Discurso durante a 15ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Posição contraria ao ataque norte-americano ao Iraque e crítica à postura do Presidente dos Estados Unidos da América.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • Posição contraria ao ataque norte-americano ao Iraque e crítica à postura do Presidente dos Estados Unidos da América.
Aparteantes
Eduardo Suplicy, Sibá Machado, Tasso Jereissati.
Publicação
Publicação no DSF de 13/03/2003 - Página 3303
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, DEBATE, INTELECTUAL, DEFESA, PAZ, PERIODO, CONCLUSÃO, SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, CRIAÇÃO, ORGANISMO INTERNACIONAL, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), OBJETIVO, MANUTENÇÃO, PACIFICAÇÃO, PAIS, RELAÇÕES INTERNACIONAIS.
  • CRITICA, ATUAÇÃO, GEORGE W BUSH.
  • BUSH, PRESIDENTE DE REPUBLICA ESTRANGEIRA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), UTILIZAÇÃO, RELIGIÃO, MANIPULAÇÃO, POPULAÇÃO, VIOLAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, OBJETIVO, OBTENÇÃO, APOIO, CONFLITO, DESARMAMENTO, ORIENTE MEDIO, ESCLARECIMENTOS, PRIORIDADE, GUERRA, EXPLORAÇÃO, PETROLEO.
  • ELOGIO, DIPLOMACIA, GOVERNO BRASILEIRO, MANIFESTAÇÃO, PROTESTO, REALIZAÇÃO, GUERRA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), IRAQUE, DEFESA, PAZ, ORIENTE MEDIO.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em grande comoção, o mundo acompanha a guerra anunciada do Iraque. Estou, nesta tribuna, com um duplo sentimento: o de protesto e, sem dúvida alguma, o aqui expresso pelo Ministro Celso Amorim, quando visitou esta Casa, o da ingenuidade dos que hoje se juntam em todo o mundo para protestar contra a guerra, em face da prepotência da decisão antecipada, contra a qual somente a nossa discordância pode ser colocada.

Esse sentimento é um pouco daquilo que me lembra Graciliano Ramos, quando fala do jornal local de Palmeira dos Índios, em Alagoas, em que censurava os líderes da Segunda Guerra Mundial, achando que seria ouvido por eles. Também me recordo do jornal da minha terra, da cidade de Pinheiro, quando, depois da guerra, dizia em editorial: se Adolf Hitler tivesse ouvido nossas reiteradas advertências, não teria lançado o mundo nessa catástrofe.

O discurso do Ministro das Relações Exteriores que aqui foi pronunciado tem uma parte que aborda o romantismo que hoje reveste a diplomacia coordenada contra a decisão de uma grande potência militar, econômica e cultural.

Evidentemente, Sras e Srs. Senadores, hoje o mundo tem um novo interlocutor da sociedade democrática, que é a opinião pública. A tecnologia das informações, das comunicações individuais e coletivas em tempo real manifesta com uma grande força o sentimento de toda humanidade.

Hoje, aqui, achei do meu dever expressar esse sentimento, embora pareça inútil, mesmo que seja um gesto idealista contra a prepotência e contra a violência.

Não há sentimento mais antigo e mais definitivo do homem do que o sentimento da paz. Um exemplo fundamental é a primeira mensagem do Cristianismo: “A paz esteja contigo.” É a presença da visão dos anjos: “Paz na terra aos homens de boa vontade.”

É esse sentimento de paz, de convivência humana sem violência que nos leva a condenar a anunciada guerra contra o Iraque.

É lamentável que tenhamos de mobilizar esse nobre sentimento por um execrável ditador, violador dos direitos humanos, inconcebível assassino de membros de sua própria família, invasor do Kuwait, massacrador dos curdos, silenciador de toda e qualquer voz que contra ele se levante.

Mas ele não pode ser o pretexto para a destruição do arcabouço erguido ao longo de 200 anos de convivência internacional, através de leis, mecanismos e dos acordos multilaterais, para esconder os verdadeiros motivos do Sr. George W. Bush nesta cruzada que causa uma onda de revolta no mundo inteiro.

A paz sempre foi uma acepção a ser inventada. O filósofo alemão e prussiano Immanuel Kant, escritor de estilo pesado e difícil, já no fim da vida, em 1795, escreveu um livro que se chamava a Paz Perpétua. Era quase um panfleto que ele lançava. Esse panfleto teve grande repercussão àquele tempo, porque a Prússia, depois de ter sido invadida pela França, assinava o tratado de paz de Basiléia, no qual renunciava à guerra. Nesse livro, ele tem oportunidade de considerar, pela primeira vez, que a paz só podia ser alcançada no mundo desde que a humanidade organizasse um sistema de leis e mecanismos capazes, através do Direito Internacional, de construir instituições capazes de assegurar uma convivência de paz para a humanidade.

Kant era um grande admirador da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Americana de 1776. As alianças internacionais precisavam de estabilidade. Então, depois do período napoleônico, Metternich construiu a Santa Aliança sobre o desejo de todos os aliados de uma paz contra-revolucionária, em um sentimento contra a guerra. O Congresso de Viena, então, assenta a paz por mais de 50 anos. É aquele período que os historiadores consagram como Período de Bismarck, da segunda metade do séc. XIX, um tempo de equilíbrio de forças.

Depois de Kant, muitos pensadores procuraram desvendar os problemas da paz e os problemas da guerra, mas foi um militar prussiano que escreveu A Arte da Guerra, Clausewitz, que em seu tratado demonstrou que a guerra se ligava totalmente à política, era a continuação da política, por outros meios, quando se deseja esmagar adversários e/ou países pela força e pela violência. Essa era a concepção de Clausewitz.

Marx, Engels e todos os escritores marxistas também se ocuparam da guerra. Sobretudo Engels, que escreveu, durante 30 anos, mais de duas mil páginas sobre a guerra. E eles todos defendiam o ponto de vista de que a guerra era uma luta entre potências industriais que somente deixaria de existir depois da solução dos problemas sociais.

Mas foi sobretudo um dos pensadores marxistas, Lênin, que concebeu que a luta política deveria usar as artes da guerra. Ele aplicou a teoria de Clausewitz à política.

Também tivemos os escritores românticos, que buscavam pensar a paz como algo sublime, fora de qualquer realidade, mas apenas ligada por um sentimento pessoal. E aí encontraremos aquela grande e excepcional figura, aquele grande romancista russo que foi Leon Tostoi, quando ele escreveu, sobretudo, o seu livro Guerra e Paz; mas, depois, escreveu muitos outros trabalhos pacifistas e transformou-se, ele mesmo, em um grande pacifista pelo exemplo e pela sua vida.

Guerra e Paz é um livro tão grandioso, tão extraordinário que até suportamos as longas digressões que ele faz sobre a arte da guerra e sobre a paz, porque a história é tão poderosa que, às vezes, o livro se tornaria cansativo se nós todos nos debruçássemos sobre esta parte deste grande escritor. Mas foi Tolstoi quem inspirou Gandhi, quando ele pregava a não violência absoluta; foi ele quem inspirou, talvez, Bertrand Russell e outros possuídos pela esperança, mesmo sabendo que é impossível evitar a guerra pelas palavras.

Os Estados Unidos, a partir da queda do muro de Berlim, se julgaram responsáveis pelo gerenciamento dos problemas, do futuro da humanidade. Essa foi a estratégia seguida depois da queda do muro. Esses problemas são transnacionais e foram concebidos como problemas que transcendiam um país ou outro. Seria necessário que uma grande potência como eles administrasse esse futuro da humanidade.

No fundo, é uma idéia generosa, mas, na realidade, ela se transformou em uma idéia de prepotência. Quais seriam os problemas a resolver e controlar? Energia nuclear, narcotráfico, guerras químicas, agentes bacteriológicos, meio ambiente, enfim, todos os problemas que necessitam de gerência transnacional, para assegurar uma convivência pacífica.

A I Guerra Mundial, o precipício do castelo de cartas, resultou na tentativa do Tratado de Versalles, da Liga das Nações, obra de um Presidente americano, que, de certo modo, sonhou com o desdobramento daquelas idéias de Kant, quando escreveu A Paz Perpétua, porque concebeu o sistema de leis, de organismos internacionais que seriam capazes de assegurar paz duradoura para a humanidade. Woodrow Wilson, no seu famoso discurso dos 14 pontos que fez em 1918, dizia o seguinte:

Queremos que o mundo seja preparado e seguro para se viver; e particularmente que seja feito seguro para cada nação amante da paz que, como a nossa, queira viver a sua própria vida, determinar suas próprias instituições, tenha garantias de justiça e tratamento correto pelos outros povos do mundo. O Programa pela Paz Mundial, portanto, é o nosso programa.

No ano seguinte, voltava a insistir:

Só há um poder atrás da libertação da humanidade, e esse é o poder da própria humanidade. É o poder da união das forças morais do mundo. E, no acordo da Liga das Nações, essas forças morais do mundo estão mobilizadas...

Durante a II Guerra Mundial, Franklin Roosevelt começou, depois do fracasso da Liga das Nações, a reconstruir uma organização internacional encarregada da paz. Quem lê a História da II Guerra Mundial, quem lê, sobretudo, a biografia de Harry Hopkins, que foi aquele assistente pessoal de Roosevelt, que foi seu emissário e ao seu lado esteve durante a guerra, vê que a preocupação permanente de Roosevelt era que se encontrasse um organismo internacional que fosse a projeção daquelas idéias concebidas por Woodrow Wilson.

Pois bem! Roosevelt já falava em Nações Unidas. Essa nomeação - nações unidas - era de Roosevelt. Quando ele fez o Tratado do Atlântico, de 1942, falava em nações unidas, e falava na visão do pós-guerra, através deste organismo que seria criado. Depois veio a vitória dos aliados, quando se construiu esse sistema mundial extraordinário, capaz de evitar a guerra nuclear durante o tempo da Guerra Fria, das Nações Unidas com os organismos que têm da Unctad, do Gatt, da OMC, do Bird, do BID, da Unesco, da Unicef, da FAO e de todos os organismos internacionais montados com uma única e exclusiva finalidade: assegurar a paz e a convivência internacional.

Pois bem! O Senhor Bush, o que ele está fazendo? Mais do que a guerra, e que é uma coisa que chega a causar profunda revolta e decepção em todos nós que conhecemos a História desse grande país que são os Estados Unidos, é, sobretudo, o desmonte de um sistema concebido há mais de 200 anos, que, pouco a pouco, passo a passo, a humanidade vem edificando e que conseguiu realizar aquilo em que hoje estamos. Ouvir o Presidente Bush dizer que vai fazer uma guerra, independentemente da Organização das Nações Unidas, contra a decisão do Conselho de Segurança, causa-me uma profunda revolta, sobretudo porque me considero um estudioso desses problemas. Em 1961, estava eu como delegado especial na Organização das Nações Unidas, dando-me o destino a oportunidade de mergulhar nesses problemas.

A posição do Senhor Bush, neste momento, de destruir o sistema das Nações Unidas dá margem, sem dúvida, às inevitáveis considerações sobre os seus motivos, sobretudo em relação à ambição pelo petróleo do Oriente Médio.

Aqui, é bom que se faça uma reflexão. O Oriente Médio sempre foi considerado por todos os estrategistas mundiais em alguns livros, como aquele escrito por Richard Nixon sobre a terceira guerra mundial, como o ponto fulcral a partir do qual o mundo poderia já ter tido a terceira guerra mundial. O Oriente Médio é um núcleo profundo de conflito, certamente porque, de toda reserva de petróleo mundial, 77% estão nos países da OPEP e, no Golfo Pérsico, estão 65% de todas as reservas mundiais de petróleo.

O que significa o petróleo? Significa 80% do fornecimento de energia para o mundo ocidental. Se não forem encontradas novas fontes de reserva, dizem todos os estudiosos que, na metade do século XXI, mais ou menos entre 2040 e 2050, estaremos com uma escassez absoluta de petróleo no mundo, como fonte de energia. A única perspectiva que se tem, ao longo desse tempo, de uma nova fonte de energia capaz de substituir essa é, sem dúvida, a energia da fusão nuclear, por meio da manipulação de uma forma de hidrogênio, o deutério. Esse elemento é abundante porque está na água do mar e poderia, então, assegurar energia para - são números gigantescos que fascinam a qualquer mente - aproximadamente dez milhões de anos na face da Terra.

O que acontece, então, na visão estratégica que está por trás dessa guerra? Certamente, é o fato de que, naquela região, já há muitos anos, desde que o mundo passou a se preocupar com aquela fonte de energia, os Estados Unidos mantêm um programa militar, com base em Diego García, no Oceano Índico, talvez a maior base que eles tenham no mundo, de extraordinário poderio. A quinta frota norte-americana, que sempre esteve no Mar Mediterrâneo, mudou-se para o Golfo Pérsico. Com vários acordos, os Estados Unidos conseguiram bases aéreas na Turquia e na Arábia Saudita. Todo esse sistema era baseado em vigiar essa área, que é sensível à possibilidade de uma conflagração mundial.

Ali, por exemplo, neste momento, está a preocupação estratégica maior dos Estados Unidos. É o fato de que a Arábia Saudita, que era uma aliada extremamente confiável, ser hoje um país sujeito a muitos problemas internos e ameaçada de passar a ter um Governo teocrático.

Temos hoje os problemas palestinos, que são quase insuperáveis. O Irã já se encontra com um Governo, que é também teocrático e islâmico, e o Iraque está na mão de um homem totalmente contra os Estados Unidos; da mesma maneira, a Líbia.

Esse é um ponto que tem uma importância extremamente estratégica para eles e é natural que a mentalidade mundial, a consciência mundial, veja, por trás dessa guerra, o que está ocorrendo - que, sem dúvida, são interesses que estão além das coisas que se dizem sobre o desarmamento do Iraque - sobretudo porque também pode ocorrer aquilo que Samuel P. Hutington escreveu, no seu famoso livro, O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Então, podemos dar margem a que realmente estejamos presentes ao início desse processo, que é a guerra das civilizações, o choque da civilização ocidental com a civilização oriental. Isso justifica o velho sonho do domínio do Golfo.

Também quero colocar um ponto que tem passado de certo modo ao lado das discussões sobre a guerra, sobre as motivações dessa guerra contra o Iraque. É o processo interno que se forma nos Estados Unidos, da existência de um certo fundamentalismo religioso que está sendo estimulado, também, pelo Presidente Bush, outro desserviço prestado à humanidade, por trás do seu comportamento.

Sabe-se, por exemplo, que, por volta dos anos 70, tivemos uma exacerbação de seitas nos Estados Unidos, de igrejas que falavam dos quatro momentos de despertar. O primeiro momento, o da independência; o segundo, da abolição; o terceiro, da criação do bem-estar social, welfare state e o quarto momento é do despertar, que ele chama de reconversão. É como se fosse também uma missão dos Estados Unidos, uma missão religiosa, nesta guerra de procurar a reconversão dos infiéis.

E quando ouvimos o Senhor Bush falar em “homens do mal”, nós, que estamos aqui, pensamos que se trata de uma palavra mal-colocada ou de uma figura de retórica. Não, ele está atendendo a um fundamentalismo religioso que ele próprio tem estimulado e que, nas pesquisas com que está lidando e que me surpreenderam extraordinariamente - ali estou vendo o Senador Tasso Jereissati, que tanto tempo também viveu nos Estados Unidos, foi estudante lá e sabe que nunca nos surpreendemos. Numa pesquisa do Gallup, que li, cerca de 68% da população americana diz que acreditam na existência do diabo; 28% - só 28% - acreditam na Teoria da Evolução, de Darwin; 48% da população acreditam que o mundo foi criado segundo o Gênesis, coisas essas do Diabo e do Gênesis sobre as quais a Igreja católica teve a oportunidade de fazer uma releitura da verdadeira leitura. Mas eles chegam e dizem que isso é o “eixo do mal” e estamos pensando que se trata realmente de uma figura de retórica.

Não, é uma atitude política de procurar mobilizar esse sentimento religioso também dentro da população americana como se estivessem embutidos e destinados a um messianismo que também implica o messianismo político e religioso.

O Sr. Sibá Machado (Bloco/PT - AC) - V. Exª me permite um aparte?

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Tem V. Exª a palavra.

O Sr. Sibá Machado (Bloco/PT - AC) - Senador José Sarney, estou lisonjeado, porque me admira a sua visão geopolítica a respeito desse caso que envolve a Guerra do Iraque. Queria dizer ainda que acredito que Osama Bin Laden deve ser uma farsa, porque ele teria sido financiado pelos americanos contra o Governo russo, quando estes estavam se apropriando do Afeganistão, talvez nessa visão geopolítica de domínio do petróleo. Queremos lembrar também que, depois da Segunda Guerra Mundial, quando na Europa caíram as principais bombas de destruição, já no final daquela Guerra, os alemães, com uma visão de futuro, imediatamente chamaram os países vizinhos e traçaram a construção da União Européia, que hoje tem um PIB mais ou menos igual ou superior ao do Nafta (Estados Unidos, Canadá e México). Podemos ter, talvez, dois motivos para isso: o primeiro, uma ameaça da União Européia em relação ao domínio da economia e da política; o segundo, parte do interesse dos franceses, talvez dos alemães e russos, com o veto na ONU porque o petróleo da França depende em quase 70% do Iraque. O Saddam também já foi financiado uma vez pelos Estados Unidos contra o Irã. Então, no mínimo, essa história está muito mal contada a respeito dessa guerra. Se Saddam é de fato um ditador, que seja do interesse do povo do seu país resolver o seu problema local. Quero então me solidarizar à sua preocupação. Creio que seja necessária uma ação de maior envergadura do Governo brasileiro, das instituições brasileiras, a respeito da solidariedade àquele povo e, digo assim, à segurança do mundo. Encerro dizendo que, se há uma preocupação exorbitante a respeito do perigo de guerra, que pode ser o Iraque com a construção de bombas bacteriológicas ou coisa parecida, quem garante que a tecnologia americana também não tenha um monte de bombas escondidas em alguns lugares? Quem elegeu o Governo americano como o paladino da segurança internacional? E qual é o efeito do perigo atômico daquele país? É preciso que o Brasil e um conjunto de países desta América possam dizer, de maneira mais contundente, do nosso repúdio e da nossa solidariedade, ao mesmo tempo, ao povo daquele país. Obrigado.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Senador, muito obrigado pelo aparte. Desejo fazer algumas ressalvas ao tema abordado por V. Exª. Não gostaria, em nenhum momento, que pudesse parecer que eu mantenha qualquer divergência a respeito do que dizem sobre os Estados Unidos, país pelo qual tenho grande admiração; é um país extraordinário. E digo mais. É uma sorte que esteja situado na América um país que tenha tido, como os Estados Unidos sempre tiveram, a missão mundial de defesa dos direitos humanos, da pregação permanente da liberdade, das concepções políticas a respeito da democracia. Não acredito que se outro país possuísse o poderio hoje concentrado nos Estados Unidos esse país o estivesse utilizando como os Estados Unidos têm feito.

Faço ressalva realmente ao equívoco que é, no momento, o governo do Presidente George W. Bush. O que ele está fazendo, na realidade, é um processo político que destrói a própria noção de vida que há nos Estados Unidos. As pessoas que conhecem a história e a vida dos Estados Unidos, o povo americano, vêem que se trata de um processo de destruição, primeiro, das instituições que eles próprios criaram - como disse, da Liga das Nações, das Nações Unidas, da convivência internacional, dos organismos. E agora o governo americano vem e destrói? O Senhor George W. Bush não tinha o direito de fazer isso com a humanidade, nem com seu próprio país. O que os Estados Unidos sofreram com o terrorismo certamente deve ser motivo de repúdio até hoje para todos nós. É também uma ação brutal. E o que é terrível é que o Presidente dos Estados Unidos tenha queimado a solidariedade mundial ao seu país com relação aos atos terroristas que culminaram com a destruição das torres gêmeas de Nova Iorque.

Ontem à noite, eu estava assistindo à CNN, e um dos comentadores mais populares dos Estados Unidos, o Sr. Larry King, tinha dito que ia debater a guerra segundo os grupos religiosos dos quais falava. E não por acaso ele citava o caso de George W. Bush, que aparecia todos os dias na televisão americana rezando, agradecendo a Deus por lhe ter dado a oportunidade de ser o grande defensor contra as forças do Mal nesse momento. É inacreditável que isso ocorra. Mais ainda: eu pego a Newsweek de ontem e vejo que a capa é o Senhor Bush, sob o título: “Bush & Deus”. E ele pregando: “Como a fé mudou a minha vida e está fazendo a minha agenda.” Esta é a capa da Newsweek, e ele aparece de mãos postas, rezando. É mais do que apelo. Estamos vendo a que ponto chegando, quando acompanhamos tudo que se tem visto sobre o ataque ao Iraque.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Senador José Sarney, V. Exª me permite um aparte?

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Ouço com muito prazer o aparte do Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Senador José Sarney, Presidente do Senado Federal, eu comungo com a admiração que V. Exª tem pela história dos Estados Unidos e pelo povo norte-americano, pelos seus anseios de liberdade e tantas lições que deram ao mundo, inclusive no que diz respeito à paz. V. Exª recordou aqui as lições de Leon Tolstoi, Gandhi, Bertrand Russell. Eu gostaria de acrescentar que, entre as pessoas que o povo norte-americano homenageia com feriados, estão: Cristóvão Colombo, no dia 12 de outubro, o Colombo’s Day; o dia de homenagem a Thomas Jefferson e Abraham Lincoln; e justamente Martin Luther King Jr. Eles são da mesma estatura de Tolstoi, Bertrand Russell e Gandhi. Sr. Presidente, hoje visitou-me a Srª Embaixadora Donna Hrinak, dos Estados Unidos da América, e formulei um convite a S. Exª, já que veio me visitar como Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal, expressando uma certa preocupação de que poderia haver um certo sentimento antinorte-americano em decorrência da guerra que se avizinha. S. Exª gostaria, inclusive, de poder transmitir às Srªs e aos Senadores a preocupação e o ponto de vista do Governo norte-americano. Eu disse a S. Exª que teria o maior prazer em convidá-la - e a convidei - a vir à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e que avaliava ser importante, ao mesmo tempo, dia e hora, termos também a visita e a palavra do Embaixador do Iraque. S. Exª aceitou o convite. Vou agora transmitir o mesmo convite ao Embaixador do Iraque para que, o quanto antes, possam os Senadores da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional ouvir as explicações de ambos os governos e transmitir a ela o nosso ponto de vista, que V. Exª expõe com veemência e responsabilidade. Além de ter sido Presidente do Brasil, V. Exª é o mais veterano Parlamentar do Congresso Nacional, Casa que preside. Nós, brasileiros, temos muita admiração pelas lições de um grande norte-americano que justamente disse tantas vezes que, com respeito à força física, é preciso se confrontar com a força da alma e que precisaríamos sempre não estar bebendo do cálice do ódio, da vingança, da guerra, da violência, mas, sim, procurar ao máximo solução que não seja a bélica, a da violência. É perfeitamente possível persuadir as pessoas por meio da inteligência, da palavra, das ações e dos gestos. V. Exª, ao fazer essa crítica construtiva em relação ao Presidente George W. Bush, expressa o anseio de todo o povo brasileiro e do Senado Federal. Encaminhei à Embaixadora Donna Hrinak as notas taquigráficas da reunião em que todos os Senadores se pronunciaram por ocasião da audiência pública com o Ministro Celso Amorim. Naquele dia todos falaram da sua esperança, da sua expectativa de que haja uma solução que não seja a guerra. Esse pronunciamento de V. Exª é muito importante. A embaixadora Donna Hrinak disse-me que voltou preocupada dos Estados Unidos, onde passou a última semana, porque poderá haver guerra, sim, a partir de segunda-feira. Disse ser possível até que o bombardeio se inicie amanhã, dia 13. Então, V. Exª está falando num momento de extraordinária relevância para os destinos do planeta Terra e é muito importante que o Brasil se manifeste, por intermédio de pessoas como o Presidente do Senado, com palavras tão significativas como as que V. Exª agora profere, com todo nosso apoio.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado, Senador Eduardo Suplicy, pelas suas palavras, como homem que sempre foi muito dedicado ao debate das questões internacionais nesta Casa.

Continuo meu pronunciamento.

Lamentamos não somente a guerra, que é uma coisa terrível, mas também o desmonte que ela está causando. Por exemplo, o grande arcabouço de direitos individuais, de direitos humanos, construído pelos Estados Unidos ao longo do tempo, está sendo destruído pelas leis que agora estão sendo feitas em virtude da preocupação com a segurança do Presidente Bush. Tais leis estão autorizando todas as formas de violação da privacidade das pessoas. Isso é, de certo modo, chocante. Os grupos defensores dos direitos humanos estão também reagindo dentro dos Estados Unidos. A violação da privacidade chegou a tal ponto que os próprios membros do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas disseram que estão temerosos de estarem sendo acompanhados, escutados pelo Departamento de Estado. Isso todos os jornais publicaram, e jamais se pensou que tal coisa pudesse ocorrer.

Outro acontecimento também de desmonte foi o fato de os Estados Unidos provocarem uma cisão dentro do mundo ocidental. O Governo Bush promoveu, entre a Europa e os Estados Unidos, uma divisão que, de nenhuma maneira, favorece a humanidade, nem a construção desse mundo para a qual contribuímos tão longamente.

Vi também outra coisa chocante, que foi a Conselheira Condolessa Rice dizer que era justificável que os Estados Unidos estivessem pressionando os países a votar com eles baseados nos seus interesses, discutindo os interesses também desses outros países, como se isso fosse algo tão simples que se dissesse dessa maneira e com essa clareza.

O Sr. Tasso Jereissati (PSDB - CE) - Senador José Sarney, concede-me V. Exª um aparte?

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Ouço, com muito orgulho, o aparte de V. Exª, Senador Tasso Jereissati.

O Sr. Tasso Jereissati (PSDB - CE) - Senador José Sarney, eu gostaria de congratular-me com V. Exª pela oportunidade e profundidade de suas palavras, que recolocam, com muito equilíbrio e numa visão geopolítica, histórica e sociológica, os acontecimentos que ocorrem no mundo, trazendo, com muita propriedade, a visão que pode ser considerada a visão desta Casa. Portanto, eu queria, no primeiro aparte que faço nesta Casa, fazer esta homenagem a V. Exª pelo pronunciamento tão importante que faz neste momento.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado.

Fico feliz pelo fato de o primeiro aparte de V. Exª nesta Casa ter sido em um discurso que estou proferindo. V. Exª é um homem que tem uma vida brilhante de serviços prestados ao nordeste. Acompanho sua carreira política desde quando era muito moço.

Chego ao final do meu discurso dizendo que tudo o que estou vendo causa-me espécie - a mim que sou um pacifista por temperamento, por estilo de vida; choca-me profundamente. Posso dizer, na linha do que Bérgson chamava de “substrato da alma”, que o substrato de minha alma é sempre contra a violência, contra os processos violentos. Sou um homem que possui, como valor, a paz, o diálogo, o entendimento, o respeito pela pessoa humana.

Lembro-me que conversei - o destino deu-me essa oportunidade - com Deng Xiaoping, responsável pela modernização da China, quando já estava muito velho, já no final da vida. Foi uma longa conversa. No final, ele pegou minha mão com seu jeito oriental, com certo carinho. Tendo oportunidade de falar com uma pessoa que teve uma vida muito rica, perguntei-lhe como via o futuro da humanidade. Respondeu-me: “Vejo um futuro de 50 anos de paz para a Humanidade”.

Estava me lembrando outro dia, enquanto escrevia estas anotações que aqui fiz dessas palavras de Deng Xiaoping, e vendo como ele deve estar decepcionado com suas previsões, com sua profecia. Também eu comungo dessa decepção.

Certamente ele, com a vivência que tinha da guerra, falava com aquela visão do tempo dos conflitos mundiais. Penso que era assim. Pois bem, vejo que isso tudo começa a desaparecer e somos testemunhas desse tempo em que não vejo somente o problema da marcha da guerra, mas também esse mundo destruído pela guerra. Imagino nos anos que levaremos para reconstruir isso que será destruído. Para o Brasil então é uma coisa terrível. O Presidente da República recebe o País num momento de dificuldades, num momento em que o mundo é interdependente. Vamos entrar em um panorama internacional de grandes problemas metidos nessa situação em que o mundo vai ficar no após-guerra.

É possível evitar a guerra? Creio que não. Todos estamos aqui executando essa tarefa que, já disse, não podemos deixar de executar. É um protesto que sai da alma, da consciência de cada um de nós, mas sabemos que essa decisão já está tomada. Não acreditamos que uma grande potência como os Estados Unidos desloque 400 mil homens, a sua esquadra inteira, para o Oriente Médio, para o Mediterrâneo, para olhar ali as ruínas das cidades submersas de Alexandria nem de Sidon. Naturalmente eles não estão ali para isso. É aquela frase, que é bom repetir: César chegou à beira do Rubicão não para beber água, mas justamente para a tarefa militar de chegar a Roma. É com essa desilusão que assistimos a esse panorama atual.

Fico muito feliz de ver o Brasil como uma unanimidade, um país tão separado por divergências, pela geografia e grupos humanos, mas unido diante de uma opinião compacta contra a guerra, que se junta a todos aqueles que, no mundo inteiro, mobilizam suas consciências contrárias porque o Brasil é um país que tem também uma tradição pacifista.

Estou fazendo este discurso e achei no dever de fazê-lo porque participo de um conselho internacional chamado Interaction Council, composto de ex-Presidentes da República, o qual fez um manifesto mundial para...

O SR. PRESIDENTE (Romeu Tuma) - Presidente José Sarney, peço licença para prorrogar a sessão por mais dez minutos, até o termino do discurso de V. Exª, tendo em vista ter-se esgotado o tempo.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Senador Romeu Tuma, eu é que peço licença a V. Exª por ter ultrapassado o tempo, eu que sou tão zeloso do tempo nesta Casa.

O SR. PRESIDENTE (Romeu Tuma) - Acho que o discurso de V. Exª merece toda a nossa atenção.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Estava justamente dizendo que o Conselho me mandou, há três dias, assinado por homens como Helmut Schmidt, Miyasawa, do Japão, Miyazaki, Giscard D´Estaing, pedindo também que colocasse minha assinatura, como ex-Presidente, e modestamente a coloquei, mostrando que também essa mobilização que se faz atinge todo os segmentos mundiais, mas que é impossível trocar aquilo que o Presidente Bush deseja fazer.

Acredito que as primeiras vítimas da guerra já estamos aí. Duas delas são visíveis: o Sr. Tony Blair, na Inglaterra, e o Sr. José María Aznar, na Espanha. Ontem, assistimos ao debate de Tony Blair na televisão inglesa e certamente ouvimos aquelas duas palmas muito abafadas que ele recebeu, que eram realmente uma representação da condenação: 82% da opinião pública da Inglaterra contrária à guerra.

A opinião pública americana também está dividida. O The New York Times de domingo publicou um editorial - que já teve uma parte lida aqui pelo Senador Eduardo Suplicy - condenando a posição do Governo Bush. Lá há muitos manifestos de todas as maneiras e de todas as tendências, muitas delas protestando contra a guerra. Seria lamentável que eu me esquecesse de assinalar neste discurso essa figura comovente de João Paulo II, quase que no fim de seu pontificado, mas com aquela fé extraordinária, levantando-se com sua força moral em todas as consciências católicas e não católicas do mundo, pregando a paz, contra a guerra.

É também com grande orgulho que eu posso dizer que todos nós latinos podemos estar hoje - e seria uma grande injustiça que eu não citasse - que a grande França, a França da Revolução de 1789 não estivesse, com aquela mesma bandeira que tantos ideais hoje nos suscita, através de seu Presidente, sendo um símbolo da luta da Europa contra essa determinação.

É uma felicidade ver que o Governo brasileiro, por intermédio do seu Presidente da República, teve uma conduta impecável, desde o princípio, em uma condenação permanente, colocando a diplomacia brasileira a serviço de todos aqueles que estão contrários a que esse processo chegue ao fim.

Ao lado dessa bandeira francesa que mencionei, é muito bom vermos essa unanimidade brasileira, do povo e do Governo, o nosso verde também ao lado da bandeira francesa, defendendo a paz, contrário à guerra.

Quero citar, para concluir, um fato que muito me tocou. Tenho um neto de nove anos que vive no Canadá. Ele, nesse fim de semana, me perguntou: “Meu avô, e a guerra?” Eu indaguei a ele: Mas você está preocupado com a guerra? “Muito preocupado” - respondeu. “Eu, no Canadá, quando vou ao supermercado e vejo um produto americano e outro que não é dos Estados Unidos, eu compro o de outro país, pois sei que eles vão pegar nosso dinheiro para colocar em bombas.”

Ora, se um menino de nove anos está pensando dessa maneira, vemos o mal que o Sr. George W. Bush fez ao seu próprio país no mundo inteiro, com essa determinação de desmontar esse sistema que foi construído para assegurar a paz na humanidade.

O nosso protesto, assim, perante o Senado é uma manifestação da minha consciência e, tenho certeza, e da consciência de nós todos, sabendo que, por menor que seja o efeito da palavra de cada um de nós, é sem dúvida um grão de areia de crença na humanidade, no homem e na paz perpétua entre os homens.

Muito obrigado. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/03/2003 - Página 3303