Discurso durante a 19ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre a postura e afirmações feitas pelo Presidente dos EUA, Sr. George W. Bush, que anunciou não somente o uso da força contra o Iraque, mas o fim de um processo de convivência pacífica entre as nações, cuja síntese é a ONU. (Como Líder)

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • Comentários sobre a postura e afirmações feitas pelo Presidente dos EUA, Sr. George W. Bush, que anunciou não somente o uso da força contra o Iraque, mas o fim de um processo de convivência pacífica entre as nações, cuja síntese é a ONU. (Como Líder)
Aparteantes
Gerson Camata.
Publicação
Publicação no DSF de 19/03/2003 - Página 3954
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • COMENTARIO, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, POLITICA INTERNACIONAL, DECLARAÇÃO, AUTORIA, GEORGE W BUSH.
  • BUSH, PRESIDENTE DE REPUBLICA ESTRANGEIRA, UTILIZAÇÃO, VIOLENCIA, GUERRA, COMBATE, PAIS ESTRANGEIRO, IRAQUE, CONTESTAÇÃO, DELIBERAÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU).
  • REFERENCIA, PERIODO, PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, ESFORÇO, PAIS, CONSOLIDAÇÃO, PAZ, CRITICA, AUTORITARISMO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), AUSENCIA, ATENÇÃO, OPINIÃO PUBLICA, OPOSIÇÃO, GUERRA, MANIFESTAÇÃO, APREENSÃO, SITUAÇÃO, AMBITO INTERNACIONAL, POSSIBILIDADE, AUMENTO, VIOLENCIA, DESTRUIÇÃO, PACIFICAÇÃO.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Como Líder.) - Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Senadores, não desejo utilizar os 20 minutos regimentais; procurarei ser breve. Estou na tribuna apenas por um dever de consciência, para voltar a um tema de que já tratei nesta Casa: a guerra.

Estamos num momento que considero um dos piores da história do século XXI, quando o Presidente dos Estados Unidos, Sr. George W. Bush, anuncia ao mundo não somente o uso da violência contra o Iraque, não somente a guerra, mas também o fim de um processo construído há mais de 2 séculos entre as nações para uma convivência pacífica.

A palavra do Presidente Bush foi muito direta: “Se as Nações Unidas não cumprem com o seu dever, os Estados Unidos vão cumprir com o seu”. É essa frase a expressão da lei da força, a primitiva lei da selva, hoje com armas extremamente sofisticadas. Ele quis dizer que hoje temos, pela primeira vez na história da humanidade, um ditador mundial, não um ditador de um determinado país, mas aquele que dita as normas pelas quais o mundo inteiro deve conduzir-se. Mais ainda, que é o juiz do que está certo e errado, acima das Nações Unidas. E não está só. Desenvolvendo esse mesmo pensamento, o Sr. George Will escreveu hoje no The Washington Post: “A guerra contra o Iraque já esclareceu uma coisa: a ONU não é uma boa idéia mal implementada; é uma má idéia.” O Presidente George W. Bush, há 2 dias, repetiu: “Quando se trata de nossa segurança não precisamos da permissão de ninguém”. Já o vice-Presidente dos Estados Unidos afirma: “Nunca antes na história a ordem internacional de segurança foi tão favorável aos interesses e ideais americanos. Isso requer uma liderança política americana, em vez daquela das Nações Unidas.”

Devemos refletir sobre essas frases que dizem tudo sobre uma etapa da humanidade em que a vontade de um homem só impõe-se inexoravelmente para todo o Mundo. É a destruição de um arcabouço jurídico internacional construído por meio de um organismo que os próprios americanos conceberam e criaram.

Vou recordar o que disse em meu discurso anterior nesta Casa. Foi Woodrow Wilson quem concebeu a Liga das Nações no seu famoso discurso dos 14 Pontos.

Roosevelt foi quem concebeu a paz duradoura internacional através das Nações Unidas, desde o Tratado do Atlântico, quem deu o nome de Nações Unidas, quem ofereceu e financiou o seu projeto de construção em Nova Iorque. Eisenhower, em 1956, na crise do Canal de Suez, vetou o uso da “força na solução dos conflitos internacionais”.

Nos Estados Unidos mesmo, a opinião pública se move. As pesquisas de opinião pública mostram o profundo desconforto com a apresentação, por Colin Powell, de documentos falsificados sobre o Iraque. Isso desmoraliza um país líder mundial. A CIA, dizem os americanos, não só não podia deixar de saber a verdade, como não podia induzir um homem da respeitabilidade de Powell a fazer isso.

A economia americana, com os gastos do Presidente Bush, desmorona; todo superávit acumulado pelo ex-Presidente Clinton desapareceu e os Estados Unidos voltam à mesma situação de déficit que sempre teve. Sessenta e um por cento dos americanos estão insatisfeitos com o governo e sua economia e somente vinte e três por cento acham que ela vai bem.

Sr. Presidente, passei a vista nos editoriais de hoje de todo o mundo sobre a atitude do Presidente Bush. O Le Monde chama a atenção para o fracasso da diplomacia americana. Diz o jornal: há cerca de um mês, quando um diplomata americano renunciou à carreira, o rompimento do governo americano com a opinião pública mundial ainda não chegara aos extremos dos últimos dias, e sua atitude pôde ser interpretada como um descompasso isolado, uma atitude pessoal e radical. Hoje é um fato consumado: o único apoio que o Eixo -- Espanha, Inglaterra e Estados Unidos -- conseguiu no Conselho de Segurança foi o da Bulgária. Fora dele, também sob maciço protesto popular, estão Japão, Austrália e Portugal.

O The New York Times, grande e influente jornal americano, diz: o discurso de Bush compara Saddam e Hitler, o esforço pela paz com o pacto de Munique. A comparação é ridícula. O acordo de 38 foi justamente a submissão de Inglaterra e França ao ultimato alemão, ao aceitar a invasão de um país que estava no seu canto por um exército com objetivos econômicos (no caso, a indústria bélica tcheca). Munique é a vitória da guerra, como seria Nova Iorque se a diplomacia americana tivesse ganho.

E mais: a derrota de Napoleão para Kutuzov, como a dos troianos para os gregos (lembrada pelo The New York Times) deveu-se à húbris - que era como os gregos chamavam aquela soberba, com as pessoas se comparando aos deuses, acima dos homens: não convém brincar com a idéia de que não há limites para o poder. A vitória de Bush sobre o Iraque não está no plano da dúvida possível, mas as conseqüências para os Estados Unidos e para o mundo do desafio à sociedade das nações, à vontade maciça da população mundial, podem ser muito diferentes do que imagina a soberba.

O Sr. Gerson Camata (PMDB - ES) - Concede-me V. Exª um aparte?

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Pois não, Senador Gerson Camata.

O Sr. Gerson Camata (PMDB - ES) - Presidente José Sarney, V. Exª, no pronunciamento passado - eu pretendia inclusive aparteá-lo e não o fiz porque seu pronunciamento fluía de uma maneira tão lógica e tão agradável que seria uma agressão um aparte -, disse que liricamente ia expor algumas idéias - antecipando o que está acontecendo hoje, por sinal - e que talvez não fosse ouvido. Mas acho interessante observar, para aqueles que acompanham a recente história do Brasil, que há dois presidentes nas Américas que devem ser ouvidos numa hora destas: Nos Estados Unidos, o ex-presidente Jimmy Carter, que tem atuado no mundo inteiro, desde a Conferência de Helsinque até agora, já como ex-presidente, no que V. Exª também o imita, ou ele imita V. Exª. E V. Exª tem autoridade para falar sobre este assunto. Recordo-me da corrida atômica entre Brasil e Argentina. Os militares brasileiros tinham um nítido projeto nuclear para chegarem a artefatos bélicos nucleares, assim como os argentinos. V. Exª iniciou, em seu governo, o movimento para criar o Mercosul sendo o primeiro Presidente brasileiro a visitar as instalações nucleares da Argentina. V. Exª retribuiu. Convidou o Presidente da Argentina para visitar as instalações nucleares da Marinha do Brasil. Dali se fez o Mercosul. Brasil e Argentina pararam com aquela corrida estúpida para fazerem um acordo nuclear em favor do uso da energia atômica para a paz. V. Exª deu um grande passo, no qual ninguém acreditou e que hoje é uma realidade: em vez da corrida armamentista e da corrida nuclear, o Brasil e a Argentina deram as mãos no Mercosul. Houve outro episódio do Governo de V. Exª: o problema entre o Peru e o Equador. V. Exª imediatamente enviou observadores brasileiros, reuniu o grupo do Rio e o Brasil foi o garantidor do acordo assinado e, até hoje, aqueles dois Países nunca mais entraram em conflito. V. Exª, que no Cone Sul e na Presidência do Brasil atuou para que não houvesse conflitos na América do Sul, tem autoridade moral perante o mundo e as Américas para expressar sua opinião, principalmente pelo cabedal que acumulou durante todo esse tempo no exercício do Governo do Brasil em favor da paz na América Latina.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado pela generosidade do aparte de V. Exª, sobretudo ao recordar o trabalho que procuramos fazer, a contribuição que demos, juntamente com o Presidente Raúl Alfonsín, para assegurar aqui, na América do Sul, uma área de paz.

Quero lembrar também que propus, quando Presidente da República, às Nações Unidas, resolução que foi aprovada nesse sentido - houve apenas uma abstenção, dos Estados Unidos -, considerando o Atlântico Sul zona de paz. Essa também foi uma iniciativa tomada naquele tempo.

Assim, estou sendo coerente com as minhas idéias e com a minha própria vida.

Não vou alongar-me porque não quero tomar o tempo à Senadora Patrícia Saboya Gomes, brilhante Senadora do Ceará que está inscrita para falar em seguida.

            Concluo mostrando aos Srs. Senadores o que certamente chocou a todos nós, ao mundo inteiro: essa fotografia, publicada nos jornais de todo o mundo, dos três líderes anunciando a guerra, a violência e a destruição das Nações Unidas sorrindo, como se estivessem em uma festa de aniversário, em um momento de congratulações ou, como diziam os ingleses quando ocupavam a Índia, como se estivessem caminhando para uma caçada de tigres, o seu esporte predileto naquela época.

E repito as palavras que há pouco proferiu o Papa sobre a decisão de ir o Sr. George W. Bush à guerra. Disse Sua Santidade: “Os que se lançam à guerra vão responder perante Deus e suas consciências”.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/03/2003 - Página 3954