Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Questão agrária brasileira.

Autor
Ideli Salvatti (PT - Partido dos Trabalhadores/SC)
Nome completo: Ideli Salvatti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • Questão agrária brasileira.
Aparteantes
Ana Júlia Carepa, Demóstenes Torres, Roberto Saturnino, Serys Slhessarenko.
Publicação
Publicação no DSF de 10/07/2003 - Página 17566
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • LEITURA, COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), ALEGAÇÕES, PRESIDENTE, PARTIDO POLITICO, UNIÃO DEMOCRATICA RURALISTA (UDR), INTERESSE, MOVIMENTO TRABALHISTA, SEM-TERRA, ALCANCE, PODER, AUSENCIA, VONTADE, REALIZAÇÃO, REFORMA AGRARIA.
  • CRITICA, INCOERENCIA, DECLARAÇÃO, PRESIDENTE, PARTIDO POLITICO, UNIÃO DEMOCRATICA RURALISTA (UDR).
  • ANALISE, PROCESSO, DISTRIBUIÇÃO, TERRAS, BRASIL, REGISTRO, CONCENTRAÇÃO, POSSE, PROPRIEDADE RURAL, MINORIA, POPULAÇÃO.
  • ELOGIO, INICIATIVA, PRESIDENTE DA REPUBLICA, PROMOÇÃO, DESENVOLVIMENTO, CAMPO, ESPECIFICAÇÃO, FACILITAÇÃO, TRABALHADOR RURAL, CREDITO AGRICOLA, LIBERAÇÃO, VERBA, AGRICULTURA, PROPRIEDADE FAMILIAR, CONFIANÇA, REALIZAÇÃO, REFORMA AGRARIA, RESPEITO, DEMOCRACIA.

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, até imaginei que o assunto já estaria um pouco vencido no plenário, porque toda a polêmica se deu na semana passada, mas parece que ele ainda não está vencido.

Portanto, é bom que conversemos um pouco a respeito dos chapéus e das cabeças. Precisamos refletir sobre o que há dentro das cabeças, sobre como as pessoas pensam. As pessoas enxergam além dos chapéus e bonés que usam, até porque há vários chapéus e bonés que as pessoas não usam, mas as suas idéias, que estão dentro das suas cabeças, são muito fortes.

Queria comentar uma reportagem publicada na Folha de S.Paulo:

O Presidente Nacional da UDR (União Democrática Ruralista), Luiz Antônio Nabhan Garcia, 45, afirma temer que o campo brasileiro caminhe “para uma conflagração”, pela falta de atitude do Governo Lula. Nabhan Garcia afirma que o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) não quer fazer reforma agrária e “sim tomar o poder, com a transformação de um sistema político vigente”.

Ou seja, é dito que o MST não quer terra, não quer um local para trabalhar, mas, sim, a revolução, o poder, que eles querem tomar conta do País e modificá-lo.

É bom jogarmos francamente. Quem é que não sabe, neste País, que terra é poder? Quem não sabe que quem detém a posse da terra, que os donos da terra mandam, mandaram e vão querer continuar mandando neste País? O poder está diretamente ligado à posse da terra ao longo de toda a História brasileira.

Talvez seja importante fazermos uma retrospectiva histórica de como a terra foi obtida neste País, como muitas pessoas acumularam grandes extensões de terras. Aliás, o Presidente Nacional da UDR é filho e neto de fazendeiros, possui 1.060 hectares em Sorriso, no Mato Grosso, onde produz soja e milho e tem pecuária de cria, e outros 366 hectares em Sandovalina, no Pontal do Paranapanema, São Paulo. Portanto, não é nenhum pequeno proprietário; é um imenso proprietário de terra.

Vejo o Senador César Borges me observando.

Fui leitora atenta de Jorge Amado. Em seus romances, ficava muito claro como se acumulou terra no Brasil, como determinadas famílias, grupos, pessoas se apossaram da terra. Existe até um termo - grileiro, grilagem - cujo significado vim a descobrir depois de muito tempo. Por que é que se dá o nome de grileiro? A informação que me deram era a de que, para se regularizarem terras, colocavam-se os papéis nas gavetas com grilos para que amarelecessem e ficassem com a aparência de velhos. Era dessa forma que se regularizavam as terras absolutamente ilegais.

Aliás, ocupar, resistir, produzir, que é o lema dos sem-terra, é e sempre foi o lema de muita gente com terra, que ocupou, resistiu e produziu. Portanto, se vamos falar dos bonés, vamos falar das cabeças, vamos falar da História. Vamos falar como é que este País patrimonialista, concentrador de terra e de renda, criou-se, constituiu-se.

A Srª Serys Slhessarenko (Bloco/PT - MT) - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Já lhe concederei o aparte, Senadora.

O problema é o MST? Querem fazer análises a respeito dos comportamentos do MST? Tenho várias questões que posso abordar. Mas querer escamotear que o problema é que 1% dos proprietários de terras no Brasil detêm 50% de toda a terra brasileira é tentar esconder o crime absoluto de não permitir que, no País que tem a maior extensão de terra agricultável do planeta, pessoas consigam um pedaço de terra para trabalhar.

Com prazer, seguindo a ordem, ouço o aparte da Senadora Serys Slhessarenko, do Senador Roberto Saturnino e, depois, do Senador Demóstenes Torres.

A Srª Serys Slhessarenko (Bloco/PT - MT) - Senadora Ideli Salvatti, foi muito bom V. Exª ter levantado esse assunto neste momento. Ouvindo assim, fica parecendo que a situação é desesperadora para algumas pessoas por aí, um drama que, do meu ponto de vista, não procede de jeito nenhum. Em primeiro lugar, não fazer a reforma agrária é a coisa mais burra do mundo, porque os países tidos como “avançados”, “desenvolvidos” - uso as aspas porque, para mim, desenvolvimento não é bem o que eles fazem -, já fizeram a reforma agrária há muito tempo, enquanto neste País não querem fazer a reforma agrária. É a defesa da “sacrossanta” propriedade privada, que vai estar mais assegurada ainda ao se fazer a reforma agrária para valer. Esse é o item um. Item dois: gostam de fazer uma confusão muito grande com o MST. Há realmente movimentos que não são qualificados, que promovem badernas e outras atitudes impróprias, mas o MST é um movimento organizado, sim, e reconhecido internacionalmente. Como é apenas um aparte, não tenho tempo para comentar mais. Item três: o grande desespero dos que se apossaram de terras públicas é a política do Governo Lula, Presidente da República, de resgate das terras públicas para fins de reforma agrária. Ninguém tomará terra de ninguém; aliás, creio que nem lá no meu Estado de Mato Grosso será necessário desapropriar terra. Talvez os grandes fazendeiros, que estavam querendo ter suas terras desapropriadas por preços exorbitantes, estejam chateados porque acreditam que não será mais preciso desapropriar terra. São tantas as terras públicas de que os grileiros se apossaram que, com o resgate delas, não será necessário mais desapropriar. Em Mato Grosso, dá para fazer reforma agrária com as terras públicas e ainda sobram terras. É óbvio que os grileiros de terras públicas estão apavorados, porque vão perder. E espero que percam, porque quem pegou terra pública, que deve ter fim social, tem que perder. Muito obrigada.

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Obrigada, Senadora Serys Slhessarenko, pelo aparte.

Concedo um aparte ao Senador Roberto Saturnino.

           O Sr. Roberto Saturnino (Bloco/PT - RJ) - Senadora Ideli Salvatti, hoje, parece que é o MST que assusta. Há quarenta anos, eram as Ligas Camponesas. E mais assustadores ainda eram os discursos que se faziam no Congresso Nacional sobre o perigo das Ligas Camponesas. Lembro-me de um Deputado da UDN de Minas Gerais, que era padre, que dizia: “Eu deveria falar aqui no preceito de Cristo, “Amai-vos uns aos outros”, mas digo: “Armai-vos uns aos outros, porque a guerra está começando”. A guerra era representada pelas Ligas Camponesas. O Deputado Bilac Pinto e os conservadores do Congresso falavam da “guerra revolucionária”. O que aconteceu foi que veio a ditadura militar, passaram-se 40 anos e não se fez a reforma agrária. É necessário fazer a reforma agrária. Agora o nosso Governo vai fazer, tenho absoluta certeza. Então, podem todos se acalmar porque a reforma agrária vai ser feita, e a tensão no campo, evidentemente, vai se aliviar. Mas a tensão é muito maior na cidade do que no campo. Essa também é outra verdade que precisa ser dita.

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Obrigada, Senador Roberto Saturnino, pelo aparte.

Concedo o aparte ao Senador Demóstenes Torres.

O Sr. Demóstenes Torres (PFL - GO) - Senadora Ideli, primeiramente, gostaria de externar o meu reconhecimento pelo trabalho formidável que V. Exª vem realizando nesta Casa. Vou tratar, em meu pronunciamento ainda hoje, do mesmo tema que V. Exª está abordando. É preciso deixar bem claro que o Brasil atrasou um processo de reforma agrária que os países europeus fizeram há 200 anos, com o fim do regime feudal. Somente na década de 60 é que regulamentamos a Constituição de 1946, propiciando a desapropriação para fins de interesse social. E acabamos fazendo, no Brasil, uma espécie de assentamento muito complicado, porque, na realidade, houve a distribuição de terra, mas sem os mecanismos para fixação do homem no campo. Então, digamos o seguinte: o Governo Fernando Henrique, durante os oito anos de governo, distribuiu mais terra do que em todos os anos anteriores e gastou R$30 bilhões em reforma agrária. Não se pode, então, dizer que ele não investiu em reforma agrária. Agora, se foi utilizado um modelo correto, adequado, que tenha efetivamente propiciado uma justiça social no campo, creio que não. Mas, Senadora, o grande problema que vejo em relação ao Movimento dos Sem-Terra, que é organizado, que merece respeito, que luta efetivamente pela consecução e realização da reforma agrária no Brasil, são os métodos que vem utilizando. Esses métodos acabam por se assemelhar aos mesmos que os fazendeiros utilizaram na década de 80 e que nós reprovávamos, o que quer dizer que não interessa o lado. O Brasil precisa fazer reforma agrária? Precisa. O Governo Lula precisa melhorar inclusive o que os governos anteriores fizeram? Sim. E digo, como uma pessoa que não participou do Governo Fernando Henrique e que pela primeira vez exerce um cargo político, que temos que reconhecer que alguma coisa foi feita em termos de distribuição de terra, mas nada foi feito para procurar segurar esse homem lá. Sabemos que, só distribuindo terra, acabamos por propiciar que esse homem termine vendendo a própria terra por não ter mecanismos para permanecer ali. Não escutei o início da discussão, mas o que reprovo, hoje, são os mecanismos utilizados pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Considerava legítimos os métodos utilizados antes, de pressão, de discussão, de exposição do movimento. Mas, agora, a prática da violência pode levar a um recrudescimento desnecessário no campo. Reprovo o uso de métodos violentos pelo MST, da mesma forma como fiz na década de 80 em relação à atuação dos fazendeiros, que utilizavam armas e métodos arcaicos. Acredito que isso não contribui para a efetivação de uma reforma agrária pacífica em nosso País.

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Obrigada, Senador Demóstenes Torres, pelo aparte.

Temos que ter clareza, calma e tranqüilidade para resolver esse problema. A questão agrária no Brasil se arrasta há mais de 500 anos e representa uma situação de injustiça social que, por si só, é insustentável, inconcebível e inadmissível. Portanto, precisamos entender que, se os que se rebelam contra essa situação excedem-se em alguns momentos, em algumas circunstâncias, isso é fruto da injustiça cristalizada na estrutura fundiária brasileira. No Brasil, volto a afirmar, 1% dos proprietários de terra são donos de mais da metade das terras agricultáveis do País. Isso, por si só, já representa uma violência inominável. É algo mais violento do que qualquer ato violento de resistência a essa situação.

Ouço a Senadora Ana Júlia Carepa.

A Srª Ana Júlia Carepa (Bloco/PT - PA) - Obrigada, Senadora Ideli Salvatti. Parabenizo-a pela abordagem do tema. Neste Senado, na semana passada, foi apresentado um pedido de criação de CPI para investigar o MST. Eu pergunto a todos, Senadora, se, em sã consciência, queremos realmente fazer a reforma agrária neste País ou se há alguns que apenas querem fazer barulho e se contrapor a uma reivindicação cuja justeza não se discute. Reforma agrária é algo básico para qualquer país se desenvolver. O que se fez foi uma “favelização” agrária e alguns acham que podem investigar apenas o MST. Não vou negar que excessos possam ter sido cometidos aqui ou ali. Mas o MST é um movimento de trabalhadores organizados que surgiu exatamente por conta da omissão e da falta de perspectiva de acontecer a reforma agrária no País. Quero saber, Senadora Ideli, se também vai haver a mesma vontade política de se investigar a grilagem de terra. Quero saber se vai haver a mesma vontade política para se investigar o trabalho escravo que muitos desses fazendeiros praticam, inclusive no meu Estado, o Pará, que, infelizmente, concentra 80% de todas as apreensões e posterior libertação de trabalhadores escravos ou em condições análogas. Ou se investigam a grilagem de terra e o trabalho escravo, que são crimes, ou não haverá, na verdade, a paz no campo. Ou se tem o objetivo de levar a paz ao campo, além de condições de sobrevivência para o trabalhador rural assentado, pois muitos não têm luz, casa, água, assistência técnica e acesso à estrada, como na maioria dos assentamentos no Estado do Pará - também o que concentra maior quantidade de assentamentos -, transformando-os em produtores rurais, ou vai-se apenas atacar, mais uma vez, a organização dos trabalhadores. Penso que não deva ser assim, pois queremos fazer a reforma agrária. Por isso, parabenizo V. Exª pela abordagem do tema e quero dizer que a UDR não vai mudar Ministro em nosso Governo. A UDR, coisíssima nenhuma, não muda Ministro em nosso Governo.

A SRª IDELI SALVATIT (Bloco/PT - SC) - Foi por isso, Senadora Ana Júlia, que comecei o meu pronunciamento - V. Exª não estava presente - falando a respeito de “bonés” e “cabeças”. Os bonés colocados podem ser uma atividade momentânea, uma gentileza, mas não o que está dentro da cabeça das pessoas, a forma como enxergam essa realidade fundiária brasileira absolutamente injusta e como se posicionam.

O Presidente da República colocou o boné do MST? Colocou e creio que tem todo o direito de fazê-lo, como colocou inúmeros outros chapéus e esteve, por exemplo, em atividades dos grandes produtores rurais e em solenidades com o agronegócio brasileiro. Aliás, o Governo vem mantendo e ampliando esse importante setor da economia brasileira, reconhecendo a sua relevância. Hoje de manhã, o Ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, esteve com a Bancada de apoio ao Governo, mostrando-nos, exatamente, todo o potencial que está permeando esse setor, com grandes possibilidades de se ampliarem as nossas exportações, os recursos, a mão-de-obra e os empregos.

Todavia, não vamos escamotear. Quem quer fazer a defesa da injustiça fundiária, que não escamoteie, que coloque o chapéu. Já tive a oportunidade de dizer que não há nenhum problema nisso. Que cada um assuma o que defende. Estou sendo processada no Supremo porque disse que determinada figura política era lobista de banqueiro. Não há nenhum problema em ser lobista do que for. Eu sou lobista de professor, da educação pública, de que faço a defesa intransigente e não tenho vergonha. Temos vários lobistas, de inúmeros setores. Contudo, é preciso assumir, é preciso colocar o chapeuzinho de acordo com a idéia que está dentro da cabeça.

O Governo de Lula não só está dando apoio e condições para que o agronegócio continue em expansão no Brasil, como, ao mesmo tempo, está privilegiando a agricultura familiar. Pela primeira vez e prioritariamente, a dívida dos pequenos agricultores e assentados da reforma agrária está sendo negociada; o Plano Safra contém inúmeras novidades, especificamente para esse setor, simplificando-o, e existem o Cartão Pronaf, o Pronaf Mulher, o Pronaf Jovem Trabalhador Rural, o Pronaf Turismo Rural e o Pronaf Pesca, que ampliam os valores dos contratos e dão condições para a reforma agrária.

Como diz o Senador Saturnino, temos plena convicção de que essa reforma será feita pelo Governo de Lula, da mesma forma corajosa como o Presidente tem enfrentado inúmeras questões. Ela será feita dentro do respeito à lei e das condições democráticas do País, mas também dando condições para que os trabalhadores assentados possam viver com dignidade. Se o Presidente da UDR diz que o MST não quer reforma agrária, mas o poder, digo que os trabalhadores sem terra querem o poder, sim, mas o poder de viver com dignidade, criar sua família, ter um local para trabalhar e de onde tirar o seu sustento, de serem reconhecidos não como estando à margem da sociedade, mas como cidadãos brasileiros com direito a viver.

Sr. Presidente, agradeço e peço desculpas por ter ultrapassado alguns minutos.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/07/2003 - Página 17566