Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

IMPORTANCIA DA REFORMA POLITICA, ORA EM DISCUSSÃO NAS DUAS CASAS DO CONGRESSO NACIONAL.

Autor
Roberto Freire (PPS - CIDADANIA/PE)
Nome completo: Roberto João Pereira Freire
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA POLITICA. SISTEMA DE GOVERNO.:
  • IMPORTANCIA DA REFORMA POLITICA, ORA EM DISCUSSÃO NAS DUAS CASAS DO CONGRESSO NACIONAL.
Publicação
Publicação no DSF de 19/12/2002 - Página 27033
Assunto
Outros > REFORMA POLITICA. SISTEMA DE GOVERNO.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, BRASIL, CONSOLIDAÇÃO, REGIME POLITICO, DEMOCRACIA, IMPLEMENTAÇÃO, DIREITO A IGUALDADE, LIBERDADE DE PENSAMENTO, ORGANIZAÇÃO, PARTIDO POLITICO, ESTABELECIMENTO, VOTO, LEGITIMIDADE, SOBERANIA POPULAR.
  • REGISTRO, NECESSIDADE, EXECUÇÃO, REFORMA POLITICA, AMBITO NACIONAL, MANUTENÇÃO, ESTADO DEMOCRATICO, CRITICA, LIMITAÇÃO, PARTIDO POLITICO, IMPOSIÇÃO, FIDELIDADE PARTIDARIA.
  • DEFESA, PARLAMENTARISMO, AMPLIAÇÃO, PARTICIPAÇÃO, CIDADÃO, REPRESENTAÇÃO POLITICA, DEMOCRACIA.

O SR. ROBERTO FREIRE (Bloco/PPS - PE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Pais, nos primeiros meses do próximo governo - com toda certeza -, debruçar-se-á sobre um tema de suma importância para a democracia brasileira: a reforma política. Ela não é uma reforma qualquer, pois tem força para condicionar a qualidade da democracia que queremos e a dimensão do grau de cidadania que almejamos para toda a Nação - se mais restrita e vinculada a interesses de elites, se mais porosa e, portanto, permeável a todos os segmentos sociais, sem distinção.

Falo em nome de um partido acostumado a muitas lutas e venho discutir o tema não em função de qualquer receio do nosso desaparecimento enquanto agremiação política, particularmente por força da chamada cláusula de barreira a vigorar em 2006. Portanto, ao longo de nosso texto, o PPS não critica as reformas políticas aventadas pelos partidos do governo FHC no Senado Federal e tão propaladas pela mídia como parte de uma estratégia de autodefesa, de sobrevivência. Pelo contrário, durante tantos anos, passando por ditaduras de todo tipo - na clandestinidade sob dura e, em alguns momentos, feroz repressão - e mantido na ilegalidade mesmo em governos de democratas amedrontados como em toda a década de 50, não nos abatemos, não fomos extintos nem inviabilizados e aprendemos a gostar, a respeitar e a lutar, com paixão e com idéias, pela mais ampla liberdade do nosso povo, que tem como uma das premissas a mais ampla liberdade partidária.

Proclamamos que não queremos privilégio de nenhum tipo, nem mesmo em nome de nossa história. O PPS só aceita ser eliminado do cenário político nacional pelo voto e não por artimanhas e astúcias de políticos, democratas ou não, que imaginam ser o seu poder algo duradouro e não passível de mudanças. É uma idiotice completa os grandes partidos imaginarem que poderão se perpetuar em função da lei e à sombra do poder e de suas benesses. Só para ficarmos em dois exemplos, um antigo e outro bem mais recente: o primeiro tem a ver com a Arena - “o maior partido do Ocidente”, como propalava o seu presidente à época, o hoje Senador Francelino Pereira -, que acabou antes da própria ditadura que tão vergonhosamente serviu; o segundo é a desmoralização da chamada “verticalização” imposta abusiva e, no nosso entendimento, inconstitucionalmente pelo TSE nestas eleições de 2002. Nada resiste à soberania popular; portanto, deixemos a democracia livre.

Não é possível afirmar que a questão da reforma política seja nova para nós ou que esteja se apresentando pela primeira vez à discussão no Parlamento e na imprensa. Na verdade, a democracia representativa brasileira tem experimentado, desde os tempos do Império, as mais diversas engenharias institucionais. Já experimentamos o voto distrital, listas fechadas, listas abertas, sistemas majoritários e proporcionais, fidelidade partidária; enfim, tudo o que agora se apõe como novo foi testado em nossa democracia, mesmo quando ela ainda não era universalizada. O que, entretanto, é mais contundente e menos debatido é que a maior parte das reformas político-eleitorais passadas foi feita para garantir a hegemonia das oligarquias regionais - como no caso de liberais e conservadores se revezando no poder até o fim da República Velha - ou para garantir a grupos no poder a continuidade de suas gestões, ainda que pouco democráticas ou representativas da pluralidade social.

Recuando menos no tempo, é verdadeiro que muitas das questões agora debatidas varrem, com maior ou menor intensidade, a vida política dos últimos 15 anos. A própria Constituição de 1988, ao determinar a realização de plebiscito a respeito da forma do Estado e do sistema de governo, manteve o intenso debate acerca do assunto que opôs, na imprensa e nas campanhas de rua, presidencialistas e parlamentaristas, estes últimos divididos em monarquistas e republicanos.

Sou daqueles que vejo no sistema político uma espécie de cartão postal do conteúdo democrático de um país. Quando analisamos o século passado ou mesmo o período da República Velha, o que nos chama a atenção mais decididamente não é tanto o grau de desenvolvimento econômico das sociedades, mas sim como elas se representavam, como as liberdades eram expressas nas leis e no cotidiano, como funcionavam os parlamentos e se estes se submetiam à tutela do poder. O tema democracia é tão candente que os nossos grandes homens públicos têm seus nomes gravados diretamente no processo da luta democrática e por maiores liberdades.

Com certeza, dentro de um século, só para dar um exemplo, o futuro voltará seus olhos para trás e, ao analisar a era FHC e o governo Lula, não estará vasculhando tão intensamente no passado o tema Previdência Social, sistema Tributário, ou o novo serviço público e suas agências, de grande importância conjuntural e até estratégica para todos nós. Se o fizer, o objetivo estará relacionado ao posicionamento das forças políticas, ao alinhamento dos partidos e, principalmente, ao comportamento dos movimentos sociais em relação ao conjunto da reforma do estado brasileiro. Enfim, contemplará a República e analisará como a cidadania, no final do século XX e início do século XXI, expressou-se e se fez representar em nossas instituições políticas.

A nossa história política, pródiga em cerceamentos, restrições e retrocessos, quando observado um certo distanciamento no tempo, também tem sido palco de pontuais e persistentes processos de ampliação democrática.

No Império e no início da República, tínhamos o voto censitário, dos homens que detinham propriedade ou altas rendas. Em 1822, os eleitores somavam 10% da população brasileira. É curioso que, em 1824, no novo código, a barreira da idade tenha aumentado - de 21 anos para 24 anos - e o mínimo de renda necessário para o cidadão se alistar como eleitor ficou igualmente mais seletivo. O resultado foi a restrição da franquia eleitoral, com apenas 1% da população estando representada no Parlamento e nas assembléias. Desnecessário dizer que tais expedientes visavam à manutenção de uma condição política extremamente restritiva de direitos e impeditiva de uma verdadeira democracia. Oligarquias políticas, magistrados, clérigos e até a polícia tinham um poder quase arbitrário sobre as eleições - e, claro, sobre os resultados. Assim, características “especiais” desse período são a corrupção e a fraude eleitorais.

O longo período das eleições “a bico de pena” deu lugar à universalização do voto para os homens maiores de 18 anos e muito depois, na década de 30, as mulheres também alcançaram o direito ao sufrágio. Nessa linha de evolução - do que poderíamos chamar de reformas políticas nitidamente democráticas -, conquistou-se, recentemente, o voto e a elegibilidade para os analfabetos e maiores de 16 anos. Devemos continuar nessa caminhada de radicalização democrática, e não em sentido contrário.

Em 28 anos com mandatos no Parlamento, conferidos pelo povo pernambucano, sempre tive na questão política e na conformação do regime democrático minhas preocupações maiores. Reforma política, portanto, é um assunto que acompanho com paixão, pois, ao longo da vida, nunca procurei o caminho mais fácil nem sacrifiquei imperativos de consciência. Obedeci sempre a meu sentimento profundo a favor das liberdades e minhas convicções sempre foram expressas por intermédio de um pequeno e valoroso partido que, existindo há quase um século, não tem como tradição comemorar à mesa dos poderosos. É de se perguntar: e se o “pequeno” partido não tivesse sido duramente perseguido, vivido na clandestinidade graças a um sistema rígido, excludente e estigmatizante; se tivesse podido manifestar-se pública e democraticamente, não seria hoje um grande partido e não teria empreendido mudanças radicais na vida política brasileira? Mas isso é terreno de conjecturas - e estamos tratando aqui do terreno das realidades.

Ainda à época da ditadura, lembro-me com clareza dos debates que travamos na Câmara dos Deputados sobre o recorrente tema da liberdade. Já próximo do seu esgotamento e de sua derrocada, o próprio regime militar iniciou um movimento claramente diversionista com o intuito de dividir a frente de oposição, dando margem a que a questão partidária entrasse na agenda política.

A reforma proposta pelo General Golbery do Couto e Silva - seguindo Lampedusa, na celebre máxima “mudar para que nada mude” - objetivava, dentre outras medidas, a implosão do MDB. Sua proposta era a de acabar com o bipartidarismo ARENA versus MDB, criando o sistema multipartidário mitigado com o intuito único - afinal, alcançado - de dividir a oposição, que saíra fortalecida das eleições de 1974. O sistema bipartidário, camisa-de-força criada pelo regime autoritário militar, nascera para impor “ordem e estabilidade” no nosso sistema partidário. Ora, como já no início da década de 70 a sociedade já não suportava mais as arbitrariedades do regime, e estando os cargos de Presidente, governadores e prefeitos de capitais e cidades estratégicas fora do ciclo eleitoral, as eleições de 1974 acabaram-se tornando um instrumento plebiscitário de manifestação dos brasileiros contra os perversos efeitos sociais e econômicos dos governos militares. A “ordem e estabilidade” impostas pelos generais deu aos eleitores, por conta da bipolaridade, a possibilidade de que o feitiço virasse contra o feiticeiro. A vitória esmagadora da oposição em 1974 foi um momento simbólico dessa virada.

A partir daí, tem-se uma série de casuísmos - eufemismo na época usado por todos, inclusive por nós oposicionistas, para encobrir intervenções ditatoriais - utilizados pelo regime autoritário para se manter no poder. O mais abusivo de todos foi o célebre “Pacote de Abril”, ato de força posterior ao fechamento do Congresso Nacional e gerado pela “Constituinte” da Granja do Riacho Fundo, na qual pontificavam o General Golbery do Couto e Silva; o major Heitor de Aquino; o ministro da Justiça Armando Falcão, famoso pelo bordão “nada a declarar”; Marco Maciel, Presidente da Câmara dos Deputados e para quem o fechamento do Congresso fora um “ato profilático” e de “inspiração revolucionária”. Todos eles liderados pelo General Ernesto Geisel.

O mesmo grupo continua tendo influência nos dias de hoje. Uns, pela memória de suas idéias conservadoras e autoritárias, de que Golbery é o exemplo maior; outros, com as mesmas idéias, só que presentes e atuantes na concepção das reformas em andamento, Dentre estes assinalamos o ainda Vice-Presidente Marco Maciel, principal mentor e articulador das propaladas mudanças.

Não satisfeito com o grau de violência antidemocrática do “Pacote de Abril”, que, aliás, não havia surtido o efeito desejado, já que o MDB, nas eleições de 1978, conseguiu importantes vitórias, outros casuísmos foram adotados. Um deles foi o multipartidarismo de 1979 que, eficazmente, implodiu o MDB em uma série de outros partidos (surgem o PP, PT, PDT e PTB). Um detalhe sintomático: o velho PCB, na época com grande vocação para crescer, teve a ilegalidade mantida pelo regime. Aberto o debate sobre as reformas políticas, mudanças ocorrem. Porém, o que era para ser dirigido foge do controle e a reforma política proposta, de claro objetivo antidemocrático, dá lugar a uma oxigenada luta política e social e intensifica o debate sobre a liberdade de expressão e a organização da cidadania.

Tendo essa conjuntura como pano de fundo, em 1979, apresentei projeto acerca dos partidos políticos que, pioneiramente, estabelecia o financiamento público das eleições. Permitam-me transcrever um parágrafo da justificação do projeto, pois tanto ontem como hoje ele define bem a minha concepção acerca da liberdade partidária:

Em uma democracia os partidos políticos devem subordinar-se somente àquelas restrições que sejam estritamente necessárias para assegurar-se a própria continuidade do conflito democrático, protegido apenas contra as influências do dinheiro e do poder. Partidos livres são instrumentos para fazer com que as sociedades distingam o que elas são daquilo que poderiam ser: cada partido oferece à sociedade a imagem de um futuro possível revelado não só em seu programa, mas também nas suas formas concretas de mobilização e organização. Todo constrangimento da ação partidária é um entrave imposto à própria liberdade de escolher um futuro que não seja apenas o que produzirem a inércia e o acaso dos acontecimentos, o predomínio dos interesses consagrados e a influência dos preconceitos correntes.

Em 1980, sob o impacto de mudanças internacionais que vinham se sucedendo na década de 70, salientando entre elas as de cunho libertador como a agonia do franquismo e o renascer democrático na Espanha e a Revolução dos Cravos em Portugal, apresentei uma emenda constitucional definindo, entre nós, o fim da tutela sobre os partidos e plena liberdade de criação e organização partidária, sem qualquer cortejo de excepcionalidades. Escusado dizer que, apesar da intensa discussão, fomos derrotados em nossas propostas.

Com a convocação da Constituinte, quando o debate político estava mais arejado e já não vivíamos sob o tacão do regime militar, prevaleceu, como eixo nas discussões, a minha emenda calcada no modelo português. Eu, particularmente, a essa altura, já estava mais próximo do que convencionamos chamar “modelo italiano”, onde partido político nem sequer é tratado na Constituição como tal, mas apenas como uma entre tantas associações da sociedade civil, garantidas como direito da cidadania de expressar-se, reunir-se e organizar-se livremente.

Originalmente, o que estava proposto no contexto da Constituinte para regular a vida partidária? Apenas o art. 17 da Constituição atual, sem intrusos preceitos. Ou seja, discutia-se essa redação: “é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana”. No desenrolar dos debates constituintes, os quatro parágrafos que lhe foram acrescentados e que se referem à autonomia na fixação de estruturas internas, aquisição de personalidade jurídica, criação do fundo partidário, direito de acesso gratuito ao radio e à televisão e vedação de organizações paramilitares aprimoraram a emenda.

Entretanto, os preceitos contidos nos seus incisos como “partido nacional”, “proibição de recebimento de recursos externos” (talvez, lembrança da injustificável chicana jurídica na arbitrária cassação do PCB em 1946), “prestação de contas à Justiça Eleitoral” e determinação de funcionamento parlamentar de acordo com “Lei” nasceram do cacoete das elites de quererem continuar tutelando a vida partidária em nosso País. Infelizmente, a elas se somaram alguns parlamentares detentores de boa-fé democrática, porém presos a uma concepção tutelar e regulamentadora que, como sabemos, confunde liberdade com autoritarismo. A cultura do controle legal, sempre muito presente em toda nossa história de maneira enfática, foi fomentada e disseminada nas consciências pela recém-derrubada ditadura militar, e muitos companheiros do Parlamento se regem por ela.

Ouso dizer que a plêiade de leis para regular partidos é o produto mais direto da visão autoritária que permeia a sociedade brasileira e, portanto, é antagônica à generosidade libertária que deve presidir sociedades que se pretendam democráticas. Para ilustrar tal afirmação, basta saber que somos o único país com institucionalidade democrática a possuir uma Lei Orgânica de Partidos Políticos a disciplinar e conformar entidades próprias da cidadania - e só dela -, subordinando-as a regras outras que não as constitucionais, derivadas de maiorias eventuais e de interesses dominantes. Afora o respeito aos mandamentos constitucionais, ao admitir-se a tutela legal dos partidos políticos, está-se maculando a democracia, porque, com isso, amordaça-se a cidadania e a sociedade civil.

Eis, que, com essa proposta de reforma política, ora em discussão e tramitação nas duas Casas do Congresso, estamos todos nós discutindo novamente princípios.

Hoje, a necessidade de alterar algumas das normas que definem nosso sistema político é reconhecida por todas as forças e lideranças significativas da Nação. Não há, contudo, e dificilmente haverá, consenso quanto às normas a serem alteradas nem quanto ao sentido da mudança.

Não tenho dúvida: a reforma política ocupará papel central no Parlamento e nos debates conduzidos pelos meios de comunicação de massa. A questão pertinente, a meu ver, é qualificar o seu conteúdo.

Sou favorável a todas as propostas que visem sanear problemas reais nos mecanismos de representação. Considero, por exemplo, muito correta a adoção do princípio do financiamento público das eleições, instrumento para coibir a corrupção na escolha dos representantes do povo; matéria infelizmente ainda bloqueada pelo Governo em nome da escassez de recursos, como se democracia tivesse custo. Também sou favorável a um novo disciplinamento do papel dos suplentes de Senadores, na forma como o assunto foi apresentado pelos seus idealizadores. Aceitaria até mesmo discutir a questão do fim da coligação, desde que a ela não fosse acoplada a chamada cláusula de barreira, algo pertinente ao sistema distrital misto, e que representa um golpe profundo no sistema de representação política e, em particular, às chamadas minorias emergentes.

Entretanto, a estratégia colocada em marcha, e que dá conteúdo ao debate da reforma política e, não tenho dúvida, tema que será de agenda recorrente nesse inicio de governo petista, obedece a um lógica diferente. São propostas que fogem ao sentido de evolução democrática, presente em nossa história, de ampliar a participação da cidadania e, ainda, não se destinam a aumentar a representatividade do sistema. Pelo contrário, buscam unicamente - e o dizem seus arautos de forma muito enfática - garantir a funcionalidade e o ordenamento do sistema. Para tanto, não se pejam em propor dispositivos legais que fixam maiores limites, ampliam as restrições e até disciplinam expulsões e exclusões.

A premissa subjacente na reforma pretendida é que a desordem que julgam existir gera ineficiência, e esta, no longo prazo, minaria a legitimidade democrática. Portanto, tornar a ordem representativa estável, prezada pela maioria da população, implica torná-la capaz de responder, em tempo hábil, às demandas de decisão que a sociedade reclama. Para tal, o sistema deve perder em complexidade e ganhar em previsibilidade.

Desnecessário dizer que tal visão é essencialmente antidemocrática, mecanicista e, de forma contumaz, se faz presente na história da humanidade quando os tiranos e ditadores, de todas a épocas e de todos o matizes, sobrepõem a “razão de Estado” à cidadania. Tal visão lembra Huntington, o guru de Golbery, que, nos anos 60, propunha como solução para os impasses decisórios o reforço da autoridade. Segundo ele, os sistemas pouco institucionalizados não teriam condições de processar as demandas sociais, gerando paralisia e ingovernabilidade. O remédio, então, vejam que brilhante, não é alterar o sistema, reformá-lo, institucionalizá-lo, mas reprimir as demandas sociais. Têm um quê de semelhança a proposta do americano e de uma parte dos nossos parlamentares, que pedem à sociedade a negação de sua própria pluralidade.

Quero argumentar aqui que toda tentativa de simplificar artificialmente o sistema político, de “azeitar” o processo decisório implica restringir a representação, limitar a cidadania e minguar o conteúdo democrático de nosso ordenamento legal. Nesse último caso, a discussão não tem como objeto a forma, o processo, os meios necessários para que a representação se realize da maneira mais ampla possível. Trata-se, pelo contrário, de restringir a democracia em nome de uma suposta racionalidade funcional.

Há uma contradição flagrante na proposta de reforma. Ela não é apenas política e não se atém à normatização e ao aperfeiçoamento dos mecanismos eleitorais e da democracia representativa. Vai muito além, pois pretende retroagir e tornar estatal o que é público e privativo da cidadania e da sociedade civil. Talvez esse seja, de fato, o principal objetivo da reforma. Não podemos aceitar que partido político - pessoa jurídica de direito público privado -, por definição livre e radicalmente autônomo, com funções inclusive de questionar o establishment, seja regulado pelo poder vigente.

Sei que estou sendo repetitivo, mas o volume das vozes que se levantam para defender o minimalismo na representação democrática, estreitar os espaços do pluralismo social, circunscrever o espectro ideológico e totalitariamente limitar a livre expressão do indivíduo e do militante é ensurdecedor. Com a reforma em marcha, para ficarmos em um termo um tanto militarizado, os partidos estão perdendo graus de autonomia para se submeter aos interesses de maiorias eventuais. Maiorias em nome da ordem, não da liberdade.

Ora, quão perigoso para a democracia é querer resolver problemas conjunturais de um governo, sacrificando estruturas políticas no longo prazo. De passagem, lembro-me de um debate realizado na Câmara dos Deputados quando, a pretexto de regimentalmente regulamentar o dispositivo constitucional que trata do funcionamento parlamentar, buscava-se definir o número mínimo de deputados para se ter direito à liderança e, com isso, a estruturas administrativas. No momento em que subi à tribuna, todas as lideranças dos grandes e pequenos partidos, de Esquerda e de Direita, já haviam se pronunciado e a unanimidade se instalado: o partido que não tivesse cinco deputados não teria liderança.

Como líder do PCB, com apenas três Deputados, tinha exata consciência de que o plenário me via como legítimo representante do “jus esperniandi” e que, portanto, bastava ser tolerante, e o foi. Mas tinha também consciência, tanto quanto tenho hoje, de que certo estava o poeta alemão quando, em verso, descreveu a indiferença daquele que observava os nazistas levarem um a um seus vizinhos, até quando só ele restou e também foi levado.

Ante a indiferença de todos - salvo a honrosa exceção de um deputado do PSB do Maranhão, José Carlos Sabóia -, eu perguntava por que o número 5, quando talvez fosse interessante 7, um número até cabalístico (O PC do B tinha apenas 5 deputados); bom seria, quem sabe, conceder liderança ao partido que tivesse mais de 20 deputados, algo mais substantivo (o PSB tinha apenas 9 deputados e a bancada do PT tinha não mais que 16); por fim sugeria 40 e, claro, sem liderança ficariam o PDT e talvez outros partidos de porte médio. A ironia usada ajudava a demonstrar que a decisão discriminatória não era neutra e o que se pretendia, na ocasião, era montar uma equação de poder no interesse das agremiações maiores e hegemonistas e com uma visão nitidamente arbitrária e autoritária.

Não houve resposta às minhas indagações naquela oportunidade. Hoje, em face do papel do Partido dos Trabalhadores e de sua estrondosa vitória, creio que muitos dos indiferentes e, quem sabe, satisfeitos e contemplados de ontem tenham respostas.

Recorro ao mesmo argumento, agora, para discutir as propostas de Reforma Político-Partidária em grande parte preconceituosas e discriminatórias seja da cidadania ou em relação aos pequenos partidos. O seu conteúdo está prenhe de idéias de um tempo passado e não democrático e, portanto, podendo seus arautos serem, daqui para frente, chamados de restauradores e, para fazer um contraponto, designar como reformistas os que querem aperfeiçoar democraticamente o nosso sistema eleitoral, e eu me incluo entre estes últimos. Pena que muitos dos nossos companheiros de resistência democrática não se apercebam do canto das serias da restauração, que o velho Ulisses tão bem enfrentou e venceu.

Alguns conceitos me assustam quando tratamos da proposta de reforma colocada na mesa. Está escrito lá que um dos objetivos da medida é a “tentativa de impedir a multiplicação excessiva de partidos políticos...” Almeja-se, ainda, forçar “os pequenos partidos” para que “busquem a fusão com outros ideologicamente próximos”. A opção pelo sistema do voto distrital misto é apresentada não como tema relevante de aprimoramento do mecanismo eleitoral de apuração para definir representação parlamentar partidária, mas, sim, também, como mero expediente, constituir-se em “óbice suficiente ao funcionamento parlamentar de pequenos partidos”.

É difícil acreditar que homens públicos experimentados e cuja vocação democrática não ousamos questionar pensem dessa maneira. Os legisladores, para atender ao interesse “funcional” das elites dominantes e de plantão - pouco importa se no momento são governo ou oposição - querem determinar quais devem ser os atores políticos da sociedade. Em vez de aperfeiçoar o império legal para que as contradições da sociedade fluam com naturalidade e criatividade, buscam controlá-las, mantê-las sob camisa-de-força, anulá-las. Se não se permite a uma sociedade movimentar-se livremente, quem perde é a cidadania, a democracia, a liberdade.

Na linha tortuosa das reformas, conforme se depreende dos debates, há uma opinião subjacente, também de ordem funcional, de que a existência de muitos partidos atrapalha o funcionamento do Parlamento. Eles dificultariam a formação de maiorias, não apenas as estáveis, mas até aquelas necessárias à tomada de decisões cotidianas. Cada votação de peso deveria ser precedida de uma negociação complexa e demorada, às vezes com interlocutores que respondem por apenas um voto. Com isso, o processo decisório se tornaria moroso e perderia em previsibilidade.

O argumento utilizado pelos restauradores falha de diversas maneiras. É questionável a imputação de ineficiência ao nosso Legislativo. Estudos acadêmicos, produzidos nos últimos anos, mostram que, sob qualquer indicador de produtividade parlamentar, o Congresso brasileiro não se encontra aquém dos parlamentos das demais democracias do mundo. Também nossos parlamentares não são diferentes dos outros nem menos éticos. A diferença está em instituições e em sociedades que coíbem determinados comportamentos.

Quanto ao problema das maiorias, não é se restringindo o número de partidos que se chegará a uma maioria estável. Lembre-se de que, na Inglaterra bipartidária, a coesão do partido majoritário se deu por um meio nada honroso - a corrupção. No século passado, havia mesmo o importante cargo de “Ministro da Patronagem”, responsável pelo acompanhamento de discursos e votos e pela premiação final àqueles parlamentares fiéis à coroa e à aristocracia. Não estou sugerindo métodos, apenas dizendo que o problema da coesão partidária e de maiorias estáveis é muito mais profundo e muito mais antigo do que se debate. Mesmo um sistema coercitivo para pequenos partidos pode trazer vários problemas do ponto de vista operacional, não se alcançando a “funcionalidade” pretendida.

Falha o argumento, também, ao subestimar o poder da sociedade, expresso pelo voto, de moldar o sistema partidário conforme seus interesses e convicções. A história nos ensina que foi a permanência de instituições democráticas e os constantes chamamentos à soberania popular do voto que constituíram estruturas partidárias fortes e representativas. Não foram as leis nem muito menos o desejo dos governos e das elites os responsáveis pela estabilidade das democracias representativas no mundo civilizado, e sim a livre expressão e organização das cidadanias dessas sociedades. Um exemplo que confirma sobremaneira o anteriormente afirmado é de comprovação recente. Os processos de redemocratização na Europa, particularmente na Espanha pós-franquista, foram pródigos na proliferação de partidos nos primeiros momentos de liberdades democráticas. Ali não se cuidou de restringir legalmente tal abundância. O que ocorreu foi o livre exercício da soberania popular por meio de ajustes posteriores, efetivados a cada eleição, e desse processo resultaram sistemas partidários com um número menor de atores.

Por outro lado, há também exemplos de parlamentos que funcionam a contento, com um sistema partidário, já consolidado, em que um grande número de partidos foi preservado. Nesses casos, certamente, os pequenos partidos duradouros expressam clivagens sociais e ideológicas de relevância para aquelas sociedades; minorias persistentes, cuja cassação implicaria perda da representatividade do sistema como um todo. Sem tais representações, o que se viveria seria a ditadura da maioria que, de forma alguma, deve-se sobrepor sobre as minorias. Talvez seja até um bordão, mas a democracia existe para amparar as minorias e não as maiorias, estas já detentoras do poder político.

O mundo caminha para a mais ampla liberdade política possível, e velhos paradigmas são deixados de lado. Quando muitos proclamam o fim dos partidos, aqui querem subjugá-los. Em vários países, novas formações políticas surgem e passam a representar novas opções de representação política da sociedade civil. Esses novos atores e operadores políticos convivem com os tradicionais partidos e, sem negá-los, ampliam a participação da cidadania.

Os sistemas eleitorais das sociedades mais avançadas refletem essa realidade e são abertos a novas formas de representação. Na França podem lançar candidatos a todos os cargos da República os agrupamentos não partidários e em outros países admite-se, inclusive, a candidatura avulsa. A democracia representativa começa a abrir espaços para conviver harmoniosamente com práticas de democracia direta, um velho sonho para os amantes da liberdade.

Um fato ocorrido recentemente numa eleição para o Senado do Estado do Tenessee, EUA, ilustra bem as mudanças. Foi eleita uma candidata que não constava da cédula eleitoral - credenciara-se posteriormente à confecção -, mas os eleitores escreveram do próprio punho seu nome e o resultado foi proclamado. Isso é inimaginável aqui no Brasil, pois nosso sistema, em vez de facilitar, dificulta deliberadamente a livre expressão do eleitorado por intermédio de normas legais e burocráticas.

Entre nós, busca-se estatizar o que é próprio da sociedade civil e da soberania popular, e, para tanto, dispositivos legais são criados para garantir reservas de mercados políticos e monopólios da representação. São exemplos os já existentes entulhos do domicílio eleitoral, os longos prazos de filiação e outras medidas novas em gestação. Acentua-se em quase todo o planeta a primazia da liberdade individual; os nossos restauradores aferram-se aos conceitos da funcionalidade, estabilidade e fidelidade, todos eles vinculados à “razão de Estado”.

Vamos fazer um parêntese ilustrativo. Há alguns anos, na raiz da Operação Mãos Limpas, promovida pelo Ministério Público italiano, foi desencadeada uma profunda crise político-partidária. Os dois maiores partidos que formavam o governo de Betino Craxi - Democracia Cristã e Socialista - foram praticamente dissolvidos, com suas principais lideranças denunciadas na Justiça, algumas presas e o próprio Primeiro Ministro Craxi acusado de corrupção e exilado. Se prevalecesse na Itália o nosso sistema político-partidário, o impasse se haveria instalado e as eleições para um novo governo não se realizariam dentro da continuidade democrática, uma vez que os velhos partidos não mais existiam e os novos não poderiam ser criados por força e em observância das leis em vigor. A Forza Italia do Sr. Sylvio Berlusconi, criado dois meses antes das eleições e ao final vitoriosa, simplesmente não poderia existir dentro do nosso arcabouço jurídico-partidário. Como se vê, o sistema partidário, quando há democracia e a mais ampla liberdade, ele mesmo se regula e corrige rumos.

Mas voltemos aos nossos restauradores.

É interessante que, para a maioria do Congresso e para os meios de comunicação, pequeno partido é identificado como algo problemático. Não é raro ser classificado como legenda de aluguel, sempre apontadas as exceções dos chamados partidos ideológicos tradicionais. Um equívoco total, pois as legendas de aluguel, se existem, estão organizadas da mesma forma que os grandes partidos. Portanto, o festival de alugueres e a “dança das legendas” devem ser buscados em outros lugares. Os pequenos partidos não são e nunca foram óbices nem ao funcionamento do parlamento, nem ao desenvolvimento nacional, nem à moralidade pública.

Estão querendo pôr a realidade de cabeça para baixo. É impressionante, mas prevalece como fantasma junto aos restauradores a sombra do esquecido Marronzinho, símbolo das chamadas legendas de aluguel. Se tudo o que disseram e afirmaram sobre essa pessoa fosse verdadeiro, não seria preciso esmagar os pequenos partidos: bastaria a aplicação do Código Penal. Mais recentemente, por força da eleição dos Deputados sem voto do Prona, o seu lider maior, Enéas, talvez venha a ser, ou já esteja sendo, o paradigma do mal do pequeno partido.

Alguns próceres de muitos dos temas da atual proposta de reforma devem entender que muitos dos dispositivos de que hoje procuram lançar mão é herança da ditadura militar. E não adianta vir com o argumento surrado de que nem tudo que foi gerado no regime ditatorial é ruim. Talvez, e tenho sérias dúvidas de que isso possa até ser dito quando referente a algumas realizações econômicas, tal como fez Lula durante a campanha eleitoral. Democracia não é obra de empreiteira nem sistema partidário, um conjunto de índices de crescimento econômico. Assim sendo digo, por definição, há uma evidente contradição em termos, pois, quanto ao aspecto da democracia e da liberdade, tudo que veio da ditadura tem vício de origem, é defeituoso, não é adequado e não nos interessa.

Quem formulou o princípio do domicílio eleitoral no Brasil? Os abolicionistas? Os democratas da República Velha? Getúlio Vargas de 1950 e o trabalhismo? A Esquerda democrática? O regime que existiu no período da Carta Constitucional de 1946? Não; foi a ditadura instalada em 1964. E o criou como um dos seus primeiros e depois constantes e numerosos casuísmos exatamente para impedir, em 1965, a candidatura de Henrique Teixeira Lott ao governo do antigo Estado da Guanabara. O título de eleitor de Lott era de Petropólis, no Estado do Rio.

Talvez, para compreendermos melhor esse entulho autoritário, alguns fatos esclareçam definitivamente o que é democrático quando analisamos institutos eleitorais. No regime da Carta Constitucional de 1946, quando inexistia a exigência do domícilio eleitoral, Leonel Brizola, gaúcho recém-saído do governo do Rio Grande do Sul, é eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro (DF) com a maior votação proporcional, se não me falha a memória, de todos os tempos; Juscelino Kubistchek conquista vaga de Senador por Goiás; Jânio Quadros é eleito deputado pelo Paraná. Aqui não houve burla nem esperteza legal. Após o golpe de 1964 e sob a vigência da lei do domicílio, que perdura até hoje, José Sarney, maranhense recém-saído da Presidência da República, teve que recorrer ao artifício de se alistar no Amapá e só assim se habilitar e conseguir um mandato de Senador por aquele Estado amazônico. Para os democratas, o que valeu foi a soberania popular presente em todos os casos acima enumerados e nunca a quinquilharia irrelevante do domicílio.

E de quem é a “grande” idéia dos prazos de filiação, agora pretendendo-se fixar em quatro anos? Também do regime militar. Muitos dos então chamados “entulhos da ditadura”, alguns deles oriundos do Ato Institucional nº 5, cujas entranhas foram expostas e revelaram a desfaçatez e intolerância de homens públicos que posaram e posam de democratas, foram extirpados do nosso ordenamento jurídico pela Constituinte. Uns poucos permanecem e dentre eles sobressai, no campo político, a exigência de um longo prazo de filiação para quem pretende ser candidato. O que os nossos restauradores pretendem com a manutenção desse prazo, falando mesmo em sua ampliação, é, de um lado, garantir a reserva de mercado da representação política preferencialmente para os que já detém mandatos e, de outro, engessar realidades pretéritas. Querem impedir o surgimento do novo, cuja ocorrência em sociedades não-estratificadas e dinâmicas como a brasileira são fenômenos constantes e muito fortes em períodos de disputa de poder, como são as eleições. Um fato despercebido que acontece nos momentos em que finda o prazo legal de filiação para quem pretende ser candidato, hoje de um ano antes das eleições, é a aberrante cassação neste exato instante de milhões de brasileiros e brasileiras que não podem mais serem candidatos nesse pleito - e tudo em nome da democracia! Como a democracia sofre quando se esquece da história.

Em nome da história, valem a pena alguns comentários acerca do sistema do voto distrital misto que, como disse, envolveria um debate sério e democrático, se os nossos restauradores não o utilizassem também como obstáculo à livre organização partidária.

Adotado em 1946, ele nasceu na antiga Alemanha Ocidental, então sob ocupação americana, e na sua base teórica estava a compatibilização, no seu sistema eleitoral, de dois princípios: o majoritário e o proporcional. Surge o impropriamente chamado sistema do voto distrital misto. Mas algo se lhe acrescenta e surge a famosa cláusula de barreira - mecanismo pelo qual partidos que não atinjam um determinado percentual de votos nacionais não têm representação parlamentar. Aliás, não se deve estranhar tal cláusula, pois ela foi pensada exatamente como antídoto à presença de determinadas forças políticas no parlamento alemão.

Em defesa do voto distrital misto recorrem os acadêmicos ao exemplo da instabilidade da República de Weimar, creditada fundamentalmente ao sistema proporcional e ao multipartidarismo vigente, esquecendo todos que, entre as principais causas do fim daquela experiência republicana, estavam as crises econômicas, as reparações de guerra e o crescente poderio dos nazistas, avessos a qualquer ordem democrática. Juntavam a essa visão particularíssima a imperiosa exigência das potências de ocupação - na lógica da recém-instalada Guerra Fria - de impedir particularmente a presença dos comunistas no Parlamento. O modelo forjado pelos alemães no pós-guerra é a referência para os nossos restauradores, obviamente destituído do vezo anticomunista e com pequenas adaptações. Montaram lá, naquela época, como aqui, agora, toda uma teoria para explicar apenas uma decisão política: a exclusão.

Chega de esquematismo! Deixem os partidos livres para viverem ou morrerem! E mais: não nos esqueçamos que o sistema proporcional, tal como o hoje vigente no Brasil, é a engenharia eleitoral que propicia a menor perda de votos quando definida a representação partidária nos Parlamentos. Nesse sistema, as minorias são sempre representadas e, portanto, também maior é o grau de legitimidade do regime político.

Mas vamos em frente.

Perturba-me, particularmente, o posicionamento de algumas respeitavéis lideranças democráticas do atual e do futuro governo serem favoráveis a disparates antidemocráticos tão imensos. Ao amparar e até defender o minimalismo no sistema político, colocam suas concepções batendo de frente com modelos que pretendemos sejam duradouros e profundamente democráticos. Muitas dessas posições têm claras amarras conjunturais e se confundem com interesses próprios de grandes partidos do condomínio do poder (infelizmente com rebatimento em todas as ideologias). Entretanto, não perco as esperanças de que uma reflexão libertária e feita sem amarras conjunturais derrube uma das principais teses da reforma, como, por exemplo, a fidelidade partidária.

Estamos diante de outra invenção da ditadura e que teima em fazer parte de nossas instituições. É impressionante como se lança mão de certas idéias sem nenhuma visão crítica e sem analisar o seu impacto sobre o sistema de governo. Não tenho medo de afirmar: a adoção da fidelidade partidária é ante-sala para levar o nosso presidencialismo às fronteiras da crise com geração de impasses institucionais. E por quê? Ela funcionaria no sentido de enrijecer a vida partidária e tiraria do Presidente, com mandato fixo de quatro anos, qualquer possibilidade de negociação e de formação de maioria no Congresso. E, sem maioria, não se governa; e, não governando, a estabilidade política cede lugar à crise aberta.

Se talvez olharmos apenas o que foi o Governo Fernando Henrique Cardoso, com sua maioria sólida, posto que apoiado pelo PSDB, PMDB, PFL e PPB, essa crise potencial não se apresenta de forma tão nítida. Mas analisemos um presidente eleito sem maioria e com os grandes partidos lhe fazendo oposição e logo perceberemos o potencial de crise durante o seu mandato. Isso, não tenha dúvida, é preocupação da futura administração do PT, que adota uma postura pluralista e de coalizão na formação do governo, exatamente visando a governabilidade.

Alguns mais apressados poderão dizer que, concretamente, eu estaria admitindo a mais aberta prática do fisiologismo no varejo. Ora, com a fidelidade, as cúpulas partidárias, aí sim, querem trazer para si o fisiologismo no atacado. Rejeito a ambos os fisiologismos. O que estamos dizendo é que, no presidencialismo, especialmente no brasileiro, as bases de sustentação e governabilidade são, via de regra, frutos de blocos interpartidários e do complexo processo de negociação para se obter consensos.

A invenção do regime militar brasileiro, no caso da fidelidade, foi imitada por outras ditaduras latino-americanas, como a uruguaia, que, diferentemente das chilena e argentina, permitiu a existência de partidos e parlamentos em funcionamento quando de suas conveniências, por meio da manipulação inescrupulosa de regras. Nessas duas ditaduras (a nossa e a dos orientais) - que nos conceitos tenebrosos do Deputado Delfim Netto e do falecido Roberto Campos foram menos radicais por que mataram menos -, o instituto da fidelidade funcionou como instrumento de controle. Nas outras, dos Pinochets e Videlas, desnecessária se fazia, pois nelas simplesmente foram cassados os partidos e fechados os respectivos Congressos. A fidelidade partidária legalmente instituída costuma andar mal acompanhada: por ditaduras e tiranias.

Mais uma vez, os próceres da reforma em andamento não são nada originais. Estão fundamentados em coisas velhas, em páginas viradas e arquivadas em museus. Ao tratar do assunto, a Emenda Constitucional nº 01, de 1969, na ditadura, dispunha o seguinte em seu parágrafo único: “perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais quem, por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito. A perda de mandato será decretada pela Justiça Eleitoral, mediante representação do partido, assegurado o direito de defesa”. Em 1978, para viabilizar a criação de alguns poucos partidos e rachar a oposição, Golbery do Couto e Silva acrescenta à emenda a expressão “salvo se participar, como fundador, da constituição de novo partido”.

Impressiona-nos o fato de que o “velho bruxo”, por linhas transversas, acabou no limiar do século XXI sendo transformado em referência democrática. Que ironia! Até compreendemos tal comportamento no caso de partidos como PFL e PPB, porém deploramos quando ele ocorre no seio de agremiações como PSDB, PMDB e PT, por exemplo.

A tentativa de engessar tal processo pela via da fidelidade, por força de lei, para que todos os membros de um partido acatem as decisões de Convenção ou de direção partidária, não funciona em regime democrático. E episódios passados, bem como um recentíssimo, são irrespondíveis: no passado, temos a Convenção do PMDB decidindo que o partido deveria votar contra a reeleição, e o que se viu foi a imensa maioria dos seus deputados aderir a tal princípio; um outro, quando uma grande maioria de deputados dos partidos governistas derrotou - afrontando a Presidência da República e direções partidárias - uma das medidas provisórias consideradas, pelo governo FHC, de suma importância para a reforma da Previdência Social. Exemplo recente foi a repulsa estrepitosa contra a fidelidade de coligação partidária, determinada pela Justiça Eleitoral via “verticalização” eleitoral.

O engessamento da fidelidade, por força da lei, é tão esdrúxula que pode gerar até um paradoxo, indubitavelmente não percebido pelos nossos restauradores. Vamos a um fato histórico, protagonizado pelo deputado estadual do Paraná, José Domingos Scarpeline, pertencente ao MDB. Quando da edição do Ato Institucional nº 05 - esse “monstrengo” que jogou às favas escrúpulos de vários homens públicos de nosso País -, a oposição brasileira foi surpreendida por um discurso do referido parlamentar que, confuso, acabava por apoiar a truculência do regime. Imediatamente, o MDB, já transformado em combativo instrumento das forças democráticas, muito corretamente o expulsou, pois ali não era o seu lugar. Baseado na lei de fidelidade partidária, o citado parlamentar recorreu à Justiça que, por sentença, obrigou o MDB a mantê-lo nos seus quadros. Como se vê, a fidelidade partidária, quando erigida em lei, atenta contra a autonomia dos partidos e, evidentemente, contra consciências individuais. É uma absurda tutela. O fato nos ensina: fidelidade definida pelo partido, sim; por lei, nunca. Também, nunca é demais lembrar que o instituto da fidelidade partidária com força de lei não consta no ordenamento jurídico de qualquer pais de tradição ocidental como o nosso e, pelo que sei, inexiste nas democracias do mundo.

A radicalização da democracia é imperiosa e não podemos tergiversar. Com a questão democrática não se pode fazer alquimias. Se os nossos restauradores querem uma solução séria para o País, então deixem de lado o presidencialismo e os entulhos autoritários do domicilio, da filiação, da fidelidade e adotem a livre participação da cidadania, a liberdade de organização partidária e o parlamentarismo.

No meu entendimento, dois blocos estarão se opondo na discussão da reforma político-partidária: os que querem aperfeiçoar o sistema de representação, sustentados na concepção da mais ampla liberdade partidária possível e apostando que a democracia ampliada tem capacidade e força para corrigir rumos; e aqueles que, mesmo em nome do aperfeiçoamento do sistema e da sua funcionalidade, querem menos partidos, menos liberdade e se identificam com uma democracia de escopo restrito como instrumento de eficiência. Evidentemente, aqui é preciso evitar maniqueísmos e dicotomias simplórias e ligeiras e reconhecer, nos dois blocos, matizes e diferenciações, continuidades e rupturas.

Como não sou dado a maniqueísmo e sei que a democracia nasce, consolida-se, amplia-se a partir do embate entre as forças vivas de uma nação, é que me posiciono perante os meus Pares aqui e agora. Se recorri a alguns adjetivos ou a palavras mais fortes neste meu discurso, foi para confrontar idéias e afirmar a minha verdade, ressaltando sempre o respeito às verdades dos outros. Afinal, Gramsci nos ensina a ter este comportamento: “a vida superou o protagonista e o antagonista e produziu o construtor”. Como ele, sabemos também ser “difícil se libertar das coisas mortas”.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/12/2002 - Página 27033