Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Constatação do pouco que se avançou no País na área social, nos últimos 10 anos.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Constatação do pouco que se avançou no País na área social, nos últimos 10 anos.
Publicação
Publicação no DSF de 03/07/2003 - Página 16929
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • REFERENCIA, TEXTO, AUTORIA, ORADOR, ANTERIORIDADE, ANALISE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO SOCIAL, PAIS, CONFIRMAÇÃO, AUSENCIA, ALTERAÇÃO, SITUAÇÃO, PERMANENCIA, CRISE, MISERIA, POBREZA, DESEMPREGO, MAIORIA, POPULAÇÃO, BRASIL.
  • REITERAÇÃO, NECESSIDADE, URGENCIA, PROJETO, DESENVOLVIMENTO ECONOMICO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL, PAIS.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, estive relendo recentemente alguns textos que escrevi em meados dos anos 90, textos que quase sempre serviram de base a pronunciamentos que fiz aqui desta tribuna ou que acabaram sendo publicados em jornais. Ao relê-los, notei que - na área social - avançamos pouco, muito pouco, nos últimos cinco ou dez anos. Percebi também que, em grande parte, esses textos eram voltados para a trágica situação que vivem os milhões de brasileiros que estão à margem do processo econômico e social.

Naquela época refleti muito e escrevi bastante sobre a extrema pobreza de uma importante parcela da população brasileira. Considerei então, e julgo ainda hoje, que a grande extensão do nosso País e o incessante movimento de idas e vindas das correntes migratórias acabam mascarando a dura realidade dos milhões de brasileiros que não têm condições mínimas de sobrevivência.

Escrevi, em meados dos anos 90, um parágrafo que talvez não tenha de ser retocado ainda hoje: “Sem terra, sem casa, sem emprego, sem comida, sem nada. Trata-se de um país oficial, com 42 milhões de habitantes, sem produto interno bruto, porque quase nada produz, sem arrecadação porque quase nada recebe, sem inflação porque quase nada come. Essa mesma população é lembrada, apenas, a cada quatro anos, porque dela se exige, unicamente, como documento de identificação o título de eleitor”.

Na minha opinião, a migração interna tem dimensões tais que o Brasil pode ser definido como “um país em movimento, de nômades”. São milhões de pessoas que, o tempo todo, se movimentam ora em direção às áreas de expansão agrícola e de fronteiras, ora aos centros urbanos, principalmente às regiões metropolitanas.

A situação demográfica brasileira é explosiva. Em 1970, tínhamos noventa milhões de habitantes, como cantava aquela música que embalou a nossa seleção na conquista da Copa do México. Passados trinta anos somos 170 milhões de habitantes. Literalmente, em três décadas o Brasil incorporou uma população próxima da Alemanha, o país mais populoso da Europa Central.

O Brasil tinha, em 1960, menos da metade de sua população nas cidades. Dez anos depois, a percentagem de pessoas vivendo em centros urbanos subia a 56%. Crescendo sempre, a população urbana chega a 68%, em 1980; e atinge 75%, em 1990. “A população rural é, hoje, quantitativamente inferior à de 1960, enquanto as cidades se incharam em 80 milhões de brasileiros a mais do que naquela época”, anotei em um de meus textos.

Escrevi, nos anos noventa, que os nossos péssimos indicadores sociais configuravam, no Brasil, um verdadeiro apartheid social, onde só uma reduzida parcela da população usufrui dos benefícios da modernidade, enquanto a maioria ainda vive uma situação que pouco se diferencia da registrada na era da escravidão, no século XIX. Isso permanece inalterado.

Afirmei em meus textos que um dos problemas mais graves do Brasil e do mundo é o desemprego, pelo que gera de miséria e de desesperança em todos os países, mas especialmente nos mais pobres. No nosso País, o impacto da falta de oportunidades se agrava porque milhões de analfabetos tentam, sem sucesso, entrar em um mercado de trabalho que exige, cada vez mais, especialização e conhecimento. Passados tantos anos, agora, neste início do século XXI, esse panorama permanece igual, ou pior, como atestam as mais recentes pesquisas.

Também escrevi que, por mais bem intencionadas que fossem as campanhas de solidariedade e por mais competentes e éticos que sejam seus mentores, elas não são suficientes para provocar as transformações necessárias, no Brasil, para reverter esse estado de coisas. Afirmei, e reafirmo agora, que o Brasil tem de construir, com urgência, um amplo projeto nacional de desenvolvimento que contemple não apenas a área econômica, mas também, e principalmente, a área social.

As soluções que apresentei à época para resolver a grave crise nacional - social e econômica - se mantêm. Acho que continuamos a esperar uma verdadeira reforma agrária, com assentamentos que se localizem próximos aos núcleos urbanos de origem das populações rurais expulsas para as cidades. Um outro caminho, que apontei em meus textos, seria o fortalecimento dos municípios de pequeno porte e das regiões consideradas deprimidas. Mas reconheci que essa é uma tarefa das mais árduas porque “os parcos recursos públicos tendem a se deslocar, com maior intensidade, para as regiões geradoras destes mesmos recursos, por apresentarem maiores possibilidades de retorno, em termos econômicos, e por concentrarem, quase sempre, lideranças políticas mais bem articuladas para a negociação de fatias mais suculentas dos orçamentos públicos”.

O que percebo, com o passar do tempo, é que no Brasil avançamos muito pouco no campo social. É bem verdade que a nossa economia cresce em um ritmo muito fraco há mais de vinte anos, e isso tem retardado, de certa forma, a solução dos problemas sociais.

Por tudo isso, Sr. Presidente, decidi pedir à Mesa que dê como lido esse pronunciamento que é um apanhado dos meus textos sobre a complexa realidade brasileira.

São os seguintes os textos:

Reflexão sobre as lágrimas dos inocentes

Nos termos de todos os versículos da Bíblia Sagrada. De todas as religiões e de todos os credos. Nos termos de todos os capítulos de todas as Constituições. De todos os países, de todos os povos. Nos termos de todos os regimentos, dispositivos e parágrafos, requeiro à humanidade uma ampla reflexão, a título de exame de consciência, para recapitular os princípios que nortearam a criação do universo, notadamente quanto à obra edificada no sexto dia.

Tal requerimento se justifica nos últimos acontecimentos veiculados pela imprensa mundial, que contrariam os fundamentos que nortearam a criação do homem, à imagem e semelhança do próprio Criador.

A total desintegração das relações humanas e a banalização da morte têm, hoje, seus versos mórbidos cantados em todas as línguas e transpõem fronteiras geográficas. São versos que rimam fome com genocídio, poder com bombardeio, miséria com massacre. As expressões de dor pelo irreparável unem o Líbano à Chechênia, o Haiti a Botswana, o Zaire à Bósnia, o Brasil ao resto do mundo. É a globalização da barbárie.

É por isso que, se todos os brasileiros elegerem seu próprio país como estudo de caso na reflexão proposta, não se limitarão a questões que se circunscrevem, apenas, a seus limites geográficos. Aqui, vivem milhões de miseráveis, cuja dor não difere da dos demais famintos do Zaire ou de Botswana. A dor da bala perdida, é a mesma da do artefato escondido. A dor do massacre, é a mesma da do bombardeio.

São todos seres humanos cuja identificação, na maioria das vezes, se reduz a um número. De que valem os nomes se a dor tem se circunscrito, cada vez mais, aos de mesmo sobrenome? Poderiam ser Pedros, Josés ou Severinos. Podem ter morrido de “emboscada antes dos vinte, ou de fome, um pouco por dia”. Ou, quem sabe, “de velhice, antes dos trinta”. São de Acarí, ou de Vigário Geral. Ou, ainda, do Carandiru, da Candelária, de Corumbiara, de Caruaru ou de Curionópolis. Ou, talvez, de qualquer outro lugar onde se mira o alvo ou se atira a esmo.

São inúmeros os temas que poderiam ser privilegiados: o sentido da vida, o direito à cidadania, a luta desigual, a fome e a miséria, os resquícios do obscurantismo, a terra para poucos, a chacina de indefesos, o massacre de presos, de sem-terras e de menores abandonados, a corrupção, o uso político da pobreza, o descaso dos governantes, o abuso de poder, o discurso e a prática, entre outros.

Como orientação, de caráter geral, há que se refletir, em cada tema, sobre os instintos de bestialidade que têm marcado, ultimamente, as relações entre homens e povos, em nome do poder e da ganância, ou, até, em nome do nada. Há que se refletir, também, sobre as lágrimas dos inocentes, como que orvalho nas noites frias das periferias ao relento, verdadeiros corredores da morte, vítimas da miséria, das miras clandestinas e oficiais ou da necrose das feridas do descaso. Há que se refletir, ainda, sobre os que tombam sobre a terra “que queriam ver dividida”. Há que se evitar a reflexão estéril, o discurso vazio e as promessas vãs e demagógicas. Há que se propiciar liberdade de manifestação para todos os participantes, brancos, negros, pobres, abastados, migrantes, presos, analfabetos, doentes, brasileiros, enfim.

O pão já não é nosso

O pão de cada dia já não é mais tão nosso. Porque o trigo é argentino, canadense, americano, alemão e, até, das Bermudas. Nos últimos dez anos, engatamos a contra-marcha da história. Não mais, como diz o poeta, recolhemos cada bago do trigo. Importamos. O alimento da oração que o Senhor nos ensinou se multiplica, cada vez mais, fora de nossos campos. Em 1986, debulhávamos quase 6 milhões de toneladas de grãos de trigo. Hoje, mal passamos de 1,5 milhão. Há dez anos, produzíamos 80% de nosso consumo. Importávamos 20%. Em 1995, os percentuais são os mesmos. Invertidos. Isso significa que quatro em cada cinco pãezinhos da última fornada foram assados com matéria-prima importada. O País se contentou com a casca e perdeu o miolo.

Nada mais constrangedor do que ter um quintal fértil e cultivar, apenas, o desejo pelo fruto do vizinho. O Rio Grande do Sul e o Paraná, por exemplo, que, em 1987, produziam, juntos, mais de 5 milhões de toneladas de trigo, nos últimos anos não atingiram metade do que o País importou somente da Argentina.

O Censo Agropecuário de 1985 mostra que, naquele ano, 91,3% dos estabelecimentos tritícolas pertenciam a grupos de área total abaixo de 100 ha e eram responsáveis por 53,1% da produção de trigo no País. Eram mais de 130 mil estabelecimentos, que ocupavam mais da metade dos 2,5 milhões de hectares plantados. Já em 1995, a área total de todos os estabelecimentos tritícolas no Brasil não passava de 1,0 milhão de hectares.

É evidente que muitos desses pequenos agricultores buscaram alternativas em outras atividades rurais. Mas, como as informações oficiais disponíveis sobre o algodão, a soja, o milho, o feijão e o arroz dão conta de que não houve evolução significativa, em termos de área cultivada, e que o valor bruto da produção desses mesmos produtos é decrescente, é de se imaginar que os pequenos triticultores fermentam os contingentes de migrantes que incham os grandes centros urbanos, à procura, ironicamente, de um pedaço de pão. E, na maior fatia das vezes, comendo o que o diabo amassou. Tudo porque, em dez anos, foram queimadas cerca de duzentas mil oportunidades de emprego, somente com a quase erradicação da lavoura tritícola. Não se trata de fatos isolados. Estima-se que o País terá que importar, neste ano, entre 11,5 e 14,3 milhões de toneladas de alimentos, além de devorar outros 5,5 milhões de seus estoques.

A verdadeira política parece ter sido a do “importar é o que importa”. E os US$250 milhões das importações de trigo de 1986 se transformaram nos US$910 milhões do último ano. Importamos mais e pagamos idem. Se, em 1986, o trigo da França custava US$90.70 a tonelada, em 1995, o mesmo “pão francês”, nas padarias brasileiras, foi produzido com trigo argentino de US$154.11, ou canadense de US$177.65.

Se o País se dignar a fartar de pão os seus milhões de famintos e miseráveis, haverá de continuar a recorrer a quintais alheios ou a se valer de um novo milagre da multiplicação. Porque não há alimento suficiente, por mais que a comunidade seja solidária. E, para produzir alimentos, parece não haver relevância, nem urgência, embora se teime em editar, para a agricultura, quase sempre, medidas de caráter provisório. O setor parece merecer prioridade somente quando a inadimplência do crédito rural ameaça a integridade do sistema financeiro. Ou quando ele deixa de se constituir no combustível que movimenta as contas bancárias dos grandes usineiros produtores de álcool.

Os defensores das teses liberalizantes deveriam exercitar a coerência de exigir que os recursos bilionários colocados à disposição do sistema financeiro e de outros segmentos privados da economia fossem alocados, pelo “Estado mínimo”, em ações de educação, saúde, segurança e, principalmente, de alimentação da população brasileira.

Vítimas do descaso e do abandono

Pés descalços. Rostos rudes e queimados pelo sol a sol. Mãos calejadas pelos guatambus na lida diária dos roçados. São os sem-terra, nos acostamentos das estradas da vida, a superpor rastros e a transpor placas indicativas de perímetro urbano.

Frio cortante das pontes e dos viadutos. Expressões assustadas com as incertezas da escuridão da noite. Barulho ensurdecedor dos automóveis que tangenciam o meio-fio que lhes serve de soleira. São os sem-casa, despejados da construção civil, onde levantavam os edifícios, as mansões e os palacetes que, hoje, lhe servem, apenas, de sombra e de horizonte.

Filas intermináveis à procura das placas de “precisa-se”. Feições desiludidas com os avisos de “não há vagas”. São os sem-emprego, cujas carteiras de trabalho já não justificam a razão do nome.

Mãos estendidas nas esquinas. Estômagos vazios pela miséria. São os sem-nada, cidadãos de segunda classe, vítimas do descaso e do abandono.

Sem terra, sem casa, sem emprego, sem comida, sem nada. Trata-se de um país oficial, com 42 milhões de habitantes, sem produto interno bruto, porque quase nada produz; sem arrecadação porque quase nada recebe; sem inflação porque quase nada come. Essa mesma população é lembrada, apenas, a cada quatro anos, porque dela se exige, unicamente, como documento de identificação o título de eleitor.

Trata-se de uma verdadeira nação, que possui população mas que sugere não ter governo e que parece ter perdido o território. São comuns as origens. O Brasil de 1940 mantinha 70% de seus habitantes no campo. O de 1950, 64%; o de 1960, 55%; o de 1970, 44%; o de 1980, 32%; o de 1990, 25%; o de hoje, pelo menos quatro em cada cinco pessoas já ultrapassaram a tal placa delimitadora de perímetros. Portanto, o território que falta a essa população nômade é o mesmo que se concentra sob domínio de um número cada vez menor de pessoas.

Os dados mais recentes, divulgados pela imprensa, indicam que 56,7% das terras brasileiras estão nas mãos de, apenas, 2,8% dos proprietários. Mais ainda: menos de 1% dos grandes proprietários detém 35,9% das terras.

A má distribuição fundiária brasileira não é um fato isolado. É parte de um modelo de desenvolvimento que coloca o País como o de mais alta concentração de renda do planeta, conforme dados contidos no último relatório do Banco Mundial. Aqui, os 10% mais ricos possuem 51,3% de toda a renda nacional ou os 20% mais opulentos abocanham nada menos que 67,5% de tudo o que é gerado no Brasil. Ou seja, mais de dois terços da renda produzida no País passa pelos bolsos ou pelas contas bancárias de, apenas, um em cada cinco brasileiros.

O país oficial tem consciência de que é impossível escamotear esse país real que tem invadido não apenas parte dos 62,4% das terras consideradas improdutivas e de que os conflitos não se limitam aos 585 casos detectados, ou às 85.097 famílias e 7,9 milhões de hectares envolvidos. Há o conflito latente, que extrapola os grandes centros urbanos e suas periferias e já se acumulam sob as janelas de todos os municípios brasileiros.

Se esse mesmo país oficial tivesse adotado políticas, nos últimos 20 anos, que procurassem, pelo menos, manter estável a sua taxa de urbanização, o que significaria manter no campo a população de origem rural, atingiria a totalidade de sua população hoje considerada abaixo da linha de pobreza e mais do que o dobro de sua população indigente, que poderia estar, agora, produzindo seus próprios alimentos e, mais do que isso, gerando excedentes que o País importa para controlar as taxas de inflação.

Nada mais paradoxal, portanto, que o País mantenha, de um lado, tantos pobres e indigentes, sem casa, sem emprego, sem comida, sem nada, em sua grande maioria de origem rural, e, de outro, mais de 300 milhões de hectares de terras agricultáveis, cercadas e guardadas como reservas de valor. Mais parodoxal, ainda, é que esses milhões de brasileiros pautaram toda sua experiência de vida em atividades tipicamente rurais e, hoje, à falta de terra, não lhes restam alternativas a não ser a submissão às exigências de qualificação do trabalho urbano. Pior: as sucessivas crises econômicas, a adequação da indústria aos progressos tecnológicos e as políticas adotadas no sentido da estabilização da economia agravam, ainda mais, o quadro. Antes, o campo expulsava e a cidade, bem ou mal, absorvia. As populações que saíam do meio rural e das regiões mais pobres barateavam os salários urbanos. Hoje, o rural continua expulsando, mas o urbano, além de não absorver, também libera mão-de-obra. Somente na Grande São Paulo, já passam de 1,3 milhão os desempregados. Ao deixarem as fábricas, sem emprego, encontram-se com outros tantos que deixaram suas terras e formam, juntos, o maior foco de tensão social do País.

É pouco provável que a principal alternativa de absorção de mão-de-obra volte a ser a indústria. É tese comum que grande parte do desemprego industrial assume caráter estrutural, isto é, não será revertido, mesmo em situação de recuperação econômica. É a indústria brasileira acompanhando os ventos das novas tecnologias. Tem-se, ainda, o agravante de que os eventuais novos empregadores consideram “velhos” os maiores de 45 anos.

A economia informal já deu sinais mais do que evidentes de saturação. Camelôs disputam, acirradamente, cada pedaço de calçada, à busca de consumidores e sob fuga dos fiscais.

A agricultura se coloca, portanto, como a alternativa viável para a manutenção do emprego e para a absorção da grande massa de trabalhadores desempregados. Neste contexto, a questão da terra deixa de ser o grande obstáculo, como se tem colocado ao longo dos últimos tempos, e pode se transformar na grande solução para os problemas geradores de tensão social. Os tabus ideológicos sobre a questão agrária se transformam, portanto, na consciência de que existem outras colorações, que aquelas meramente políticas, no seu tratamento.

Entretanto, sabe-se que a mera distribuição de terras não viabiliza a reforma agrária. As últimas pesquisas demonstram que 22% das famílias abandonaram os assentamentos rurais, por inexistência de condições de se manterem em suas atividades. Por outro lado, a renda média familiar mensal, nos assentamentos bem sucedidos, alcança a 3,7 salários mínimos, valor igual aos vencimentos médios do trabalhador urbano, no País.

Portanto, se há uma população desempregada, mas, em parcela significativa, com larga experiência em atividades rurais, terras férteis e incidência de todos os microclimas existentes no planeta e, se o governo atribuir prioridade efetiva à reforma agrária, a expectativa será otimista quanto à reincorporação de milhões de brasileiros a uma única nação, que produz, que gera renda e empregos e, principalmente, que se alimenta. Um país não se constrói fundamentado, eternamente, em concessões filantrópricas e solidárias. Há que se edificar uma nação de verdadeiros cidadãos, brasileiros que se identificam não apenas por nascerem sobre um mesmo chão, mas, essencialmente, porque dele se sustentam.

Uma nação de migrantes

“Não é lícito utilizar-se do desamparo e do desespero do povo como armas políticas. Não é honesto criar perspectivas risonhas, mas vãs e temerárias. Menos, ainda, quando se trata de classes desfavorecidas, que não devem ser enganadas com ilusórias esperanças”.

Tal frase não foi retirada de um discurso ao pé de um túmulo qualquer em Corumbiara ou em Eldorado de Carajás. Nem se trata da extensão do conteúdo de uma faixa de protesto de desempregados, na Praça dos Três Poderes. Embora se justificasse, perfeitamente, também não é parte da exposição que motivou a criação do Programa de Comunidade Solidária.

Ela ocupa espaço em uma das primeiras páginas da mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, relativa à Lei nº 4.504, que instituiu o Estatuto da Terra.

Era o último dia de novembro de 1964, exatamente sete meses após aquela longa noite, cuja escuridão se estendeu por mais de vinte anos.

Isso mostra quão tendenciosos são os discursos, principalmente quando disparados contra a miséria de um povo. Foram mais de duas décadas em que a reforma agrária recebeu tratamento como questão de segurança nacional.

Em seu nome, transferiram-se os focos de tensão social, principalmente aqueles mais próximos de propagação nos grandes centros urbanos, para as regiões consideradas vazios econômicos e demográficos. Criaram-se grandes projetos de assentamento na Amazônia e o Incra passou a se constituir em órgão de colonização e quase nada de reforma agrária. Multidões se deslocaram em busca da terra prometida. A propaganda oficial cuidou de envolver corações e mentes na crença de que, mantidas a seca e a cerca, era possível “ocupar as terras sem homens, com homens sem terra”.

Construiu-se, a partir daí, um país em movimento, de nômades. Menos que um caminho, uma encruzilhada cujos pontos de chegada dividiam-se entre as áreas de expansão e de fronteira e os centros urbanos, principalmente as regiões metropolitanas.

O Brasil tinha, em 1960, menos da metade de sua população nas cidades. Em 1970, 56%; em 1980, 68%; em 1990, 75%. A população rural é, hoje, quantitativamente, inferior à de 1960, enquanto as cidades se incharam em 80 milhões de brasileiros a mais do que naquela época.

É como se, em menos de quatro décadas, as cidades brasileiras recebessem toda a população atual da Alemanha, ou mais de duas vezes a da Argentina, ou dezesseis vezes a do Paraguai, ou vinte e cinco vezes a do Uruguai, ou ainda, a da França, da Bélgica e da Holanda, juntas. Mais do que isso: esse país de migrantes tem a metade de sua população fora dos municípios de origem e uma em cada três famílias brasileiras já se deslocou, pelo menos, seis vezes dentro do seu próprio território.

Tão caudalosos quanto os fluxos migratórios que se cruzaram em todas as direções, nas estradas empoeiradas de Rondônia, do Acre e do Pará, ou nas gares frias de São Paulo e do Rio de Janeiro, são os rios de tinta que se gastaram em discursos, projetos e teses, no parlamento, nos gabinetes e nas universidades, sobre a reforma agrária. Discursos com esperanças vãs, projetos com perspectivas ilusórias e teses que se sustentam, quase sempre, no vácuo do contraditório.

Hoje, já se mostram insuficientes as propostas de soluções isoladas ou de transferências de focos de tensão social, porque eles espoucam, com a mesma intensidade, no Pará, em Rondônia, no Paraná, no Rio Grande do Sul, ou em São Paulo. Não são fatos localizados porque a concentração é parte de um modelo de desenvolvimento que coloca o País como o de mais alta concentração de renda de todo o planeta. No Brasil, os 10% mais ricos abocanham mais da metade de tudo o que é gerado. Apenas dois em cada dez brasileiros são donos de mais de dois terços da renda nacional. Embora todos os discursos, projetos e teses, 56,7% das terras brasileiras estão nas mãos de 2,8% dos grandes proprietários ou menos de 1% deles detêm 35,9% do nosso chão. Não é à toa, portanto, que se contabilizam, hoje, quase 600 casos de conflitos fundiários, envolvendo 85.000 famílias. São números, relativamente, irrisórios, se comparados com os conflitos latentes. Os sem-terra, os sem-emprego, os sem-casa e os sem-nada não se cruzam mais em direções opostas. Juntam-se. Nos roçados e nos andaimes, juntam-se, também, as frustrações e, com elas, a consciência política. Já não se contentam mais, apenas, com a terra prometida. Nem mesmo com a terra dada. Lutam pela terra que, na sua percepção, lhes é devida. Lutam contra a contradição de um país com quase 17 milhões de miseráveis fora da porteira dos 300 milhões de hectares de terras agricultáveis, cercadas e guardadas como reserva de valor, longe de cumprir a função social consagrada desde o Estatuto da Terra e ratificada na Constituição de 1988.

Já não são as mesmas as mentes que deixaram para trás o semi-árido e as viúvas da seca e baratearam os salários nos grandes centros urbanos. Nem as que se embrenharam na mata e incorporaram o seu trabalho para viabilizar grandes projetos agropecuários. Sem terra, sem emprego, sem casa, sem nada, mas com a consciência de que não são, mais, meros exércitos de reserva.

E, é assim que os movimentos que, hoje, juntam bandeiras devem ser encarados. É bem verdade que não se pode afirmar que a questão agrária no Brasil mantém-se como questão militar. O fato de o Ministério do Exército colocar à disposição os 6 milhões de hectares de sua propriedade para fins de reforma agrária, bem como os serviços necessários para sua demarcação, parece se constituir no atestado desta mudança de concepção. Mas, é um grave erro continuar a tratá-la como questão policial, mesmo com a triste constatação de que a comoção social tem sido passageira.

A reforma agrária coloca-se, portanto, como uma questão social, no seu sentido mais amplo. E a questão social, no Brasil, já está plena de discursos e de teses. Mas, falta-lhe, ainda, um grande projeto.

O país dos clandestinos

Triste contradição. Uma caixa vazia de remédios embalava um bebê morto há sete dias. Ele havia sobrevivido fora do útero por, apenas, outros três dias. Naquele corpo materno, franzino e desnutrido, a placenta teria sido algo assim como uma mortalha.

Não tinha nome. Poderia ser João, José, Pedro ou Jesus. Ou, quem sabe, Severino, aquele que, se tivesse “vingado”, morreria “de violência antes dos trinta, de emboscada antes do vinte ou de fome um pouco por dia”. Era mais um “zé-ninguém”. Aliás, oficialmente, ele nem chegou a existir. Seus pais nada tinham, nem para o sustento da vida, nem para o ritual da morte. Ele era mais um clandestino, como o cemitério que, hoje, lhe serve de abrigo.

Ninguém à volta daquela mesa de cozinha, a não ser a reportagem da Folha de S.Paulo. “Nenhum padre. Nenhuma lágrima. Nenhuma vela. Só problemas e moscas”. Aliás, aquela mesa de cozinha parecia nunca ter assistido alguém à volta.

A cova rasa sob uma cruz torta, na metade daquele cemitério clandestino já ocupada por “anjinhos”, foi “trocada” por uma garrafa de cachaça. O que deveria ser o “consolo” à angústia do pai, se transformou no “agrado” à benevolência do coveiro informal, que teimava nos R$10,00 para não deixar o bebê “em cima da terra”.

A matéria, publicada no último 17 de novembro, exala um cheiro típico de estado de decomposição. De uma sociedade que criou um país anexo, fora do principal. São 50 milhões de brasileiros clandestinos em seu próprio país. Não têm nome oficial. Não têm sobrenome. Não têm idade formal. Aparentam, mais ou menos. São filhos da miséria. Na manchete da Folha, “Ana é só Ana, supõe ter 66 anos”.

Sonham em migrar para o Brasil oficial. Querem, além de ter, ser. Mas, quase nunca, conseguem ultrapassar a barreira do desdém. São desiguais em tudo na vida. A mesma Folha já publicou matéria sobre a formação, no Brasil, de uma verdadeira sub-raça, fruto da desnutrição, com estatura que já se compara à dos pigmeus, com média abaixo dos 1,50 m. São os chamados “gabirus”. Um em cada cinco brasileiros possui altura que pode ser considerada como nanismo. A dimensão do cérebro, também abaixo das curvas de normalidade, pode acarretar uma diminuição da capacidade intelectual em, até, 40%.

O País oficial deve, urgentemente, caminhar além dos soluços das catástrofes, das comoções das desgraças e, até, do reconforto das orações. Há um massacre do Carandiru por dia nas clínicas geriátricas e nas maternidades impregnadas por bactérias assassinas. Há, no Brasil, uma chacina da Candelária por hora, cujos necrotérios podem ser, também, as mesas das cozinhas dos dezesseis milhões de miseráveis brasileiros.

O direito à cidadania não se resume à obrigação de votar. O título de eleitor não pode se constituir num passaporte para conterrâneos. A existência humana não se restringe, apenas, à conveniência das eleições. O título de cidadania há que ser hereditário. O direito à vida ultrapassa os limites das disciplinas do curso de Serviço Social. Algo assim como a Economia, que não se esgota no tratamento do sistema financeiro. A realidade estampada pela Folha exige uma leitura multidisciplinar, do ponto de vista dos assistentes sociais, dos economistas, dos profissionais de saúde, dos educadores, dos sociólogos, dos antropólogos, do Presidente e da Primeira Dama.

Por mais necessárias e bem intencionadas que sejam as campanhas de solidariedade, por mais competentes e éticos que se mostrem os seus mentores, não são suficientes para provocar as transformações que a realidade está a impor. O País ainda espera que se derrube o muro que separa o seu lado principal e oficial da sua porção marginalizada e clandestina. E isso só será possível com um projeto de desenvolvimento que se coloque em patamares superiores aos das discussões sobre estabilização, privatização ou reeleição. Se o tal muro é rígido em demasia, porque sedimentado durante tantos anos de segregação política, cultural, econômica e social, que se abram passagens, em mão dupla. Que se abram frestas nas consciências, que se aprumem as cruzes, que se aprofundem as covas, que se encham as caixas de remédios, que se alimentem as mães, que sejam vigorosos os filhos, que tenham nome e sobrenome, que sejam alguém, que a mesa seja de cozinha e que o ar seja impregnado pelo perfume da vida.

Da gênese do trabalho ao apocalipse do desemprego

"Tu comerás o teu pão no suor do teu rosto". A gênese do trabalho, na linguagem bíblica, parece atribuir ao labor o sentido de castigo, aplicado ao pecado da desobediência. Afinal, não fossem a serpente e a maçã, continuariam, hoje, todos os seres humanos sendo acordados ao som de trombetas celestiais, sem a obrigação de retirar "o sustento à força de trabalho".

Se essa é uma visão ultrapassada, em tempos modernos, quando se procura desvincular o trabalho da maldição divina e se lhe embute valores humanos e papel fundamental na construção de um mundo mais justo, é bem verdade que o som de tais trombetas coletivas deu lugar ao despertador individual que interrompe a noite mal dormida pelo choro da criança faminta ou pelo temor do despejo iminente. Ou, quem sabe, já despejado, ao ronco do primeiro automóvel que mordisca, apressado, o meio fio, que já lhe serve de soleira. Expulso do trabalho, o homem já não pode mais comer o pão com "o suor de seu rosto".

Se o trabalho é a continuidade da obra divina na terra, que pecado original teriam cometido, hoje, esses milhões de novos Adãos, Pedros, Evas, Antônios, Marias ou Severinos que lhes nega, até, o suor e o relógio de ponto? Se o trabalho é o elo entre o homem e o mundo e se transforma na própria consistência do ser humano, como definir o desempregado e sua missão latente de construir e transformar este mesmo mundo?

O verdadeiro castigo parece ser, hoje, o desemprego. Já a obtenção de um trabalho, de um emprego, de um posto de trabalho é quase sinônimo de estar chegando ao paraíso possível.

No Brasil, já são milhões os que procuram pelo "precisa-se" e deparam com o "não há vagas". Todos continuam com suas necessidades básicas diárias e constitucionais de "educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados", mas não possuem mais, nem mesmo, o seu próprio dia de pagamento. Não é por acaso que os dados oficiais já apontam milhões de indigentes cuja alternativa ao relento, são as pontes e os viadutos, cada vez mais disputados, principalmente nas grandes cidades, que trocaram o crescimento pelo inchaço.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD iniciou a década enfatizando que o desemprego seria a "ameaça devastadora" dos anos 90. Passada a metade do período, o prognóstico tende a se confirmar. As inovações tecnológicas já adquirem feições de terceiro milênio, mas sem apagar os rastros descalços do segundo. Não se trata de negar a importância do desenvolvimento tecnológico, mas não se admite desconhecer que ele tem implicado exclusão social.

Um país cuja história reverencia a "lei dos sexagenários", que tornou livres os escravos com idade superior a 65 anos, agora amarga a perversidade da sua "lei dos quadragenários", que considera velhos para o trabalho os brasileiros maiores de 45 anos. Ou, ainda, "incapazes", segundo pesquisa recente divulgada nos jornais, aqueles cuja carteira de trabalho não registra novo contrato nos últimos seis meses.

Por tudo isso é que já se observa, no Brasil, um verdadeiro apartheid social, onde uma parcela cada vez menor da população já usufrui da modernidade do século XXI, enquanto a grande maioria ainda arrasta grilhões aos moldes da escravidão do século XIX. O que se deve repensar, portanto, é, ainda, o país do século XX. O grande muro deste final de século é, sem dúvida, o desemprego, gerador da miséria e da desesperança. Há que se derrubá-lo, mesmo que para isso, sejam, também, demolidas discutíveis utopias chamadas neoliberais.

A opção preferencial pela amnésia

A história de um país nunca prescreve. Queimem-se os livros e ela sobreviverá na memória de seu povo. Mas a esse mesmo povo nem sempre é permitida a oportunidade de conhecer toda a história de seu País. Caso contrário, quedariam sem função os seus historiadores. Mas, pobres historiadores brasileiros! A pesquisa histórica, no Brasil, tem se tornado, cada vez mais, algo como um exercício de exumação, porque nossos principais documentos parecem se transformar em verdadeiros arquivos mortos.

Pelo menos, é este o quadro que resulta da matéria editada em reportagem especial deste jornal, no último dia 3 de setembro, sob o título “Memória do Brasil pode parar no lixo”. Ali, o que se mostra é a opção preferencial pela amnésia. Documentos importantes para o resgate da nossa história ao sabor de traças e cupins, ensopados pelas infiltrações de porões e garagens oficiais. Escritos que instigaram a população a ocupar as ruas de todo o País com seu brado pela ética na política e que propiciaram o impeachment de um Presidente da República e a cassação de mandatos parlamentares são tratados, hoje, como verdadeiros estorvos, ao desabrigo do descaso. Triste constatação. Zero Hora mostrou que nossa “Operação Mãos Limpas” resultou na aparência suja de um amontoado de lixo.

Que se espalhe, então, todo esse “lixo” pelos quintais de todos os brasileiros, não só daqueles que tiveram o privilégio de ler a matéria de Zero Hora. Quem sabe, daí, cada qual possa vassourar os fantasmas remanescentes dos esquemas de corrupção, que teimam em se locupletar com o sagrado dinheiro dos hospitais públicos, das escolas, das creches e da própria vida de milhões de brasileiros. Ou, então, que se reciclem todos os papéis utilizados nas investigações das CPIs do Impeachment e do Orçamento para propiciar o relatório final da CPI dos Corruptores. O que se sabe é que ali se amontoam todos os elementos necessários ao complemento das investigações sobre os desvios de recursos e a dilapidação do patrimônio público. Ali também estão todas as informações que nortearam a aprovação de requerimento de minha autoria, durante a votação do relatório final da CPI do Orçamento, que recomenda a investigação, imediata, das ações dos agentes corruptores.

Em algum outro lugar, incerto e não sabido, segundo o próprio Ministério da Justiça, em resposta ao meu pedido de informações, dormitam outros documentos, agasalhados por outras caixas amontoadas, cuja poeira deve esconder as etiquetas indicativas dos trabalhos da Comissão Especial de Investigação - CEI, que, também, enumerou atos de corrupção na Administração Pública. Esta Comissão foi criada pelo ex-Presidente Itamar Franco, tão logo por mim proposta, e fulminada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, já no 19º dia de seu mandato.

O meu requerimento de instalação da CPI dos Corruptores também foi encaminhado para o arquivo morto. Deve ser um desses papéis fotografados por Zero Hora. Igual destino deve merecer o meu projeto, aprovado pelo Senado Federal, que autoriza o Senhor Presidente a recriar a CEI. Como o título da matéria citada, eles se mantêm como “memória do Brasil”. Mas podem, também, “parar no lixo”.

A reportagem do jornal registra o flagrante do que deveria se constituir em crime correlato ao de queima de arquivo. As fotos não necessitariam de legenda. Porque, como que querendo estilhaçar as lentes do fotógrafo, elas significam o grito de dor da falta de hospitais, o silêncio ensurdecedor do analfabetismo, o tremor pelo frio e pelo medo no relento das pontes e dos viadutos e o reclamo profundo dos estômagos que se alimentam apenas da solidariedade de outrem. Por tudo isso, livro-me da penitência pelo pecado da omissão e da cumplicidade. A luta pelo melhor destino dos recursos públicos é cláusula pétrea da minha própria história. Estou encaminhando requerimento ao Sr. Presidente do Senado Federal para que sejam tomadas as providências cabíveis para o caso. Estou requerendo, também, informações aos Senhores Ministros responsáveis pelos documentos citados na matéria, no sentido de que sejam apuradas as responsabilidades e resgatadas as informações que ainda se teima em deletar.

Entretanto, ainda se pode extrair algo de positivo na matéria de Zero Hora: a importância fundamental da imprensa livre e democrática. Sem ela, certamente, não teria havido a CPI Collor/PC. Sem ela, dificilmente seria instalada a CPI do Orçamento. Com ela, quem sabe, a CPI dos Corruptores e as investigações da CEI renasçam do pó.

Feliz Natal Novo

"Há um choro novo". Esta expressão significa, principalmente no interior do país, o nascimento de uma criança. Não se conhece outro exemplo de sons, aparentemente tão contraditórios, constituírem-se no mais afinado coral: o choro tão esperado junta-se, como que em uma melodia, aos sorrisos incontidos da família. Tudo é festa. Não importa se há, naquele mesmo momento, do outro lado da rua, a partida de alguém muito próximo. Afinal, "são retratos da vida", que se estampam em natais, paixões, mortes e ressurreições.

Mas, neste momento, há um choro novo no ar. Há que se procurar, ao redor de cada um, o que o motiva. Se a alegria da chegada ou se a dor da despedida. Há, certamente, ao redor de cada um, natais, paixões, mortes e ressurreições.

Mas, hoje é Natal. E as cascatas de luzes enchem os olhos. E a mesa farta enche os estômagos. Entretanto, não são todos os olhos que brilham e, para milhões de estômagos, não é Natal. É tempo de paixão e morte. Como que em um único retrato, em branco e preto.

O clima do Natal é contagiante. Pelo menos na imaginação, o nosso desejo é o de abraçar o mundo. De repente, parece que o melhor presente é estar presente, é viver. Mas, se a vida é, para nós, o melhor presente, por que não a envolvemos nos nossos mais belos laços e não doamos um pouco dela para quem, dela, pouco, ou nada, tem?

É Natal e Jesus nasceu, de novo. Mas, milhares de crianças que, como Ele, vieram ao mundo no outro Natal, não estão comemorando, hoje, o primeiro aniversário. Porque Herodes ordenou que fossem mortas todas as crianças menores de dois anos. Herodes que apresenta, hoje, a sua nova face, travestida na fome e na miséria. Tudo isto, também, bem próximo dos atuais Pôncios Pilatos, que insistem em continuar a lavar as mãos.

Quem sabe o próximo Natal seja diferente. Porque este está sendo igual aos anteriores. Pelo menos para os milhões de brasileiros, irmãos ao alcance do nosso abraço natalino, mas que não compareceram à nossa mesa, que não brindaram conosco, que continuam a ser os nossos verdadeiros "amigos ocultos". Quem sabe o próximo Natal, hoje cantado em todos os versos, em todas as prosas e em todas as línguas, seja saudado, no Brasil, em todos os sotaques. Porque, neste Natal, ainda somos a maior disparidade regional e pessoal de renda do mundo.

O próximo Natal há que ser melhor que este. Para isto, hoje e todos os próximos dias, têm que ser vésperas de Natal. Há que se preparar uma grande festa. Há que se plantar o arroz, o feijão, o milho, a mandioca, as frutas. Para isto, há que se ter terra. Há que se tecer a roupa, há que se armar a mesa e há que se construir o abrigo. Para isto, há que se ter trabalho e salário. Há que se ter escolas, hospitais e creches. Para tudo isto, há que se ter vontade e decisão políticas.

Ainda bem que, logo após cada Natal, há um ano novo. E que, ainda para muitos, cada dia do ano novo será, sempre, como que noite de Natal. A estes, como dizia o poeta, a bênção. A bênção todos os que se doam aos que nada têm além da esperança. A bênção homens públicos que não seguem o exemplo de Pilatos, mas que procuram manter as mãos limpas. A bênção à imprensa livre e democrática e à sua busca incessante da verdade. A bênção a todos os cidadãos, anônimos, nos andaimes da construção e no sol a sol do roçado. A bênção, enfim, a todos os que sonham com um país mais digno e que, ainda, mantêm a capacidade de indignar-se.

Hoje é Natal. E amanhã, também. Ao mesmo tempo em que festejo o dia de hoje, preparo melhor o dia de amanhã. Porque hoje, também, é véspera. É o dia anterior àquele que, espero, seja de mesa farta e, principalmente, ampla. O tempo é de choro novo. Se de alegria, compartilhada. Se de tristeza, solidária. Que a mesa seja, portanto, de comunhão e os novos tempos, de ressurreição!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/07/2003 - Página 16929