Discurso durante a 43ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Impotência do aparelho de segurança pública na repressão ao narcotráfico. Defesa da discussão da proposta de descriminalização do uso de drogas.

Autor
Jefferson Peres (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DROGA.:
  • Impotência do aparelho de segurança pública na repressão ao narcotráfico. Defesa da discussão da proposta de descriminalização do uso de drogas.
Publicação
Publicação no DSF de 24/04/2003 - Página 8521
Assunto
Outros > DROGA.
Indexação
  • REFERENCIA, INFORMAÇÕES, SECRETARIA DE SEGURANÇA PUBLICA, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), REGISTRO, INCOMPETENCIA, POLICIA, COMBATE, CRIME ORGANIZADO, CRITICA, AUMENTO, DESTINAÇÃO, FUNDOS PUBLICOS, SEGURANÇA PUBLICA, MOTIVO, INSUFICIENCIA, PROVIDENCIA, SOLUÇÃO, PROBLEMA, DEFESA, TRANSFORMAÇÃO, POLITICA, NECESSIDADE, DEBATE, DISCRIMINAÇÃO, DROGA.
  • EXPOSIÇÃO, PESQUISA, AUTORIA, ORADOR, ANALISE, POSSIBILIDADE, DISCRIMINAÇÃO, DROGA, CONTENÇÃO, VIOLENCIA, ATUAÇÃO, CRIME ORGANIZADO, BENEFICIO, ECONOMIA, SOCIEDADE, REGISTRO, INEFICACIA, POLITICA, AUSENCIA, SIMULTANEIDADE, ATENÇÃO, PODER PUBLICO, USUARIO.

O SR. JEFFERSON PÉRES (PDT - AM) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, as autoridades policiais fluminenses acabam de emitir mais um testemunho dramático da impotência do aparelho de Segurança Pública para reprimir o narcotráfico.

Levantamento divulgado na última semana pela Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro revela que 938 milhões de reais por ano (ou aproximadamente 78 milhões por mês), quantia equivalente a 70% do orçamento do órgão para 2003, são gastos na guerra ao tráfico. O custo inclui a manutenção de 10 mil traficantes nas prisões do estado. A repressão ao narcotráfico mobiliza 60% do efetivo policial.

Tudo isso para quê? Para apreender 800 quilos de cocaína no ano passado, quantidade vendida em único mês nos 56 principais pontos de venda mapeados pela polícia apenas na cidade do Rio de Janeiro!

Esses fracos resultados nos obrigam a refletir no momento em que o governo federal, mais uma vez, apresenta um conjunto de propostas destinadas a integrar esforços da União, dos estados e dos municípios na luta contra o crime organizado, incluindo compatibilização operacional entre as polícias; uma proposta de emenda constitucional para destinar percentual das receitas tributárias para a segurança, a exemplo do modelo vigente na educação e na saúde; a construção de presídios federais de segurança máxima; e o repasse mensal de verbas federais no valor de 5 milhões de reais para o custeio de ações preventivas.

A isso somam-se os enormes prejuízos que a escalada da insegurança impõe à economia. A Fecomércio fluminense calcula em 50 milhões de reais os prejuízos com lojas fechadas por decreto dos barões do tráfico carioca na fatídica "segunda-sem-lei", de 24 de fevereiro último. As empresas de ônibus, no mesmo episódio, registraram perdas de ordem de 10 milhões com 80 veículos destruídos.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, chegou a hora da verdade para todos nós que integramos o Poder Público. Não é possível continuar com a política de "mais do mesmo". É preciso ponderar com seriedade a alternativa de descriminação do uso das drogas, diante da falência dos enfoques repressivos adotados aqui e lá fora.

Aqui estão alguns fatos e argumentos que levantei à luz de uma cuidadosa reflexão dos dados da experiência e também graças à leitura de uma obra recente dos professores da Universidade de Maryland Peter Reuter e Robert MacCoun, intitulada Heresias na Guerra às Drogas (Aprendendo com outros Vícios, Tempos e Lugares) e publicada em inglês pela editora da Universidade de Cambridge.

1 - É bem provável que a descriminação das drogas provoque, de imediato, um drástico aumento do número de dependentes. Mais baratas e acessíveis, elas atrairão muito mais gente disposta a experimentá-las.

2 - Na maioria dos casos, a dependência não ultrapassa um desejo psicológico, afetando um em cinco usuários. Drogas como a heroína, porém, provocam dependência física e afetam um em três usuários.

3 - A descriminação pode, no entanto, ser defendida em bases morais: se um indivíduo embarca em qualquer hábito ou vício, o Estado não tem o direito de interferir na sua vida, exceto quando isso prejudica o restante da sociedade. Ao redor do mundo democrático, autoridades toleram uma série de atividades perigosas, tais como fumar, praticar alpinismo e andar de motocicleta no centro da cidade. Para aqueles grupos que necessitam de proteção especial (crianças e mesmo os viciados que perderam o controle sobre as próprias escolhas), o remédio adequado é uma política pública de saúde e educação, que, aliás, deveria abranger outras substâncias, como a nicotina (cuja capacidade de provocar dependência é superior à da heroína) e o álcool.

4 - Há também um forte argumento prático. Os custos da repressão são altos e seus benefícios muito baixos. Hoje, o tráfico internacional financia quadrilhas perigosas e fortemente armadas na Colômbia, no Brasil, no México; a destruição de lavouras ilícitas envenena camponeses e recursos naturais; a droga sustenta ditaduras cruéis em Myanmar (antiga Birmânia) e outros países subdesenvolvidos. Aqui e lá fora, os sistemas legais destinados ao combate do narcotráfico lotam as penitenciárias, em grande medida com prisioneiros oriundos de estratos sociais e raciais desprivilegiados. Nos Estados Unidos, um em cada quatro detentos está preso por drogas, ainda que boa parte dos casos não tenha envolvido violência.

5 - Enquanto permanecer na ilegalidade, o mercado de drogas não poderá ser regulado para proteger, por exemplo, as crianças. Não é possível ao governo aconselhar aos asmáticos que evitem o ecstasy, nem exigir padrões mínimos de qualidade na produção/comercialização da cocaína, ao contrário do que ocorre com cigarros e bebidas alcoólicas. Os riscos decorrentes da repressão policial estimulam os narcotraficantes a vender seus produtos em forma concentrada, tal como, na década de 20, sob a Lei Seca, os americanos passaram da cerveja às bebidas destiladas.

6 - Atualmente, a ênfase repressiva dos marcos legais, a começar pela convenção da ONU que trata do assunto, impede qualquer avanço de uma discussão racional sobre a descriminação, além de dificultar a coleta/análise científica de dados para pesquisas acadêmicas ou governamentais realmente imparciais sobre o provável impacto de uma redução de preços sobre a demanda por drogas ou os efeitos psicofísicos da maioria das drogas.

7 - A única esperança realista repousa em uma nova política de regulação do uso e repressão/prevenção do abuso, exemplo do álcool e do tabaco: quem pode/não pode comprar drogas, a partir de que idade, onde? Como impedir que drogados prejudiquem a coletividade guiando automóveis, por exemplo? Quais os padrões sanitários necessários a minimizar o risco de Aids para quem toma drogas injetáveis?

8 - No atacado, o comércio ilegal de drogas movimenta anualmente 20 bilhões de dólares, tanto quanto as vendas da Coca-Cola. No varejo, a cifra atinge cerca de 150 bilhões, metade do faturamento da indústria farmacêutica e menos que os cigarros (204 bilhões) ou as bebidas alcoólicas (250 bilhões). Só nos Estados Unidos, o segmento de varejo deve faturar 60 bilhões de dólares.

9 - Lições da Lei Seca (EUA, 1920/33): a proibição produziu inflação dos preços de bebidas alcoólicas, disseminação de distribuidores clandestinos, aumento da criminalidade, difusão de uma cultura de idolatria das armas de fogo, corrupção de 25% do aparelho repressivo federal. Hoje, a guerra contra as drogas fica com 35 bilhões a 40 bilhões de dólares do contribuinte americano, joga na prisão um contingente inédito de jovens negros e hispânicos e envenena o relacionamento dos EUA com vários países.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores: É INÚTIL COMBATER A OFERTA AO MESMO TEMPO QUE SE DESCONSIDERA A DEMANDA!!!

10 - Algumas mudanças recentes: referendo na Califórnia em 2000 determinou tratamento médico, e não a prisão, para usuários condenados uma ou duas vezes. Na Europa e em vários estados dos EUA, as penas para usuários de maconha vêm sendo reduzidas, e a lei já permite a posse de pequenas quantidades para uso médico. O Instituto de Medicina do Reino Unido sugere que a erva pode ser útil no tratamento de enjôo, perda de apetite, dores e ansiedade.

11 - O declínio dramático do cultivo de coca na Bolívia e no Peru foi simultâneo à duplicação da área cultivada na Colômbia, durante os anos 90.

12 - Não dá para competir com as margens de lucro oferecidas por esse negócio ilícito. Nos Estados Unidos, um quilo de heroína (40% de pureza) é vendido, em pacotes com menos de 100 miligramas, a 290 mil dólares, o preço de um Rolls-Royce. Um piloto de avião que cobre meio milhão de dólares para transportar um quarto de tonelada de cocaína gera custos de apenas 2% sobre o preço de revenda.

13 - Suíça e Holanda são dois países que aprenderam a encarar a droga como problema de saúde pública, não como caso de polícia. Em Berna, clínicas, como a KODA, mantidas pelo governo ou por alguma ONG, ministram heroína sob receita médica ou metadona (substituto medicinal da heroína) e fornecem seringas e agulhas a pacientes regularmente inscritos. O programa surgiu para superar as conseqüências caóticas de uma experiência dos anos 80, quando as autoridades suíças permitiram o consumo de drogas em determinadas áreas de parques públicos. O governo holandês optou por reprimir apenas as drogas pesadas e regulamentar o uso de drogas leves. Os famosos cafés de Amisterdã só podem vender cinco gramas de maconha ou haxixe para cada usuário maior de 18 anos e estão proibidos de provocar distúrbios ou comercializar outras substâncias (sob ameaça de fechamento). Tampouco podem estocar mais de meio quilo de erva. Apesar de tolerado, o comércio atacadista da erva ainda não foi legalizado por medo de hordas invasoras de turistas franceses, alemães e belgas. Os suíços podem contornar essa dificuldade adotando uma lei que restringe a comercialização de maconha a cidadãos do país.

14 - No mundo inteiro, a maioria dos políticos teme propor a liberação das leis contra as drogas pelo risco de serem caricaturados como apologistas do vício. No passado, os defensores de novas abordagens para o divórcio e o homossexualismo sofreram o mesmo tipo de incompreensão. Um dos poucos políticos americanos a defender abertamente a liberalização, o governador republicano do Novo México, Gary Johnson, proclama que a política repressiva não preenche nenhum dos três objetivos que deveriam ser perseguidos pelas autoridades: "redução de mortes, de doenças e de crimes".

15 - Projeções econômicas de uma descriminação. O especialista Mark Kleinmam, da Universidade da Califórnia (Los Angeles), calcula que a venda legalizada de cocaína reduziria seu preço a 5% dos níveis hoje praticados nas ruas. Já a maconha seria vendida a um preço equivalente ao do chá.

16 - Especialistas aconselham uma abordagem gradualista e cautelosa no desmantelamento do aparato repressivo. Começar, por exemplo, com maconha e anfetaminas. Proibição de publicidade/propaganda. No caso das drogas pesadas, a solução talvez seja vendê-la em farmácias ou firmas de mala-direta devidamente fiscalizadas.

17 - O fim da repressão à posse dessas substâncias facilitaria a regulamentação de sua qualidade, o tratamento médico de efeitos do abuso e persecução legal apenas daqueles usuários que cometessem crimes e distúrbios.

Enfim, são idéias e propostas modestas que trago à consideração dos nobres pares e, também em primeira mão, àquela parcela vigilante e atenta da opinião pública ligada em tempo real no sistema de comunicação do Senado.

Peço a todos que critiquem sincera e até impiedosamente minhas posições. Mas, pelo bem da sociedade brasileira, vamos parar de tentar cobrir o sol com a peneira!

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/04/2003 - Página 8521