Discurso durante a 33ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Manifestação de discordância em relação à instituição de cotas raciais nas universidades e no serviço público em geral.

Autor
Jefferson Peres (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Manifestação de discordância em relação à instituição de cotas raciais nas universidades e no serviço público em geral.
Publicação
Publicação no DSF de 08/04/2003 - Página 6402
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • CRITICA, CRIAÇÃO, COTA, ADMISSÃO, NEGRO, UNIVERSIDADE, SERVIÇO PUBLICO, DEFESA, UTILIZAÇÃO, CRITERIOS, RENDA, APREENSÃO, CONFLITO, MOTIVO, MISTURA, RAÇA, POPULAÇÃO, BRASIL, REGISTRO, PROBLEMA, OCORRENCIA, EXAME VESTIBULAR, UNIVERSIDADE ESTADUAL, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).
  • REGISTRO, SOLICITAÇÃO, CONSULTORIA, SENADO, ESTUDO, AVALIAÇÃO, EFEITO, SISTEMA, COTA, ENSINO SUPERIOR, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), SUBSIDIOS, DEBATE.

O SR. JEFFERSON PÉRES (PDT - AM) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, começo com um registro que, no fundo, é uma profissão de fé. Desde a infância, recebi a bênção de ser vacinado contra a doença do racismo, graças ao fato de haver convivido com colegas e companheiros negros e mestiços, alguns dos quais permanecem meus amigos até hoje.

Repilo, portanto, qualquer acusação de que minhas palavras estejam eivadas de ânimo discriminatório, quando manifesto minha discordância em relação à instituição de cotas raciais nas universidades e no serviço público em geral.

Admitindo, embora, que o regime de cotas possa ser defendido numa perspectiva jurídica, no marco das chamadas políticas públicas de discriminação positiva - conforme a célebre manifestação de Rui Barbosa, para quem a justiça consiste em tratar desigualmente os desiguais -, estou convicto de que a questão traz à baila dilemas éticos que não podem ser negligenciados sem sérios prejuízos para a sociedade.

Quero dizer, Sr. Presidente, que as cotas raciais poderão gerar situações de absoluta iniqüidade, muitas vezes beneficiando ricos em detrimento de pobres. Pois iníquo é favorecer alguém em razão de sua cor, sem atentar para a sua renda. Ou será que alguém entre nós, em sã consciência, teria coragem de ponderar positivamente a prova do filho do Pelé e assim conceder-lhe vantagem competitiva sobre o filho de uma faxineira branca?

E o que dizer, numa sociedade miscigenada como a nossa, dos conflitos de interpretação advindos da proposta de alguns movimentos e organizações não-governamentais para que se deixe ao subjetivismo dos interessados a responsabilidade pela definição da própria cor?

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, essas e outras contradições afloraram com didática nitidez em recente exame vestibular promovido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O episódio traz valiosas lições para todas as autoridades públicas interessadas em combater as desigualdades sociais sem cair nas falácias da demagogia iníqua e daninha.

Na visão de qualquer educador digno do título, o resultado daquele exame só pode ser considerado um rematado desastre. Senão, vejamos.

Dos candidatos aprovados, menos de 37% obtiveram sua classificação independentemente do sistema de cotas. Vale aqui lembrar que este foi aprovado em finais de 2001, prevendo que metade das vagas da UERJ se destinariam aos estudantes de escolas públicas fluminenses. Na última hora, porém, a Assembléia Legislativa modificou a proposta para incluir uma cota de 40% de vagas para candidatos pardos e negros. Para conciliar tais exigências, a universidade viu-se obrigada a realizar dois vestibulares: o primeiro para candidatos egressos do ensino público, e o segundo no tradicional sistema classificatório.

O problema, Sr. Presidente, é que imenso número de candidatos declarou-se negro ou pardo a fim de tirar vantagem do critério da autodefinição, mesmo que esta estivesse em flagrante conflito com a cor registrada nos documentos de identidade. Não sei se os nobres pares atentaram para a seriedade do episódio: até agora, a UERJ não foi capaz de dizer se a lei de cotas foi cumprida ou não, pois ninguém sabe quantos fraudaram o sistema ou dele participaram em boa fé.

O concurso acabou gerando duas classes de estudantes cujas performances não poderiam ser mais díspares. Tomemos como exemplo o curso de Odontologia. Ali, o último aprovado com base nas cotas obteve pontuação cerca de 15 vezes menor que o último classificado no esquema tradicional.

Não deve, pois, causar espanto que muitos reprovados tenham decidido recorrer à Justiça para se proteger do que consideram violação dos seus direitos constitucionais, de vez que a nossa Lei Maior, no seu artigo 206, inciso I, garante a todos “igualdade de condições no acesso e na permanência na escola”. É fácil prever que os já obstruídos canais do Judiciário ficarão ainda mais atravancados, sem que isso impeça os perpetradores de autodefinições falsas de freqüentarem as aulas na UERJ.

No momento em que tramita na Câmara dos Deputados proposição já aprovada nesta Casa, de teor muito semelhante à lei fluminense de cotas universitárias, lanço um último alerta na esperança de impedir a generalização de tais absurdos.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, creio sinceramente que as melhores políticas de ação afirmativa são aquelas baseadas em providências emergenciais e de largo prazo, com foco na renda como diferencial de oportunidades educacionais. No primeiro caso, estariam as bolsas cursinho pré-vestibular, financiadas pelo poder público, em benefício de estudantes comprovadamente pobres, negros ou não. No segundo, figurariam medidas como o fortalecimento de programas de bolsa-escola e a adoção de incentivos salariais para professores e diretores de escolas públicas cujos alunos comprovassem bom desempenho em certames nacionais periódicos. Afinal, é ali, nos níveis fundamental e médio, que as desigualdades se cristalizam, e o vestibular funciona como mero e tardio reflexo de uma cruel estratificação entre crianças e jovens das classes privilegiadas, de um lado, e os filhos da exclusão, de outro. Diria mais: que essa cristalização perversa começa a operar bem antes até, no nível da pré-escola, fora do alcance de meninos e meninas pobres, cujo direito ao estudo é garantido apenas a partir dos sete anos de idade, quando os filhos das classes médias e altas, a par de bem fornidas bibliotecas no lar ou nas casas de parentes, há muito estão imersos no ambiente rico em estímulos intelectuais e motores dos jardins de infância e das classes de alfabetização.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no intuito de embasar essas e outras propostas capazes de transformar a escola pública, do atual foco reprodutor de injustiça social, em alavanca de emancipação das maiorias racionais, acabo de solicitar à Consultoria Legislativa desta Casa estudo que permita colocar em perspectiva histórico-comparativa segura os resultados da legislação de cotas em países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos, onde o sistema foi implantado em 1964, conforme a Lei dos Direitos Civis, promulgada pelo então presidente Lyndon Johnson. São análises que, a curto prazo, poderiam alimentar ciclos de debates e audiências públicas em nossas Comissão de Educação e de Assuntos Sociais, com vista a uma produção legislativa oportuna e sensata.

É sempre muito bom aprender com os acertos e, sobretudo, com os erros dos outros, desde que estejamos dispostos a aplicar a essas experiências estrangeiras o princípio da “redução sociológica” às condições nacionais, conforme ensinava o saudoso e notável sociólogo negro Alberto Guerreiro Ramos. Caso contrário, marcharemos rumo a um doloroso fiasco de política pública, se, por exemplo, ignorarmos que as ações afirmativas norte-americanas têm por pressuposto costumes refletidos em antiga decisão da Suprema Corte segundo a qual a existência de um sessenta e quatro avos de ascendentes negros basta para definir alguém como negro.

O transplante mecânico e acrítico dessas políticas para uma sociedade como a nossa, habituada a funcionar segundo pressupostos quase sempre diametralmente inversos, não deixará de produzir conseqüências paradoxais, por vezes bastante indesejáveis.

Em suma, Sr. Presidente, cotas sociais, talvez; raciais, não! Estas me parecem um equívoco perigoso, com o qual não posso concordar.

Se minha posição for incompreendida ou mal interpretada, paciência. Homem público que se preza não assume posições calculando vantagens eleitoreiras ao sabor das pesquisas de popularidade.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/04/2003 - Página 6402