidente da República uma das pessoas que estão honrando a memória daqueles que viveram em Canudos. Refiro-me, obviamente, a Luiz Inácio Lula da Silva, que há poucos dias, quando foi ao interior de Pernambuco, a Caetés e Garanhuns, conforme noticiou a imprensa, foi saudado nas ruas por toda a população das duas cidades. Ali estava alguém que percorrera, há poucos anos, novamente, a trajetória que fez quando menino, saindo da caatinga e de lugares como Canudos.

Possam os brasileiros ver, presenciar e testemunhar a transformação de nossa Nação na direção de uma civilização justa, como todos aqueles que habitaram Canudos ao tempo de Antonio Conselheiro tanto queriam. Senador José Sarney, tenho a convicção de que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva contribuirá em muito para que essa esperança seja efetivamente realizada.

Muito obrigado.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/11/2002 - Página 22922