Discurso durante a 42ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem ao Dia do Índio

Autor
João Capiberibe (PSB - Partido Socialista Brasileiro/AP)
Nome completo: João Alberto Rodrigues Capiberibe
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao Dia do Índio
Aparteantes
Mozarildo Cavalcanti.
Publicação
Publicação no DSF de 23/04/2003 - Página 8219
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • REGISTRO, PRESENÇA, EDUARDO AGUIAR DE ALMEIDA, PRESIDENTE, FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO (FUNAI), SESSÃO, HOMENAGEM, DIA, INDIO.
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, INDIO, OPORTUNIDADE, AVALIAÇÃO, SITUAÇÃO, COMUNIDADE INDIGENA, PAIS.
  • SOLICITAÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, GARANTIA, DIREITOS, INDIO, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS.

O SR. JOÃO CAPIBERIBE (Bloco/PSB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, dedicamos a Hora do Expediente desta 42ª sessão a homenagear o Dia do Índio, fazendo uma reflexão sobre a relação dos brasileiros - segundo Darcy Ribeiro somos uma nova etnia - com as populações ameríndias, que já existiam há milênios, antes da presença portuguesa, e mesmo espanhola, no solo das Américas. Como dizia Darcy Ribeiro, o saudoso antropólogo, eminente Senador membro desta Casa, figura pública inesquecível, recebemos, na nossa formação, a contribuição dos europeus que para cá vieram em busca de riquezas, dos índios que aqui viviam e dos africanos posteriormente trazidos como escravos. Essa é a formação da sociedade brasileira, uma associação multicultural. Portanto, temos grande diversidade étnico-cultural e pretendemos e nos esforçamos para construir uma sociedade democrática. E uma sociedade democrática não se constrói, Sr. Presidente, sem o profundo respeito pelas diferenças. Esse é o requisito fundamental para a construção de uma sociedade onde o bem público tem a garantia do Estado e tem o controle de cada cidadão. Essa convivência com as diferenças é decisiva; portanto é necessário que definitivamente reconheçamos o tratamento histórico dado aos povos indígenas no nosso País.

Registro, neste momento, a presença honrosa do Dr. Eduardo Aguiar de Almeida, Presidente da Funai, nesta Sessão.

Temos que reconhecer que, historicamente, as relações entre brancos e índios foram de opressão e de genocídio.

Quando avaliamos o desenvolvimento da nossa sociedade em comparação à dos povos indígenas do Brasil, podemos afirmar que, antes da presença portuguesa, havia entre cinco e sete milhões de ameríndios, como denominavam os europeus, habitando o espaço que compreende o moderno Brasil de hoje. Quinhentos anos depois, existe um pouco mais de trezentos mil índios.

O que aconteceu ao longo da nossa História com os habitantes primitivos das Américas? Penso que cada um de nós, Senadores e Senadoras, tem uma história particular de convivência ou de contato com os povos indígenas do nosso País. E eu, que sou amazônida, nascido no coração da floresta, recebi ao mesmo tempo uma cultura muito próxima à cultura indígena e também a educação formal oriunda dos eurodescendentes. A minha primeira referência histórica em relação aos povos indígenas está na Carta de Pero Vaz de Caminha, que descreve, de forma idílica e até com sensualidade, a presença dos índios na costa brasileira.

Aprendemos na escola, nos primeiros momentos do ensino fundamental, sobre a existência dos índios quando da chegada dos portugueses ao Brasil. Mas, daí para frente, não se fala mais em índios. Durante toda a nossa formação, são raras as referências a essa cultura a não ser quando algum desses povos se aliou à presença colonial portuguesa na defesa do território contra os invasores franceses, ingleses ou espanhóis. Nas lutas em que se irmanaram índios e portugueses, aí se fazem referências e se apresentam alguns heróis nativos na nossa região. Mas, no conjunto, a História é de opressão e de genocídio.

É preciso que reconheçamos essa relação histórica conflituosa, mas que reconheçamos também a contribuição desses povos na formação da sociedade brasileira. Na construção democrática, não nos cabe alternativa senão a de respeitar as diferenças e reconhecer a cultura dos povos indígenas, que começa por uma língua diferente da nossa. Os índios falam outra língua, dominam outro código e, portanto, não podem receber o tratamento de brasileiros comuns, com uma língua única, a portuguesa, e uma cultura resultante desse grande encontro de culturas diferentes.

Testemunho aqui a nossa experiência com os povos indígenas do Amapá, com os quais convivemos intensamente por quase oito anos. Aprendemos muito com a sabedoria desses povos milenares. Recebemos essa contribuição e a devolvemos de acordo com o princípio que acreditamos necessário para a construção da sociedade democrática. Convivendo com as diferenças e respeitando-as, estabelecemos alguns acordos com as populações indígenas do Amapá e também com as do nosso vizinho Estado do Pará.

Vivem no Amapá os Wayãpi, resultado da diáspora dos povos guaranis que desceram da região amazônica para o sul e voltaram pela costa. Esses índios hoje vivem nos primeiros contrafortes da cordilheira da Serra do Tumucumaque e falam o tupi-guarani, assim como os paraguaios e os tupis-guaranis da costa atlântica. Vivem no Amapá em situação de distanciamento da sociedade envolvente. Os Palikur, os Galibi, os Galibi-Marworno, os Karipuna que vivem na fronteira com a região francesa da Guiana são povos que têm uma relação secular com a sociedade envolvente e, portanto, uma influência política importante nas comunidades em que vivem.

Ao longo do nosso governo, passamos a estabelecer uma relação de iguais, firmando contratos e convênios com essas comunidades, para que elas executassem as ações correspondentes às obrigações do Estado nas áreas fundamentais, como as da educação, da saúde, das atividades econômicas, culturais e esportivas. Assim que o Estado deixou de executar as tarefas para os índios, estes passaram a ser protagonistas. Receberam, então, apoio e, por meio das suas organizações - organizações dos povos indígenas do Oiapoque, organização dos povos wayãpi, dos povos Tiriyó, Wayana-Aparai -, passaram a obter os recursos para desenvolver as atividades essenciais dentro de suas terras. No Amapá, todas as terras indígenas estão demarcadas e homologadas. Isso é fundamental, porque o direito à terra demarcada e homologada, sem demora, é um direito originário dos povos indígenas que vivem no Brasil.

Assim, apelo ao Presidente Lula - eleito pela sociedade brasileira, numa verdadeira alternância de poder ao longo da República - para que faça valer o direito dos povos indígenas, homologando as terras indígenas ainda não homologadas. No meu ponto de vista, os processos demarcatórios são uma obrigação da sociedade brasileira, apesar de importantes contribuições recebidas de povos de outros países ao longo dos anos. Que sejam agilizados os processos demarcatórios, criando-se políticas públicas específicas para os povos indígenas e respeitando-se as suas organizações, tal como fizemos no Amapá, onde todo atendimento de educação e saúde era feito pelas organizações indígenas, com a participação financeira do Estado, que cumpriu suas obrigações.

Os resultados desse trabalho foram tão importantes, que algumas organizações do Governo Federal passaram a adotar o mesmo princípio para dar assistência aos povos indígenas. E assim ocorreu com a Fundação Nacional de Saúde, a quem cabe assistir os povos indígenas. A Fundação Nacional de Saúde, então, criou os Distritos Sanitários Indígenas, repassando os recursos para as mãos das organizações indígenas, tal como vínhamos fazendo com muito sucesso no Amapá. Essas comunidades indígenas passaram a gerenciar os recursos e a garantir um atendimento que, de outra forma, não lhes chegaria nunca - a experiência histórica demonstra as dificuldades de gerenciamento de recursos e também dos serviços dentro das áreas indígenas.

Portanto, hoje é um dia de reflexão e também de reconto de experiências. É claro que a nossa história não é feita somente de desencontro entre os povos indígenas e os povos colonizadores. Houve encontros. Quero registrar um dos mais belos momentos de encontro entre povos muito distintos e que se trataram de forma agressiva ao longo da história. Neste caso, a música serve de ponte entre culturas diferentes. Falo da música erudita européia, executada por músicos da Orquestra Sinfônica de São Paulo e da Escola de Música Walquíria Lima, de Macapá. Esse grupo de músicos eruditos se juntaram a vinte músicos indígenas das tribos palikur, do Oiapoque, e também a vinte índios wayana-aparai da Serra do Tumucumaque e fizeram uma belíssima composição.

O Sr. Mozarildo Cavalcanti (PPS - RR) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. JOÃO CAPIBERIBE (Bloco/PSB - AP) - Um instante, nobre Senador Mozarildo Cavalcanti. Permita-me apenas que conclua a explicação. Em seguida, com muita satisfação, concederei o aparte a V. Exª.

São nove músicas compostas e também executadas entre eles. Tivemos a felicidade de ver esse encontro num espetáculo de final de ano. O nosso desejo é trazer esse espetáculo para que todos nós, brasileiros e brasileiras, como dizia o nobre Senador Darcy Ribeiro, possamos sentir, definitivamente, que é possível a construção de uma sociedade respeitosa e democrática, que convive e se delicia com as diferenças. Os vinte músicos eruditos tocam piano, violino e violoncelo, enquanto os músicos indígenas tocam flauta feita da canela de veado e percussão feita do casco de jaboti. Enfim, os seus instrumentos demonstram claramente uma forte cultura musical entre os povos indígenas. E não tivemos a oportunidade de casar essa cultura musical, assim como outros instrumentos ancestrais, aos nossos conhecimentos.

Ouço, agora, o aparte do nobre Senador Mozarildo Cavalcanti.

O Sr. Mozarildo Cavalcanti (PPS - RR) - Nobre Senador João Capiberibe, cumprimento V. Exª, pelo que conheço do trabalho feito quando Governador do Amapá, com relação à assistência aos povos indígenas daquele Estado. O trabalho de V. Exª foi inclusive copiado pelo Governo Federal, mas mal copiado. V. Exª realmente entregou nas mãos dos índios o trabalho de assistência à saúde, à educação, além de outras atividades das comunidades. O Governo Federal, entretanto, pinçou aqui e acolá algumas organizações e privilegiou-as, sem nenhum tipo de critério, em detrimento de outras organizações indígenas. Cito o caso de Roraima. Numa determinada região, existem quatro instituições indígenas: o Cir - Conselho Indigenista de Roraima -, a Sodiur - Sociedade dos Índios Unidos de Roraima -, a Lidici, e a Arikon. As quatro são formadas por índios da mesma região e das mesmas etnias. No entanto, o Cir, dada a sua ligação com o Cimi, foi escolhido, em detrimento das demais organizações, para prestar atendimento à saúde dos índios naquela região, e faz um trabalho de segregação entre eles próprios. Não sou eu quem diz isso, Senador João Capiberibe, mas os próprios índios, que prestaram depoimento à CPI das ONGs. Faço esse registro para dizer que o Governo Federal, quando copia iniciativas importantes como a de V. Exª, copia mal. Repito aqui o que tenho dito sistematicamente no Dia do Índio. Por que a Funai não tem um presidente índio? Não conheço nenhuma entidade de mulheres presidida por um homem; não conheço nenhuma entidade de negros presidida por um branco; portanto, não consigo entender por que não é um índio o presidente da Funai. Ainda há pouco, V. Exª estava registrando a presença do Presidente da Funai, que é, efetivamente, um não índio. Aliás, tem sido sistematicamente. Peço, então, ao Presidente Lula que resgate esse equívoco, dando aos índios o direito de presidir a Funai. Se é necessário ter curso superior, vários índios têm curso superior; se é necessário conhecer os índios, ninguém conhece mais os índios do que os próprios índios. Então, deixo este apelo, para que, pensando nos índios - como V. Exª bem disse, eles são diferentes de nós -, entreguemos a eles o direito de dirigir o órgão máximo de defesa dos seus interesses, que é a Funai.

O SR. JOÃO CAPIBERIBE (Bloco/PSB - AP) - Obrigado, Senador Mozarildo Cavalcanti. Eu diria que o fundamental para os povos indígenas é o direito à terra. Isso significa gerir o seu próprio espaço, viver de acordo com seus princípios e com a sua cultura.

Temos um ponto que nos unifica e nos une a todos - e tivemos a oportunidade de dar uma demonstração há bem poucos dias: é a necessidade de construção de uma sociedade democrática. Estamos aqui em função da livre escolha do cidadão e da cidadã brasileira dos vários Estados e, para construirmos esse processo democrático, é necessário respeitarmos a cultura e a relação desses povos.

No que diz respeito à nomeação dos gestores públicos, essa é uma decisão política. O importante é que o gestor obedeça ao programa que foi eleito. Se o programa do Presidente Lula estabelece respeito às diferenças e uma gestão descentralizada, aquele que conduzir os destinos da Funai - tanto faz um índio ou um não índio - terá de atender ao programa da descentralização e da garantia dos direitos dos povos indígenas. E esses direitos são iguais aos nossos, não pode haver diferença nesse aspecto. Da mesma forma que queremos ver respeitados os nossos direitos individuais, o nosso direito à participação nas políticas públicas, os direitos dos povos indígenas devem igualmente ser respeitados, pois eles são tão brasileiros quanto nós.

Aliás, ao analisar a minha origem e da minha família, vejo que não é possível um brasileiro como eu não ter tido uma forte contribuição de ancestrais indígenas. Então, olho bem no espelho para ter a certeza de que estou tomando uma decisão política justa e democrática em relação à formação da sociedade brasileira.

Esta Hora do Expediente dedicada a homenagear os povos indígenas tem como objetivos a reflexão e o debate, até porque, na construção democrática, o importante é o contraditório, é colocarmos as nossas idéias para que possamos ouvir aqueles que nos contradizem a fim de chegarmos a denominadores comuns. A sociedade brasileira exige de todos nós um tratamento respeitoso para com os povos indígenas, até porque eles estão na origem da nossa sociedade, especialmente para nós, amazônidas. Nos últimos quinze ou vinte anos, tivemos a oportunidade de conviver de forma mais intensa com as culturas indígenas. Agora, essa cultura precisa penetrar profundamente no conjunto da sociedade, por meio das escolas, da educação, dos conteúdos escolares, para que possamos recontar a história do nosso País.

Espero que o Ministro Cristovam Buarque, um homem com uma visão antropológica e sociológica da nossa sociedade, possa introduzir nos conteúdos escolares, de forma transversal, a história da formação da sociedade brasileira. Para nós, isso é fundamental e decisivo.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ainda temos um longo caminho a trilhar para reconhecer direitos e, sobretudo, para pagar essa imensa dívida gerada a partir do genocídio praticado contra os povos indígenas. Assim, caberá a esta Casa apoiar as políticas públicas voltadas para o atendimento das necessidades e, sobretudo, para a preservação da cultura dos povos indígenas do Brasil.

Muito obrigado.

(Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/04/2003 - Página 8219