Discurso durante a 57ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Relato da presença de S.Exa. no quarto Fórum Mundial de Parlamentares para a Habitação, realizado em Berlim, Alemanha.

Autor
Antonio Carlos Valadares (PSB - Partido Socialista Brasileiro/SE)
Nome completo: Antonio Carlos Valadares
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA HABITACIONAL.:
  • Relato da presença de S.Exa. no quarto Fórum Mundial de Parlamentares para a Habitação, realizado em Berlim, Alemanha.
Publicação
Publicação no DSF de 17/05/2003 - Página 11734
Assunto
Outros > POLITICA HABITACIONAL.
Indexação
  • ELOGIO, DISCURSO, JOÃO CAPIBERIBE, SENADOR, ESCLARECIMENTOS, PROBLEMA, ORÇAMENTO, NECESSIDADE, RETORNO, CRESCIMENTO ECONOMICO, REFORÇO, EMPRESA, CONTRIBUIÇÃO, CRIAÇÃO, EMPREGO, MELHORIA, SITUAÇÃO, POPULAÇÃO.
  • COMENTARIO, PRESENÇA, ORADOR, CONFERENCIA INTERNACIONAL, REALIZAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, ALEMANHA, PARTICIPAÇÃO, CONGRESSISTA, MUNDO, DEBATE, PROBLEMA, HABITAÇÃO POPULAR.
  • LEITURA, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, DOCUMENTO, ELABORAÇÃO, CONFERENCIA INTERNACIONAL, REFERENCIA, HABITAÇÃO POPULAR, REGISTRO, COMPROMISSO, PROPOSTA, CONGRESSISTA, FACILITAÇÃO, AQUISIÇÃO, HABITAÇÃO.

O SR. ANTONIO CARLOS VALADARES (Bloco/PSB - SE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, antes de entrar no assunto propriamente dito do meu pronunciamento, eu queria felicitar o nobre Senador pelo Amapá, João Capiberibe, pelo pronunciamento elucidativo e profundo que fez sobre a situação do nosso País, notadamente no que se refere ao Orçamento, que sempre foi uma peça de ficção, um instrumento que, em vez de valorizar a ação do Legislativo, dos Deputados e dos Senadores, é anualmente contingenciado, em 50%, pelo menos, de tudo aquilo que foi previsto pelo Legislativo.

Quero dizer a V. Exª, Senador Capiberibe, que os dados apresentados em seu discurso evidenciam a necessidade de o nosso País conhecer a herança maldita que foi entregue ao Presidente Lula, saber as providências duras, graves, que serão tomadas para reativar o crescimento da Nação, para colocar o nosso Brasil nos eixos, para reativar o emprego, e que precisam ter o apoio de todos nós.

Evidentemente, as saídas existirão, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, para coibir toda e qualquer injustiça contra aqueles que ganham menos. Tenho certeza absoluta de que deste Legislativo sairá uma peça justa, que dará ao Presidente da República o instrumento indispensável para alcançar a plenitude do desenvolvimento nacional, para banir do nosso País, de uma vez por todas, a violência, que é avassaladora, que está atingindo todos os recantos da Nação; e também para implementar um projeto de desenvolvimento nacional, fortalecendo a empresa e contribuindo para a abertura de empregos para milhares e milhares de jovens que batem às portas do nosso mercado de trabalho e não encontram oportunidade de uma vida digna e decente para criar as suas famílias.

Sr. Presidente, aproveito o ensejo para fazer um breve relato da minha presença no IV Fórum Mundial de Parlamentares para o Habitat, que foi realizado em Berlim, entre os dias 12 e 14 - portanto, entre segunda e quarta-feira. O evento foi liderado pelo Senador Ernesto Gil Elorduy, Senador brilhante do México, que conseguiu organizar um conclave que teve a participação de mais de 200 pessoas do mundo inteiro. Mais de 40 parlamentares estavam ali, discutindo os problemas da habitação no mundo, as cidades e a sua sustentabilidade, por intermédio de programas que devem ser desenvolvidos, notadamente nos países subdesenvolvidos, com a participação dos legisladores.

Ao final do encontro, Sr. Presidente, foi aprovada, pelos presentes, a Declaração dos Parlamentares Mundiais, que estabelece princípios e compromissos para a sustentabilidade das cidades em todo o mundo.

Não lerei todo o documento, mas permito-me requerer a V. Exª a inscrição da totalidade do seu texto nos Anais desta Casa, para que fique registrado que os Deputados e Senadores do mundo inteiro estão preocupados com a situação da moradia. No Brasil, são mais de sete milhões de brasileiros que não têm onde morar. É um problema grave, cujo verdadeiro caminho haverá de ser encontrado.

Para minha honra, representando o Brasil nesse encontro, fui escolhido para presidir o Conselho ou o Comitê dos Parlamentares da América e do Caribe, sendo, então, designado Vice-Presidente do Grupo de Parlamentares do Mundo.

Em outra oportunidade, daqui a dois anos - teremos outros encontros -, espero que compareçam mais parlamentares, não só do Senado como da Câmara dos Deputados. Só de Portugal, compareceram três deputados, bem como deputados de Moçambique, de Angola, enfim, o Continente africano esteve em peso nesse encontro, assim como parlamentares da Rússia e da China. Países importantes se fizeram presentes nesse evento, que, certamente, haverá de frutificar, em benefício do fortalecimento da instituição parlamentar.

Sr. Presidente, apresentei, naquele encontro, um discurso, lido em espanhol, cuja transcrição integral peço a V. Exª que seja registrada nos Anais da Casa.

Neste instante, resumirei alguns itens que considero importante serem mencionados nesta sessão.

Falar em Cidades Sustentáveis traz a nossa mente, ao menos num primeiro momento, a noção de habitação. E o tema habitação é hoje, em todos os países e também no Brasil, algo extremamente delicado. Um lugar para morar - uma habitação, no sentido mais amplo da palavra - tem sido uma das principais reivindicações das populações carentes.

Habitação é, afinal, o fulcro onde se apóiam todas as demais atividades da população. Educação, saúde, famílias sociais e economicamente integradas, amor, sexo e todas as demais necessidades para fruição de uma vida saudável dependem da possibilidade de morar decentemente. E a população pobre sabe disso mais do que os melhores textos de sociologia, antropologia, psicologia social e demais disciplinas afins. Como podem os pais, mais freqüentemente uma mãe sozinha, favelada ou encortiçada, matricular seus filhos na escola, seguir-lhes as lições ou organizar-se para vaciná-los na data certa, quando vivem todos amontoados num barraco, sem lenço e sem documento? Como pode a criança sem casa apropriada fazer as lições que lhe são solicitadas ou motivar-se para ler? Como pode a adolescente favelada resistir aos avanços do macho que a induz às drogas para submetê-la sexual e economicamente?

Ampliar o debate público sobre tema tão complexo e contraditório é uma forma de criar condições para a reflexão sobre mudanças que se fazem necessárias em relação ao estilo de vida, redução do desperdício, conscientização sobre a escassez de recursos naturais, fortalecimento de uma visão co-responsável, formulação de políticas públicas em torno da valorização da participação dos cidadãos e reconhecimento das demandas e ações de resistência em face da degradação socioambiental.

(...)

A noção de Cidades Sustentáveis nasce, portanto, como forma de conjugação da questão econômica, social, política e ambiental.

(...)

Diante desse drama habitacional, a Agenda 21 recomenda que as cidades fortaleçam os órgãos locais de governo para lidar eficazmente com os desafios do desenvolvimento e do meio ambiente, associados a práticas saudáveis de planejamento urbano. Nesse sentido, torna-se cada vez mais premente que os governos locais, que, no Brasil, são os Municípios, implementem políticas ambientais em uma perspectiva intersetorial, criando condições para uma gestão ambiental urbana efetivamente participativa e democrática.

Ocorre que, infelizmente, o modelo de cidade que está sendo propagado segue, cegamente, a receita do urbanismo da pós-modernidade, que alguns chamam de Planejamento Estratégico. Inseriu-se, no circuito das “cidades-globais”, esse arquipélago da competitividade urbana internacional, no qual a cidade é uma “máquina de produzir renda”, uma mercadoria em potencial que conseguirá atrair tanto mais investimentos quanto souber aproveitar as “possibilidades” econômicas do espaço urbano, por meio da coalizão entre as elites fundiárias, o Poder Público e os empreendedores imobiliários (Arantes et Vainer, 2000).

Na verdade, no âmbito das grandes metrópoles, isso se traduz por um crescimento da população excluída, vivendo em condições de absoluta pobreza. Isto é sintomático e familiar em qualquer país subdesenvolvido: a aguda contradição entre a globalização “modernizadora” empreendida pelas elites dominantes, ideologicamente apresentada como um passaporte de ingresso para o Primeiro Mundo, e as bases sociais miseráveis, oriundas do passado colonial, sobre as quais essa modernização se assenta de maneira ainda mais acentuada nas grandes metrópoles urbanizadas do Terceiro Mundo.

Sr. Presidente, alguns dados que foram levados a esse encontro demonstram, insofismavelmente, que esse modelo de fortalecimento das cidades, transformando-as em verdadeiras megalópoles, introduziu a pobreza, a miséria e a violência em muitos países da América Latina, inclusive no Brasil.

Mais adiante, o meu discurso continua:

Dados da Cepal mostram que, na América Latina, em virtude da sua taxa de urbanização, predomina a pobreza econômica (devido aos baixos salários) sobre aquela por falta de infra-estrutura básica adequada. Se, em 1980, as carências físicas (necessidades básicas não satisfeitas) superavam, em porcentagem, a incidência da pobreza (54% e 35%, respectivamente), já em 1997 essa relação já havia invertido, com o índice de pobreza somando 36%, contra 32% da população sem saneamento básico (Arraigada 2000).

Em contrapartida, Maricato mostra que a urbanização desigual provocou também uma piora nos índices socioeconômicos (crescimento, renda, desemprego e violência) e urbanísticos (crescimento urbano e aumento de favelas). O que se verifica é que a urbanização é, de fato, concentradora da pobreza, pois 60% dos pobres da América Latina moram em zonas urbanas, “situação que converte o continente na região em desenvolvimento que melhor exemplifica o processo mundial de ‘urbanização da pobreza’”. Na virada do século, 125,8 milhões de moradores de áreas urbanas do continente são pobres. A ONU define como pobre a pessoa que ganha menos de US$400 por ano - o que dizer daqueles que dispõem de US$1,5 por dia e que estatisticamente não são mais considerados pobres. (...)

Nas grandes metrópoles brasileiras, estima-se que cerca de 50% da população, em média, resida na informalidade, o que só em São Paulo representa cerca de seis milhões de pessoas. Os moradores de favelas chegam a cerca de 20% da população de São Paulo, assim como em Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, chegando a 46% em Recife.

Em Córdoba, na Argentina, cerca de 20% da população mora em favelas (villas), e, na região metropolitana de Lima (Peru), 50% dos habitantes moram em condições subnormais, sendo 30% em favelas e 20% em cortiços.

Irei diretamente ao final, Sr. Presidente, em virtude de meu tempo já estar se esgotando, mas tenho certeza de que V. Exª irá providenciar a inserção de todo este discurso nos Anais da Casa.

Citei um dado, Sr. Presidente, que mostra bem a situação em que vivem as cidades em crescimento populacional vertiginoso, uma lógica perversa das verdadeiras ilhas de modernidade instaladas em todo o mundo:

Assim, por exemplo, o Governo de São Paulo, em 1998, gastou, em onze obras viárias, a incrível soma de US$7 bilhões, aproximadamente, comprometendo a cidade com dívidas que iriam tornar inviáveis até mesmo os serviços básicos da gestão seguinte. Dessas onze megaobras, apenas duas não estavam no interior ou próximas da região que concentra os bairros de mais alta renda de São Paulo. Aparentemente, tratou-se da estratégia de construir uma “ilha de Primeiro Mundo”, com condições para abrigar a São Paulo cidade mundial. No mesmo período, o Governo municipal, no entanto, descumpriu a lei que obrigava o Município a investir 30% do Orçamento na Educação.

No contexto urbano dos países em desenvolvimento, inclusive o brasileiro, os problemas de moradia e os ambientais têm-se avolumado a passos agigantados, e sua lenta resolução tem-se tornado de conhecimento público pela virulência dos impactos: aumento desmesurado do déficit habitacional, da violência, da geração de resíduos sólidos e conseqüente dificuldade em administrar áreas para o seu despejo; enchentes cada vez mais freqüentes; prejuízos da poluição na saúde da população, entre outros.

A necessidade de implementar políticas públicas orientadas para tornar as cidades social e ambientalmente sustentáveis representa a possibilidade de garantir mudanças socioinstitucionais que não comprometam os sistemas ecológicos e sociais nos quais se sustentam as comunidades urbanas.

Sr. Presidente, espero ter cumprido a missão honrosa que me foi conferida pelo Senado Federal em Berlim. Foi uma viagem longa e cansativa, mas que valeu a pena. Levamos 14 horas para chegar a Berlim e 14 horas para voltar ao Brasil, não levando em conta o tempo que gastamos no aeroporto, aguardando o avião. Foram, portanto, mais de 30 horas de viagem.

Durante três dias, participamos de intensos debates no IV Encontro de Parlamentares do Mundo, e procurei desenvolver com eficiência, dedicação e seriedade a missão que me foi confiada. Logo após o término do encontro, voltei ao Brasil para continuar a minha missão no Senado Federal, junto aos meus Colegas, e em Sergipe, para onde irei hoje à noite, junto ao meu povo.

Muito obrigado, Sr. Presidente.

 

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SEGUE, NA ÍNTEGRA, DISCURSO DO SR. SENADOR ANTONIO CARLOS VALADARES.

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Excelentíssimo senhor presidente do Quarto Fórum Mundial de Parlamentares para Habitação - Foro Mundial de Parlamentarios para el Hábitat, senador Ernesto Gil Elorduy,

Excelentíssimo senhor Presidente desta Mesa,

Excelentíssimo senhores membros desta Mesa,

Excelentíssimos Srs. e Srªs Parlamentares do Mundo inteiro,

Excelentíssimos senhores e senhoras participantes.

Inicialmente quero agradecer e dizer o meu “muito obrigado” pelo convite para participar deste grandioso evento, que conta com a presença de várias personalidades e de estudiosos sobre o tema habitação. Na qualidade de Vice-Presidente do “El Grupo Mundial de Parlamentarios para el Hábitat” e representando o Senado brasileiro, quero também dar minhas boas vindas a todos.

Com certeza este evento, assim como os anteriores, irá abalizar as futuras decisões políticas e técnicas para se efetivar a melhoria das cidades.

E é sobre o modelo de Cidades Sustentáveis que vem sendo defendida e até implementada em diversos países que irei me manifestar nesta oportunidade.

CIDADES SUSTENTÁVEIS - CRÍTICA AO MODELO DE URBANISMO VIGENTE - A PROPOSTA DA AGENDA 21

Falar em Cidades Sustentáveis colaciona em nossa mente, ao menos no primeiro momento, a noção de habitação. E o tema habitação é hoje, em todos os Países e também no Brasil, algo extremamente delicado. Um lugar para morar - uma habitação, no sentido mais amplo da palavra - tem sido uma das principais reivindicações das populações carentes.

Habitação é, afinal, “o fulcro onde se apóiam todas as demais atividades da população. Educação, saúde, famílias sociais e economicamente integradas, amor sexo, e todas as demais necessidades para a fruição de uma vida saudável dependem da possibilidade de morar decentemente. E a população pobre sabe disso mais do que os melhores textos de sociologia, antropologia, psicologia social e demais disciplinas afins. Como podem os pais, mais freqüentemente uma mãe sozinha, favelada ou encortiçada, matricular seus filhos na escola, seguir-lhes as lições ou organizar-se para vaciná-los na data certa quando vivem todos amontoados num barraco, sem lenço e sem documento? Como pode a criança sem casa apropriada fazer as lições que lhes são solicitadas ou motivar-se para ler? Como pode a adolescente encortiçada resistir aos avanços do macho que a induz às drogas para submetê-la sexual e economicamente?1

Ampliar o debate público sobre o tema tão complexo e contraditório é uma forma de criar condições para a reflexão sobre mudanças que se fazem necessárias em relação a estilos de vida, redução do desperdício, conscientização sobre a escassez de recursos naturais, fortalecimento de uma visão co-responsável (na qual prevaleça a noção de interesse coletivo), formulação de políticas públicas em torno da valorização da participação dos cidadãos e reconhecimento das demandas e ações de resistência em face da degradação sócio-ambiental.

Alcançar a meta de construir ou conduzir as aglomerações urbanas para a formação de metrópoles e cidades sustentáveis significa o comprometimento com processos de urbanização e práticas urbanísticas que incorporem a dimensão ambiental na produção e na gestão do espaço. É preciso incorporar a idéia de limite dos recursos naturais básicos, como a água, o solo e o ar, buscar alternativas para reduzir a sua degradação e desperdício e, finalmente, construir, viabilizar e respeitar os canais institucionais para o engajamento da população em práticas de co-responsabilidade.

A noção de "Cidades Sustentáveis" nasce, portanto, como forma da conjugação da questão econômica, social, política e ambiental.

A concentração populacional nas áreas urbanas tem exercido pressão sobre as infra-estruturas urbanas básicas, marcadas pela insuficiência do atendimento, pela inexistência do serviço, pela escassez e, muitas vezes, pela adoção de soluções ambientalmente condenáveis.

A pobreza está no centro de grande parte dos problemas ambientais urbanos e sua manifestação nos assentamentos humanos revela o agravamento das condições de vida nas cidades, principalmente nos municípios metropolitanos. A gestão ambiental urbana, que compreende a formulação e a aplicação de instrumentos normativos, a realização de projetos e obras, o acesso a recursos - públicos e privados - e a interface com os diferentes interesses que convivem na cidade, é fundamental para a construção de cidades sustentáveis.

Diante desse drama habitacional, a Agenda 21 recomenda que as cidades fortaleçam os órgãos locais de governo para lidar eficazmente com os desafios do desenvolvimento e do meio ambiente, associados a práticas saudáveis de planejamento urbano. Nesse sentido, torna-se cada vez mais premente que os governos locais, que no Brasil são os municípios, implementem políticas ambientais em uma perspectiva intersetorial, criando condições para uma gestão ambiental urbana efetivamente participativa e democrática.

Ocorre que infelizmente o modelo de Cidade que está sendo propagado segue, cegamente, a receita do urbanismo da pós-modernidade, que alguns chamam de Planejamento Estratégico. Inseriu-se, no circuito das "cidades-globais", esse arquipélago de competitividade urbana internacional, no qual a cidade é uma "máquina de produzir renda", uma mercadoria em potencial que conseguirá atrair tanto mais investimentos quanto souber aproveitar as "possibilidades" econômicas do espaço urbano, através da coalizão entre as elites fundiárias, o poder público e os empreendedores imobiliários (Arantes et Vainer, 2000)2.

Na verdade, no âmbito das grandes metrópoles, isso se traduz por um crescimento da população excluída vivendo em condições de absoluta pobreza. Isso é sintomático e familiar em qualquer país subdesenvolvido: a aguda contradição entre a globalização "modernizadora" empreendida pelas elites dominantes, ideologicamente apresentada como um passaporte de ingresso para o Primeiro Mundo, e as bases sociais miseráveis, oriundas do passado colonial, sobre as quais essa modernização se assenta de maneira ainda mais acentuada nas grandes metrópoles urbanizadas do Terceiro Mundo.

Tal contradição não é nova e foi há muito evidenciada pelos grandes intérpretes da formação do Brasil, como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado. Embora suas análises se ancorem intimamente na realidade das sociedades latino-americanas, elas descrevem uma lógica comum, em muitos aspectos, a todos os países que vivem sob a égide do capitalismo dependente. Estes autores ressaltam a oposição entre os interesses da expansão da economia-mundo capitalista e formação de Estados Nacionais capazes de controlar o próprio destino3.

No Brasil, a aliança estratégica da burguesia com o capital internacional e com as potências hegemônicas permitiu que a industrialização por substituição de importações fosse levada às últimas conseqüências, aumentando o grau de autonomia relativa do país dentro do sistema capitalista mundial4. Em outros países periféricos, a ausência de uma indústria nacional minimamente significativa relegou às elites um papel de simples coadjuvante interno dos agentes do comércio internacional, o que foi denominado, pelo sociólogo egípcio Samir Amin, de "compradorização" das elites subdesenvolvidas5.

O impacto extremamente destrutivo da globalização sobre o parque industrial brasileiro, ao ameaçar a continuidade do processo de industrialização, parece relegar nossa burguesia ao mesmo papel de mera "compradora" dentro do sistema capitalista mundial. Entretanto, o que se quer destacar aqui é o processo pelo qual a burguesia "moderna" garante seus interesses de hegemonia interna, sobrepondo-se às elites mais conservadoras ("atrasadas") e promovendo o avanço capitalista internacional por sobre uma estrutura social arcaica baseada em relações de desigualdade e dominação herdadas do Brasil colonial. Essa é a estrutura do que muitos autores brasileiros, e Florestan Fernandes em especial, chamaram de desenvolvimento desigual - em relação ao desenvolvimento do capitalismo hegemônico dos países industrializados, e combinado -, pois dispõe novas estruturas econômicas e sociais trazidas do centro sobre estruturas internas arcaicas, como nos diz Sampaio Jr.6.

O entendimento dos autores citados anteriormente é de que a contradição entre desenvolvimento desigual do capitalismo em escala mundial e o processo de formação do Brasil não se esgotou. Ao contrário, a avaliação é que esta contradição transformou-se hoje em aberto antagonismo, ou seja, uma relação pela qual a possibilidade de controle da sociedade sobre seu próprio destino não é mais compatível com a manutenção de suas assimetrias sociais e sua posição subalterna e dependente em relação à economia-mundo capitalista.

As grandes metrópoles subdesenvolvidas são hoje a expressão do antagonismo e da desigualdade anteriormente descritos. Em primeiro lugar, porque o fenômeno de urbanização acelerada observado no mundo nos últimos 50 anos ocorreu, em grande parte, nos países da periferia do sistema. Em segundo lugar, porque, uma vez isto posto, observa-se que são justamente as cidades os instrumentos de excelência do fenômeno de expansão da economia-mundo capitalista que se convencionou a chamar de globalização. Sedes de grandes corporações transnacionais e de instituições financeiras, redes de informação, teleportos e sistemas de telefonia celular e de comunicação por cabo, bens de consumo sofisticados e atividades de serviços são elementos da "modernidade" associada à globalização. Elementos de caráter essencialmente urbano, a tal ponto que servem de parâmetro de definição das "cidades-globais"7.

O fenômeno de urbanização observado em grande parte dos países subdesenvolvidos em muito se deve à matriz de industrialização tardia da periferia. A atratividade exercida pelos pólos industriais sobre a massa de mão-de-obra expulsa do campo (em especial nos países que receberam empresas multinacionais que alavancaram a passagem de economias agroexportadoras para economias "semi-industrializadas", como o Brasil ou a Índia) provocou, a partir da década de 60, a explosão de grandes pólos urbanos no Terceiro Mundo, que não receberam a provisão de habitações, infra-estrutura e equipamentos urbanos que garantisse qualidade de vida a essa população recém-chegada.

Na maioria dos casos, o poder público pouco se empenhou para isso, devido à abundância de mão-de-obra ofertada (que reduzia seu poder de reivindicação) e à sua imiscuição com as elites dominantes, interessadas em manter baixos os níveis salariais e o custo da mão-de-obra. O resultado desse processo são as gigantescas metrópoles industriais subdesenvolvidas, concentradoras da produção industrial e da massa de mão-de-obra disponível e marcadas pela divisão social do espaço urbano.

Lembro que no Brasil, já na década de 70, Caio Prado Jr. vislumbrava o caráter excludente dessa forma de urbanização: a inexorável desarticulação da industrialização agravaria de maneira gigantesca o excedente estrutural de mão-de-obra, o qual, pela sua magnitude absoluta e pela sua elevada concentração nos centros urbanos, tenderia a tornar cada vez mais difícil e traumática a sua posterior integração no desenvolvimento capitalista, agravando ainda mais a crise social.

É importante ressaltar que as taxas de urbanização elevadíssimas da América Latina (média de 75% em 2000, segundo a CEPAL - Comissão Econômica para América Latina e o Caribe não encontram equivalência na Ásia ou na África, onde a população ainda é predominantemente rural. Entretanto, isso não desmente a observação do forte ritmo de urbanização do Terceiro Mundo, já que, não obstante suas baixas taxas de urbanização, esses continentes apresentam grande número de metrópoles que, isoladamente, ultrapassam os 5 milhões de habitantes.

Observa-se que, entre as dez áreas metropolitanas mais populosas do mundo, apenas três (Tóquio, Nova York e Osaka) são do Norte e as outras sete pertencem a países subdesenvolvidos. São elas, em ordem de tamanho decrescente: Cidade do México, São Paulo, Seul, Moscou, Bombain, Calcutá e Buenos Aires. Dessas sete, só três estão na América Latina.

Essas grandes aglomerações urbanas da periferia, justamente em virtude dessa urbanização desigual, apresentam hoje, invariavelmente, um absoluto quadro de pobreza. Ermínia Maricato8 mostra que o processo de urbanização permitiu, é verdade, melhorias significativas em alguns indicadores sociais, principalmente nos demográficos. A América Latina, e em especial o Brasil, apresentou melhorias nos índices de esperança de vida ao nascer, ou ainda na taxa de mortalidade infantil, em grande parte conseqüência do aumento da infra-estrutura urbana básica ofertada (saneamento, água tratada etc.).

Dados da CEPAL mostram que na América Latina, em virtude de sua alta taxa de urbanização, predomina a pobreza econômica (devido aos baixos salários) sobre aquela por falta de infra-estrutura básica adequada. Se em 1980 as carências físicas (necessidades básicas não-satisfeitas) superavam em porcentagem a incidência de pobreza (54% e 35%, respectivamente), já em 1997 essa relação havia se invertido, com o índice de pobreza somando 36%, contra 32% da população sem saneamento básico (ARRAIGADA 2000)9.

Em contrapartida, Maricato mostra que a urbanização desigual provocou também uma piora nos índices socioeconômicos (crescimento, renda, desemprego e violência) e urbanísticos (crescimento urbano e aumento de favelas). O que se verifica é que a urbanização é, de fato, concentradora da pobreza, pois 60% dos pobres da América Latina moram em zonas urbanas, "situação que converte o continente na região em desenvolvimento que melhor exemplifica o processo mundial de 'urbanização da pobreza'"10. Na virada do século, 125,8 milhões de moradores de áreas urbanas do continente são pobres. A ONU define como pobre a pessoa que ganha menos de 400 dólares por ano - o que dizer daqueles que dispõem de1,5 dólar/dia, e que estatisticamente não são mais considerados pobres -. Ainda segundo a CEPAL, na América Latina, cerca de 220 milhões de pessoas viviam na pobreza no ano 2000, o que representa aproximadamente 45% da população do continente. No mundo, esse número se eleva a 1,3 bilhão de pessoas, ou um quinto da população mundial11, boa parte concentrada nas grandes metrópoles da periferia.

As condições de pobreza encontradas nessas cidades podem ser verificadas pela alta porcentagem de moradores vivendo em habitações subnormais. No Brasil, entende-se por esse termo moradias em favelas, cortiços e loteamentos clandestinos. A informalidade urbana diz respeito à inadequação físico-construtiva da habitação e/ou geomorfológica/ambiental do entorno (construções precárias, terrenos em áreas de risco ou de preservação ambiental, área útil insuficiente para o número de moradores, etc.), à ausência de infra-estrutura urbana (saneamento, água tratada, luz, acessibilidade viária, etc.), ou ainda à ilegalidade da posse da terra ou do contrato de uso. Dentro dessas características, variam de idioma para idioma os termos que designam tais habitações: villas, callampas, barriadas, tomas, slums, bidonvilles etc. O que não variam são o grau de precariedade e a falta de qualidade, características da globalização da pobreza.

Nas grandes metrópoles brasileiras, estima-se que cerca de 50% da população, em média, resida na informalidade, o que só em São Paulo representa cerca de 6 milhões de pessoas. Os moradores de favelas chegam a cerca de 20% da população dessa cidade, assim como em Porto Alegre, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, chegando a 46% em Recife12.

Em Córdoba, na Argentina, cerca de 20% da população mora em favelas (villas)13 e na região metropolitana de Lima (Peru), 50% dos habitantes moram em condições subnormais, sendo 30% em favelas e 20% em cortiços14. Esse número se repete em Quito e em Caracas, no Equador, atingindo 59% na Cidade do México e em Bogotá (dados da CEPAL). Tal situação não se restringe às metrópoles latino-americanas. Uma rápida "volta ao mundo" mostra como pobreza e urbanização formam um par bastante globalizado, apresentando números incrivelmente semelhantes. Em 1996, estimava-se que 50% da população de Deli, na Índia, morava informalmente15, sendo 25% em favelas16. Em Bombaim, no mesmo país, estimava-se em 150 mil o número de moradores de rua, sendo que, em 1991, 45% da população vivia em assentamentos ilegais17. Chittagong, a segunda maior cidade de Bangladesh, tem uma população estimada entre 1,5 e 2,5 milhões de habitantes, dos quais 1 milhão são favelados18. Nas Filipinas, Manila apresentava, também em 1996, 40% de sua população residindo na informalidade, porcentagem próxima à de Karachi, no Paquistão (44%, em 1996)19. Já na Indonésia, em 1994, essa porcentagem subia para 70%, nas cidades de Surabaia e Yogyakarta20. No Cairo, outra grande metrópole subdesenvolvida, alvo da "modernização ocidental", também a metade da população vivia, em 1996, em condições informais. Evidentemente, os números da África, a extrema periferia esquecida da economia-mundo capitalista, são ainda mais assustadores: em Luanda, capital da Angola, 70% da população morava na informalidade. Em Adis Abeba, na Etiópia, eram 85%21.

Outra característica da urbanização desigual é o exagerado ritmo de crescimento das periferias pobres em relação aos centros urbanizados. Enquanto a taxa média de crescimento anual das cidades brasileiras é de 1,93%, o da periferia de São Paulo chega a 4,3% ao ano22. Em Deli, na Índia, a região urbanizada crescia 3,8% ao ano, entre 1981 e 1991, enquanto as zonas rurais adjacentes à mancha metropolitana urbanizavam-se ao ritmo de 9,6% ao ano23. Em Bogotá, na Colômbia, de 1973 a 1985, os bairros centrais da cidade apresentaram taxas negativas de crescimento e os da periferia cresceram entre 7,5% e 12,5%, no mesmo período.

Esse é, portanto, o cenário das grandes cidades subdesenvolvidas, no início do século XXI: um alto grau de pobreza, oriundo da natureza estruturalmente desequilibrada da industrialização e da urbanização periféricas. A preocupação de Caio Prado Jr. estava certa, e hoje é patente a impossibilidade de reintegrar o contingente excessivo de mão-de-obra nos grandes centros urbanos, o que agrava inexoravelmente o quadro social. É nesse contexto que a globalização tenta imprimir suas características modernizadoras, exacerbando o quadro de antagonismo explicitado anteriormente, pois, no contexto urbano, a contradição estrutural das economias de desenvolvimento desigual e combinado se traduz pela incompatibilidade entre os bairros "globalizados" da cidade formal e os assentamentos ditos "subnormais", que configuram a tipologia majoritária da cidade real, nas zonas periféricas abandonadas pelo capital e pelo poder público.

Como mostraram os números da exclusão urbana apresentados anteriormente, há hoje mais pobres do que ricos em muitas metrópoles do Terceiro Mundo. Isso provoca, obviamente, uma inversão no conceito "do que é" a verdadeira cidade, pois as elites estão na verdade cada vez mais "sitiadas" em um mar de pobreza. Nunca as classes dominantes se sentiram tão ameaçadas. Não é à toa, portanto, que a grande imprensa brasileira use repetidamente termos como "centro invadido", ou "cidade sitiada"24 para expressar o sentimento de que a verdadeira cidade, a que "vale", é apenas a cidade formal que essas elites ocupam. Ao invés de perceberem no crescimento inexorável da pobreza a preocupante e inaceitável mudança do perfil socioeconômico geral dos habitantes, as elites apenas se preocupam com uma invasão indesejada da "sua" cidade. A recusa em perceber que essa cidade já não é mais representativa da cidade real verifica-se tanto na constante busca de segurança e conforto em bairros-fortaleza de altíssimo padrão - como Alphaville, em São Paulo, Muang Thong Thani, em Bangcoc, e Nordelta, em Buenos Aires - quanto na reação de indignação em face dos níveis insustentáveis de violência urbana gerados pelo chamado "apartheid social urbano".

Talvez se possa então tomar emprestado, para aplicá-lo ao contexto urbano, o raciocínio exposto por Sampaio Jr. para a particular situação do capitalismo brasileiro no pós-guerra: enquanto as cidades periféricas mantiveram-se, nas últimas décadas, sob controle da burguesia, apesar do alto grau de desigualdade e pobreza nas suas franjas periféricas, mantiveram sob relativo controle a matriz espacial e temporal do desenvolvimento urbano. As cidades eram o locus político privilegiado para o exercício da onipotência das classes dominantes, independentemente da pobreza que se fazia crescente. A situação social das cidades, no final da década de 90, entretanto, transformou essa contradição em aberto antagonismo. A burguesia parece ter perdido definitivamente o controle sobre o crescimento urbano desigual, e cada vez mais se faz necessária uma opção mais radical entre a manutenção de um status quo urbano, em que as estruturas das relações sociais, econômicas e políticas chegaram a níveis intoleráveis, e a adoção de medidas que abalem radicalmente essas estruturas no sentido da construção de uma cidadania baseada em princípios de eqüidade social. No caso das cidades brasileiras, assim como certamente em muitas metrópoles subdesenvolvidas, pode-se dizer que se vive, hoje em dia, uma situação limítrofe entre "a cidade e a barbárie".

A cidade subdesenvolvida expressa a marginalidade social em países que combinam o atraso com o moderno. Seu problema é portanto o mesmo da sociedade subdesenvolvida: a subordinação absoluta à lógica dos negócios, por meio da histórica superexploração do trabalho e superdepredação do meio ambiente, que parecem ter chegado, na sociedade e nas cidades, a níveis intoleráveis. Entretanto, as ações de imposição do capitalismo hegemônico, pelo novo paradigma da globalização, e as novas matrizes de planejamento urbano que as acompanham, parecem apenas reforçar essa situação.

Se, por um lado, as políticas liberais nos moldes do conhecido Consenso de Washington, apresentadas ao Terceiro Mundo como uma tábua de salvação para a crise dos anos 80, promoveram certa dinamização econômica ligada ao terciário avançado e às indústrias de ponta (no centro dos novos paradigmas econômicos da globalização), por outro, pouco resolveram e até acentuaram a desigualdade social, fato hoje admitido até pelo Banco Mundial25. A CEPAL avalia que as reformas liberais tiveram "um efeito surpreendentemente pequeno" no crescimento, no emprego e na eqüidade, em nível agregado26.

Mesmo que exista hoje forte desconfiança sobre os efeitos dos ajustes estruturais de cunho liberal impetrados por vários países subdesenvolvidos, seus correspondentes no âmbito das políticas urbanas continuam sendo apresentados como mais atuais do que nunca. Esse novo instrumental técnico de gestão das cidades, um "novo planejamento" que ficou conhecido como Planejamento Estratégico (PE), adaptado às características de flexibilidade e dinamismo da economia globalizada, contrapõe-se ao planejamento funcionalista modernista e busca referências em parâmetros ligados à gestão empresarial. A principal característica do PE é a de que ele não traz uma resposta, em termos de políticas públicas, ao impasse antagônico existente nas cidades subdesenvolvidas. Pelo contrário, parece acirrar ainda mais tal anacronismo.

O Planejamento Estratégico pauta-se pela visão de que a única maneira de se pensar o futuro das cidades é inseri-las numa rede de "cidades-globais", na qual a problemática central deve ser a competitividade urbana. As agências multilaterais e seus ideólogos já desenharam a cidade ideal do limiar do século XXI: é a cidade produtiva e competitiva, globalizada, conectada a redes internacionais de cidades e de negócios. Concebida e pensada como empresa que se move num ambiente global competitivo, o governo desta cidade se espelha no “governo” da empresa: gestão empresarial, marketing agressivo, centralização das decisões, pragmatismo, flexibilidade, entre outras, seriam as virtudes das quais dependeria cada cidade para aproveitar as oportunidades e fazer valer suas vantagens competitivas no mercado de localização urbana.

A idéia, portanto, é a de que a cidade globalizada encontra mais chances de sobrevivência quanto mais souber se inserir na competição pela atração de investimentos e de sedes de grandes empresas transnacionais, quanto mais investir nos avançados sistemas de informação e comunicação, na modernização de sua infra-estrutura, no fortalecimento do "terciário avançado" e em canais de conexão com o capital financeiro internacional, supostamente capaz de dar nova vida às áreas urbanas "degradadas". O arcabouço técnico desse "novo" planejamento divide as ações de intervenção no espaço urbano em várias escalas, todas elas vinculadas às comunicações ou às atividades conectadas à economia globalizada: teleportos, centros empresariais, espaços para feiras e congressos, parques tecnológicos, aeroportos, hotéis, operações de embelezamento e modernização dos espaços públicos, etc.

A melhor ilustração dos resultados desse "novo" planejamento urbano está na descrição da "bolha especulativa" de Bangcoc, a qual ensejou em 1998 a denominada crise asiática, que afetou a economia mundial. Tratou-se de uma pujante renovação imobiliária das áreas mais nobres, resultante da articulação entre os atores locais essenciais para a dinamização econômica urbana, a saber, os empreendedores imobiliários, as elites fundiárias, o poder público e os investidores, sejam estes nacionais ou internacionais, em torno da construção de "consensos" para identificar as "possibilidades econômicas dos lugares" de forma que se tornem atraentes para os potenciais "compradores" da cidade, os investidores internacionais.

Percebe-se facilmente o forte caráter empresarial da ação do PE e a ausência de preocupações com questões sociais mais urgentes, contrapondo-se à farta presença de termos como "valorização", "negócios", "visibilidade", "inserção na dinâmica econômica" e outros que remetem à nova função concorrencial das cidades. Neste cenário, a realidade social das metrópoles subdesenvolvidas parece ter sido simplesmente esquecida. Ocorre de fato que, mais uma vez, modelos técnico-teóricos de planejamento são importados de uma realidade que não é a da periferia, porém são implantados aqui como se fossem a chave para a caminhada "rumo ao Primeiro Mundo".

O modelo do Planejamento Estratégico, não obstante, vem sendo aplicado por diversos municípios na América Latina, geralmente promovido por grandes operações de marketing, como cabe a qualquer operação de cunho concorrencial. Assim, ficaram conhecidos no Brasil os exemplos do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, ou ainda o plano de reurbanização do Eixo Tamanduatehy, promovido em Santo André-SP. No caso do Rio, mostra como se trata de uma "bem orquestrada farsa", montada para colocar em escanteio as reivindicações populares e dar espaço aos interesses dos empreendedores e a um agressivo marketing de criação de falsos consensos que a legitimassem. Tudo para validar "projetos caros aos grupos dominantes da cidade", que permitiriam tornar a cidade competitiva e vendável à dinâmica do capital internacional. Na Argentina, o Planejamento Estratégico vem sendo implementado oficialmente em várias cidades, com destaque para Córdoba e Bahia Blanca.

As políticas públicas afinadas com o novo cenário econômico excludente da globalização promoveram nos anos 90 - e o Planejamento Estratégico se insere nesse processo - a desregulamentação e flexibilização das normas urbanísticas e a fragmentação urbana, em contraposição ao centralismo funcionalista e regulador do paradigma anterior (Planejamento Modernista). Assim como as políticas de ajuste neoliberal abriram as portas para a entrada do capital globalizado interessado nas importantes parcelas de consumidores altamente capitalizados dos países periféricos (devido ao alto grau de concentração da renda), a desregulação urbana favoreceu a ação da articulação "empreendedores imobiliários/proprietários fundiários/grande capital/poder público", que viram nas parcelas abastadas das sociedades periféricas e nas empresas transnacionais atuantes nesses mercados uma grande oportunidade de negócios imobiliários.

Por isso, repetem-se pelo mundo afora os exemplos de produção de espaços de alto poder aquisitivo, verdadeiras "ilhas de Primeiro-Mundo" dentro do mar de pobreza das metrópoles subdesenvolvidas. Pode-se dizer que a produção do espaço nas cidades antagônicas da periferia da globalização segue cada vez mais um parâmetro de segregação social, em que as elites dominantes determinam sua conformação, excluindo abertamente as camadas populares. Essas "ilhas" podem ter funções ou características diferentes, podendo ser bairros residenciais, zonas de negócios voltadas ao terciário avançado, ou ainda áreas mais centrais "degradadas" e recuperadas para novos usos residencial e comercial voltados para as elites urbanas (a chamada gentrificação). Todas elas, entretanto, caracterizam-se pelo alto volume de investimentos privados e públicos, pelas modernas tecnologias empregadas, pela qualidade da infra-estrutura urbana disponibilizada e pelo alto poder aquisitivo de seus usuários. Muitas são fruto de articulações encabeçadas pela ação decisiva de arquitetos-empreendedores, interessados na criação de promissoras oportunidades para o grande capital (às vezes de maneira artificial, como em Bangcoc).

Já foram citados os exemplos dos bairros residenciais de Muang Thong Thani, em Bangcoc, Alpha Ville, em São Paulo, e Nordelat, em Buenos Aires. O modelo de gentrificação de áreas centrais, iniciado nos países industrializados nas conhecidas operações urbanas de Battery Park, em Nova York, e de London Docklands, em Londres, passou a ser aplicado na periferia como receita de sucesso para dar "nova vida" (na verdade, vida das elites) a bairros centrais abandonados por causa da nova dinâmica da economia globalizada.

Assim, ao crescimento acelerado das periferias pobres e à presença de áreas centrais abandonadas pelas elites, se contrapõem zonas de crescimento exclusivo das classes dominantes, que conformam metrópoles divididas entre a cidade formal, alvo de todos os investimentos imobiliários e da ação e investimentos do poder público, e a informal, esquecida por ambos.

O aspecto mais importante a ser destacado é que essa lógica vem pressupondo uma forte participação do poder público em sua promoção, seja por estar este representando os interesses dominantes, seja por estar certo que promove de alguma maneira a "modernização" da cidade. Comprometem-se, em áreas privilegiadas, altos valores do orçamento na produção de infra-estrutura urbana, principalmente viária, compatível com as exigências das "ilhas de modernidade", em detrimento dos investimentos maciços urgentemente necessários na cidade informal, o que ressalta o alto caráter de exclusão desse processo. Assim, por exemplo, o governo de São Paulo, em 1998, gastou, em 11 obras viárias, a incrível soma de US$ 7 bilhões, aproximadamente, comprometendo a cidade com dívidas que iriam tornar inviáveis até mesmo os serviços básicos da gestão seguinte. Dessas 11 megaobras, apenas duas não estavam no interior ou próximas da região que concentra os bairros de mais alta renda de São Paulo. Aparentemente tratou-se da estratégia de construir uma “ilha de Primeiro Mundo”, com condições para abrigar a São Paulo, cidade mundial. No mesmo período o governo municipal descumpriu a lei que obrigava o município a investir 30% do orçamento na Educação.

No contexto urbano dos Países em desenvolvimento, inclusive o brasileiro, os problemas de moradia e ambientais têm-se avolumado a passos agigantados e sua lenta resolução tem-se tornado de conhecimento público pela virulência dos impactos: aumento desmesurado do déficit habitacional, da violência, da geração de resíduos sólidos e conseqüente dificuldade em administrar áreas para o seu despejo; enchentes cada vez mais freqüentes; prejuízos da poluição na saúde da população entre outros.

A necessidade de implementar políticas públicas orientadas para tornar as cidades social e ambientalmente sustentáveis representa a possibilidade de garantir mudanças sócio-institucionais que não comprometam os sistemas ecológicos e sociais nos quais se sustentam as comunidades urbanas. Na verdade, a implementação de políticas públicas urbanas significa, em primeira análise, justiça social, possibilitando que o conceito de habitação que citei no início de minha fala seja efetivamente cumprido, tornando eficaz esse sentimento de segurança a que toda e qualquer pessoa sente quando dispõe de uma habitação.

Muito obrigado.

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR ANTONIO CARLOS VALADARES EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210 do Regimento Interno.)

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1 Cherkeziam, Henry; Bolaffi, Gabriel. Os caminhos do mal-estar social. Revista Novos Estudos, número especial, 1998, CEBRAP.


2 ARANTES, O.B.; MARICATO, E. e VAINER, C. O Pensamento único das cidades: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000 (Coleção Zero á Esquerda)


3 SAMPAIO Jr., P.A. O Impasse da formação nacional. In: FIORI, J.L. (org). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis, Vozes, 1999.


4 Ob. Cit.


5 AMIN, S. L´empire du chãos, L´harmattan (Tradução da Coleção Zero à Esquerda - obra única).


6 SAMPAIO Jr., A origem e desdobramento da crise da teoria do desenvolvimento na América Latina. São Paulo, Fundação SEADE, vol. 13, n 1-2, jan-jun, 1999.


7 STALLINGS, B. e PERES, W. Crescimiento, empleo y equidad: el impacto de las reformas economicas en America Latina. Santiago de Chile, CEPAL/Fondo de Cultura Económica, 2000.


8 MARICATO, E. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo, Hucit/Série Estudos Urbanos, 1996.


9 Dados retirados de ARRAIGADA, C. Pobreza em América Latina: neuvos escenarios y desafios de políticas para el hábitat urbano. Santiago do Chile, CEPAL/ECLAC - Division de Médio abiente y Assentamientos Humanos, Série Médio Ambiente y Desarrollo, nº 27, out. de 2000.


10 Ob. Cit.


11 IBASE e outras ONG´s. observatório da Cidadania: monitorando o desenvolvimento social. Montevideo, nº 1, Uruguai, Instituto Del tecer Mundo, 1997.


12 Dados retirados de BUENO, L.M. de M. Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização. Tese de doutorado. São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, 2000.


13 Dados de LUCIANO, F. Regularización de assentamientos irregulares em Córdoba. In Azuela, A. e FRANÇOIS, T. (orgs). El acesso de los pobres al suelo urbano. México, Centro de Estúdios Mexicanos y Centroamericanos, Universidad Autonoma de México, Instituto de Investigaciones Sociales, programa de Estudios sobre la Cidad, 1997.


14 CASTRO, M. RIOFRÍO, G. “La Regularización de las barriadas: el caso de Villa El Salvador (Perú). In Azuela, A. e FRANÇOIS, T. (orgs). El acesso de los pobres al suelo urbano. México, Centro de Estúdios Mexicanos y Centroamericanos, Universidad Autonoma de México, Instituto de Investigaciones Sociales, programa de Estudios sobre la Cidad, 1997.


15 BUENO, L.M. de M. Ob. Cit.


16 IRD - Atelier International Metrópoles em mouvement. Programme Ville/Réseau Sócio-Economique de L´habitat. Paris, IRD/CNRS, dezembro 1998.


17 BUENO, L.M. de M. Ob. Cit.


18 FPH - Politiques urbaines et lutte contre la pauvreté. Paris, documents de Travail dês Editions Charles Leopold Mayer, n. 96, 1997


19 BUENO, L.M. de M. Ob. Cit.


20 Idem.


21 Idem.


22 Instituto Cidadania. Projeto Moradia. São Paulo, 2000.


23 IRD - Atelier International Metrópoles em mouvement. Programme Ville/Réseau Sócio-Economique de L´habitat. Paris, IRD/CNRS, dezembro 1998.


24 Revista Veja. São Paulo, 22/01/2001.


25 Folha de São Paulo. Abertura não reduz pobreza, diz BIRD, São Paulo, Segundo Caderno, 16/09/99, p. 1


26 STALLINGS, B. e PERES, W. Ob. Cit.



Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/05/2003 - Página 11734