Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcrição de textos elaborados por S.Exa. durante a década de 90 e que tratam do combate à corrupção.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.:
  • Transcrição de textos elaborados por S.Exa. durante a década de 90 e que tratam do combate à corrupção.
Publicação
Publicação no DSF de 10/07/2003 - Página 17641
Assunto
Outros > GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.
Indexação
  • COMENTARIO, SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, TEXTO, AUTORIA, ORADOR, ANALISE, INSUFICIENCIA, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA, POPULAÇÃO, PAIS, PRECARIEDADE, SAUDE PUBLICA, EDUCAÇÃO, RESULTADO, EXISTENCIA, CORRUPÇÃO.
  • DEFESA, NECESSIDADE, IMPLEMENTAÇÃO, POLITICA, COMBATE, DESVIO, FUNDOS PUBLICOS, CRITICA, EXTINÇÃO, COMISSÃO ESPECIAL, INVESTIGAÇÃO, RELEVANCIA, ALTERAÇÃO, LEGISLAÇÃO ELEITORAL, REFERENCIA, FINANCIAMENTO, CAMPANHA ELEITORAL, DENUNCIA, IRREGULARIDADE, PRIVATIZAÇÃO, LUCRO, BANCOS.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores: recentemente, pedi a inclusão nos Anais do Senado Federal de alguns textos que elaborei em meados da década de 90 e que acabaram servindo quase sempre como base para pronunciamentos que fiz na Tribuna do Senado Federal ou que acabaram sendo publicados, como artigos, em jornais de circulação. Pedi a inclusão nos anais dessas reflexões - distribuídas em dez textos - porque, ao relê-las, notei que todas tratavam de temas sociais ainda hoje candentes. O que eu posso dizer é que, de uma maneira geral, o Brasil pouco avançou nos últimos cinco ou dez anos, em especial no campo social.

Analisando aqueles antigos textos percebi que vários deles tratavam de um tema que tem sido central na minha atividade política: o combate sem tréguas à corrupção.

Num desses trabalhos escrevi: "decomposição, devassidão, perversão, depravação, putrefação. Palavras comuns, não apenas em suas rimas, mas, principalmente, na repugnância de seus significados. Quem corrompe, decompõe, devassa, perverte, deprava. E, quem é corrompido é pervertido, depravado, estragado, podre. Não me inspiro na insistência do noticiário sobre a malversação de recursos públicos com o custo de oportunidade da miséria, da fome, da doença e do analfabetismo de milhões de brasileiros". Mantenho a assertiva.

A corrupção, julgo eu, é fonte original de muitas das mazelas brasileiras. É a responsável direta - por exemplo - pelas filas dos hospitais, pelo desemprego, pela fome e pela miséria. Se os recursos públicos não fossem drenados pela corrupção avançaríamos bem mais rápido no campo social. Por isso, sempre julguei que era preciso dar prioridade às ações de Estado que tinham como objetivo combater a corrupção. "Trata-se de uma missão que deve ser incorporada por todos aqueles que se dizem cristãos ou que se manifestaram como tal para galgar postos de comando político", escrevi em um daqueles textos.

Também lamentei nesses textos, como o fiz inúmeras vezes da Tribuna, a extinção da Comissão Especial de Investigação - CEI, que deveria investigar atos de corrupção na Administração Pública. Essa comissão foi criada pelo ex-Presidente Itamar Franco, tão logo por mim proposta, e fulminada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, já no 19º dia de seu mandato.

Em trabalho que elaborei sobre o financiamento das campanhas eleitorais brasileiras afirmei que "na verdade, o que se percebe é que as sucessivas mudanças na lei eleitoral facilitam a adaptação dos interesses momentâneos às pressões exercidas pelo poder econômico". Essa anomalia se mantém até hoje. A prática política nacional tem mostrado que financiar campanhas políticas tornou-se um grande "negócio", nos dias atuais. "É negócio pautado por contratos, ainda que informais e que chegam a movimentar cifras das mais significativas, a ponto de já se tornar hábito relacioná-las, percentualmente, com o próprio Produto Interno Bruto do País".

As CPIs Collor/PC e do Orçamento mostraram ao País "como se materializam os financiamentos de campanha e das relações promíscuas que ocorrem entre doadores e tomadores após as cerimônias de posse. Não é à toa que as leis eleitorais parecem propiciar maiores dificuldades a quem procura obedecê-las do que punição a quem não as cumpre".

Reuni, agora, neste bloco, dez trabalhos que têm como principio o combate à corrupção. Mas trato também neles do lucro exorbitante dos bancos, que continua a crescer ainda no ano 2003; da privatização indevida da Companhia Vale do Rio Doce e outros temas correlatos. Esses são os textos que gostaria de ver registrados nos Anais da Casa.

            Origens da Corrupção

Quem diria, o primeiro ato de corrupção virou notícia já no terceiro capítulo do Livro Gênesis, exatamente o que revela a criação do universo e, conseqüentemente, do homem. Isso significa que os seres humanos mantiveram-se incorruptíveis por, apenas, dois capítulos da Bíblia Sagrada. Não fossem os encantos da serpente maligna, estaríamos todos, hoje, no pleno gozo do paraíso. E, quem sabe, a Bíblia se circunscreveria ao capítulo II, o que não seria nada desagradável, pois ali se trata do paraíso terrestre e, como se algo ainda faltasse, da criação da mulher.

Não sei em que parte desse paraíso estaríamos hoje. Quem sabe, numa destas ilhas paradisíacas ao som de "O Thaiti é aqui". Todos, incluindo os milhões de brasileiros que não conseguem mais o pão, nem com o suor dos próprios rostos.

Como se vê, muito pouco tempo depois de sua criação, o homem não se contentava mais nem mesmo com o paraíso criado por Deus. E, depois de um longo, tumultuado e velho testamento, Ele, em sua infinita bondade, houve por bem enviar à Terra o seu único Filho, para pregar o amor, a paz, a união entre os povos, os princípios éticos, a liberdade, a igualdade, a fraternidade a decência e a probidade. Pois é, venderam-No por trinta dinheiros.

Deus fez o homem à sua imagem e, parece, nem todos se mantiveram à sua semelhança. Por isso, combater a corrupção significa resgatar, no homem, a concepção que Deus fez dele. A luta contra a corrupção é, portanto, um sacerdócio.

A corrupção é o grito de dor nas filas dos hospitais. É a escuridão do analfabetismo. É o desemprego, a fome e a miséria. Como contraponto, combatê-la se torna, portanto, algo como contribuir no resgate do projeto divino de construção do paraíso.

É por essa razão que não me cabe implorar prioridade para as ações que encarnem o objetivo de combater a corrupção. Trata-se de uma missão que deve ser incorporada por todos aqueles que agora se dizem cristãos ou que se manifestaram como tal para galgar postos de comando político.

É bem verdade que as orações de combate à corrupção têm sido, ultimamente, pouco comunitárias. E são poucos os "sacerdotes"que ainda inspiram fé. Não é à toa que se baixam, tanto e cada vez mais, os olhos, quando os jornais estampam os gráficos com índices de popularidade. É o povo que não se contenta mais em responder unicamente amém.

De minha parte, jamais economizei orações. Aliás, tenho sido, talvez, dos oradores que mais ocuparam as tribunas para conclamar o combate à corrupção. E o coral do povo tem sempre me acompanhado, em uníssono.

Creio, firmemente, que ainda é possível estancar esse tumor mal curetado que teima em minar as resistências da alma brasileira. E tal operação exige a assepsia de homens que se inspiram na imagem do Criador: devem ser probos, íntegros, livres de qualquer má suspeição. Essa é, a propósito, a imagem que inspirou o Presidente Itamar Franco, ao instituir a Comissão Especial de Investigação(CEI). Queria ele que a CEI fosse totalmente isenta, no sentido de investigar todas as denúncias de corrupção que teimava em manter-se corroendo as entranhas da dignidade nacional.

A CEI revolveu inúmeros pecados mortais cometidos pela Administração Pública. Mas, essa mesma Administração teve poder suficiente para transformá-los, no máximo, em veniais. Mais do que isso: proclamou o auto-perdão, sem qualquer penitência.

A extinção da CEI se constituiu em um dos primeiros atos do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Não tenho o poder de adjetivar esse pecado da assessoria do Sr. Presidente. Curvo-me, entretanto, à grandeza do arrependimento e do perdão. A CEI pode ser recriada. Sustentação institucional não lhe faltará. O Projeto de Lei autorizativo, de minha autoria, já tramita na Câmara dos Deputados, após aprovação consagradora pelo Senado Federal.

Há tempo e condições, portanto, do Sr. Presidente sanar esse erro que acredito ser fruto de má assessoria. Afinal, serpentes também crescem e se multiplicam.

            Os muitos nomes da corrupção

Decomposição, devassidão, perversão, depravação, putrefação. Palavras comuns, não apenas em suas rimas, mas, principalmente, na repugnância de seus significados. Quem corrompe, decompõe, devassa, perverte, deprava. E, quem é corrompido é pervertido, depravado, estragado, podre. Não me inspiro na insistência do noticiário sobre a malversação de recursos públicos com o custo de oportunidade da miséria, da fome, da doença e do analfabetismo de milhões de brasileiros.

Na verdade, estes são, exatamente, os termos utilizados pelo Mestre Aurélio Buarque de Holanda para definir corrupção, corruptor e corrupto. Do Latim, corruptione, corruptore, corruptu. Portanto, pode-se afirmar que, para se investigar, por completo, a perversão ou a depravação no uso dos recursos públicos, há que se examinar não apenas os pervertidos ou os podres. Há que se diligenciar, também, sobre quem deprava ou putrefaz.

Podem parecer palavras, exageradamente, fortes, mas elas carregam o tamanho da indignação popular frente à malversação de recursos públicos, crime que, infelizmente, não tem passado pelas páginas policiais, mas que tem ocupado os espaços mais privilegiados das manchetes dos jornais. Aos olhos da população, não há diferença significativa entre corruptor e corrupto: para ela, ambos são devassos, depravados e podres.

A corrupção se fundamenta em relações pessoais. Por isto, ela contamina. E, no caso, é a população que exige dos governos o uso de preservativos. Porque a população sabe que a corrupção é um mal que já causou efeitos colaterais em 30 milhões de brasileiros que sobrevivem abaixo dos limites da pobreza.

O Sr. Murilo Mendes, presidente da Construtora Mendes Júnior, em entrevista à revista Istoé, de 14.02.96, afirmou que as propinas podem chegar a 20% do faturamento das empresas. Isto significa que um em cada cinco reais gastos em obras públicas se perdem pelos ralos da corrupção, enquanto um em cada cinco brasileiros vive na pobreza e morre de miséria.

Esta contaminação também tem os seus carnavais, e se utiliza de fantasias como os orçamentos públicos, as concorrências, as licitações, as tomadas de preços, que, contraditoriamente, cometem a imoralidade de esconder o essencial.

Como um mal que corrói as estruturas e mina as resistências, a corrupção não pode ser tratada como se fosse, apenas, febre passageira. Há que se atacá-la em suas causas. E, há que se encontrar antídoto que impeça a sua proliferação.

Em, pelo menos, três momentos, a população brasileira encheu-se de esperança de que a corrupção teria suas raízes abaladas. O primeiro se deu com a CPI Collor/PC. A CPI não apenas "isolou o vírus" da corrupção, ela cuidou, também, de afastá-lo. Entretanto, enquanto "prontuário", o Relatório Final da CPI Collor/PC mostrou-se incompleto e parcial. Outros elementos de investigação deveriam ser incluídos no trabalho. Não se tocou, como deveria, na questão dos corruptores que, certos da impunidade, mantiveram sua ação contaminadora.

A CPI do Orçamento constitui o segundo momento. De repente, percebeu-se que o próprio ambiente onde se investigava atos de corrupção, também se achava contaminado. Promovida a "auto-curetagem" com a cassação e o afastamento de parlamentares, parecia estar, ali, a oportunidade de revelar à população as verdadeiras dimensões da corrupção no País. Mas, se percebeu, também ali, que a corrupção tem fortes "autodefesas" e que não poderiam ser transpostas no tempo estipulado para a execução dos trabalhos da CPI. A opção foi a de "purificar" o ambiente e partir, então, para uma investigação profunda sobre os agentes corruptores.

O terceiro momento se caracterizou com a criação, pelo então Presidente Itamar Franco, da Comissão Especial de Investigação - CEI. Constituída por cidadãos brasileiros de reconhecida probidade e competência, a Comissão produziu extensa documentação sobre denúncias de desvios de recursos e de dilapidação do patrimônio público no Brasil.

Portanto, já se constituem suficientes todos os elementos introdutórios à instalação da CPI dos Corruptores. Na CPI do Orçamento, inclusive, foi aprovado Requerimento, de minha autoria, que recomenda a criação da nova Comissão.

Mas o título idealizado para a nova CPI, o de investigar "agentes corruptores" não poderia ser mais apropriado. Os fatos não só reforçaram a robustez das tais "autodefesas" da corrupção, como explicitaram o quanto são, igualmente, vigorosos os seus agentes. Na Câmara dos Deputados, a CPI foi bombardeada com a negativa ou a retirada de assinaturas. No Senado Federal, apesar das 30 assinaturas de Senadores apostas ao meu Requerimento, a Comissão foi minada pela não indicação de integrantes pelos Senhores Líderes do PFL e do PSDB.

Apesar do entendimento de que tal lacuna poderia ter sido preenchida pelo Senhor Presidente do Senado, recorrendo-se ao Regimento Comum do Congresso Nacional, a CPI foi extinta, formalmente, em 15.12.95, sem, ao menos, ser instalada.

Não foi diferente o destino da Comissão Especial de Investigação do Governo Federal, fulminada pelo Decreto nº 1.376, de 19 de janeiro de 1995, um dos primeiros atos do atual Presidente da República, que, além de extingui-la, transferiu o seu acervo documental para o Ministério da Justiça e determinou que os procedimentos e investigações sobre atos e fatos ali expostos se constituíssem de responsabilidade de um órgão subalterno do Ministério da Fazenda. Tal documentação jaz em alguma prateleira, fria e escura, da Esplanada dos Ministérios.

Portanto, não são fatos novos, nem a corrupção, nem as boas intenções de investigá-la. Mas não se pode negar que são, cada vez mais, fortes as barreiras contrárias à descoberta de antídotos que permitam extirpá-la.

De nada adianta o discurso de que a corrupção não é, apenas, febre, se, na prática, ela é tratada como meros soluços. E, no caso, não parece suficiente a sabedoria popular de que soluços se curam com água fria ou com sustos. Porque há que se banir a possibilidade de um "susto institucional", pois, aí, poderá não haver água fria o bastante para impedir uma possível ebulição. Nem antídoto suficiente para evitar a devassidão. Sinônimo de corrupção. E de podridão.

            Economês, dialeto indecifrável para os mortais

A recorrência de fatos ligados à economia brasileira tem me colocado, nos últimos tempos, em contato mais constante com os economistas. Em primeiro lugar, confesso a minha dificuldade em termos lingüísticos. Parece-me que eles falam uma espécie de esperanto: mistura da língua de suas respectivas origens, do inglês e de um dialeto indecifrável para os mortais. Tudo indica ser o tal do economês. São evasivos. Se questionados, recorrem ao "de um lado, isto; do outro, aquilo".

Embora sonho da maioria, alguns poucos buscam especialização em grandes universidades fora do País. Preferem Harvard, Vanderbilt ou Manchester. Por isso, estabelecem, com seus pares, um verdadeiro apartheid curricular. Durante anos, os países menos desenvolvidos exportaram suas melhores cabeças para cursos de mestrado e de doutorado no exterior, normalmente com bolsas de estudos e passagens aéreas pagas com dinheiro público. Afinal, era o próprio País investindo na sua inteligência.

Intriga-me como este conhecimento de primeiro mundo é repassado para a realidade dos países de origem, quando do retorno destes novos mestres e doutores. Se o País é extremamente pobre, devem estar, hoje, em desvio de função. Ou, quem sabe, lecionando em alguma faculdade de ciências econômicas local, alimentando novos sonhos de partida. Se são de países em desenvolvimento, as disparidades regionais e pessoais de renda propiciam-lhes campo fértil de atuação exatamente como economistas: ali encontram realidades próximas às de primeiro mundo, cujas elites não são, significativamente, diferentes.

Neste último caso, trabalham, normalmente, para os respectivos governos. Fazem parte das chamadas "equipes econômicas". Aqueles que dominam com maior fluência o economês, vão para os respectivos bancos centrais. Afinal, lá, na maioria das vezes, exige-se que eles se comuniquem, apenas, entre si.

Nada é culpa do acaso. A geração de novos economistas plantados em postos chaves dos governos de países em desenvolvimento foi, cuidadosamente, preparada no chamado primeiro mundo. Lá se produziu o receituário. Lá se aprendeu o economês. Não é à toa que, independente do país e das diferenças locais, as chamadas "medidas econômicas", adotadas por suas respectivas equipes econômicas, são semelhantes. E tomem "globalização", "desindexação", "privatização", "flexibilização", "âncora cambial", "desaquecimento", "bolhas de consumo". Aqui, ou na Argentina, no México, no Paraguai, na Venezuela, na Colômbia, no Peru... Tudo isto, com seus respectivos trade-offs, discutidos, exaustivamente, em "proveitosos" brain stormings.

Não se trata, apenas, de uma questão de linguagem. O primordial é o conteúdo. E, para que ele seja assimilado, quase que compulsoriamente, pelos países em desenvolvimento, tornaram-se desnecessárias as desgastantes e pesadas pastas dos representantes de agentes financeiros internacionais sediados no primeiro mundo, a bisbilhotarem nossas contas e a nos ditarem normas e procedimentos. Basta implantá-lo na inteligência de nossas melhores cabeças. Portanto, também não é à toa que foram, exatamente, essas melhores cabeças as escolhidas para se aperfeiçoarem nas grandes universidades do primeiro mundo.

Não importa se estes países possuem situações próximas às de Botswana, se é possível "globalizar" interesses de cidadãos que se aproximam da realidade da Suíça. É por isto que se salvam os bancos, mesmo que em detrimento da fome, da pobreza e da miséria de milhões. Tudo em nome da "credibilidade do sistema financeiro". Tudo em defesa da integridade do sistema capitalista. Pode-se manter, como tal, as "botswanas", para que vivam as "suíças". Tudo em nome da chamada "globalização".

Não creio ser necessário aprender o economês para entender os economistas. Acho, ao contrário, que os economistas deveriam ter maior sensibilidade política para traduzir, na prática, o economês. E isto significa dizer que a língua mais apropriada para expressar a realidade de cada um desses países é, com certeza, a língua pátria.

            A essência das contrapartidas

"A Organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição". O texto é da Constituição de Brasileira em seu artigo 18. A intervenção da União em assuntos político-administrativos dos Estados e do Distrito Federal é, a não ser em casos especiais, quando de possíveis riscos à integridade nacional ou quando as próprias unidades da federação descumprem determinações constitucionais.

A autonomia dos Estados enseja-lhe a adoção de um planejamento de modelo clássico, onde a primeira e a mais importante etapa é o conhecimento de sua própria realidade, a partir do qual se diferem os objetivos, as estratégias, as ações e os mecanismos de controle e de avaliação.

Mas, o que se observar, principalmente nas duas últimas décadas, foi a total inviabilidade deste modelo de planejamento. A falta de recursos estaduais impossibilitou o financiamento das ações propostas, por melhores que fossem os objetivos. O chamado "planejamento participativo" surgiu, então, como uma solução caseira para mobilizar recursos latentes dos próprios Estados. Escudado na proposta de democratização da ação pública, o planejamento participativo procurou a mobilização das comunidades diretamente envolvidas. Sem descurar a importância, em termos políticos, desta mobilização e as honrosas exceções em níveis locais, mais uma vez a falta de financiamento transformou este novo modelo de planejamento em peças de retórica.

A busca de alternativas de financiamento fora de âmbito dos estados, principalmente através de agências internacionais deu contornos ao que se convencionou chamar "planejamento para a negociação". São desta época as c caudalosas "missões" do Bird, do BID, como versões menores do FMI, a bisbilhotar números e a ditar regras e a mobilizar equipes estaduais de planejamento. Surgiram, então, os programas de cidades médias, entre outros. Ocorre que esses agentes internacionais, se propunham financiar apenas ações típicas de investimentos, em contrapartida à alocação de recursos estaduais para custeio. Mais uma vez o estrangulamento do orçamento estadual inviabilizou estes programas. Ou nos casos em implementação os investimentos foram, efetivamente, realizados, as ações se restringiram, quase sempre, ao período formal dos programas.

Não é a toa que, ainda hoje, não são raros os equipamentos ligados à educação, à saúde, ao armazenamento de produtos agrícolas, financiados com recursos externos e fechados por falta de recursos de manutenção.

Pior ainda, diferente do planejamento clássico pressupõe autonomia para implantar ações mais condizentes com a realidade local, o "planejamento para negociação" retirar dos Estados a sua capacidade de elaborar os seus próprios diagnósticos. A realidade a ser transformada não era mais aquela que o planejamento estadual apontava como a mais emergente, mas aquele que melhor se adaptava aos exógenos. E o planejador em nível estadual se comportava assim como o médico que, mesmo sabedor do diagnóstico que atestava, por exemplo, problemas intestinais em seu cliente, receitava-lhe remédios cuja terapêutica indicava dores de cabeça ou no máximo, problemas dermatológicos. Tudo porque era esse o único remédio à disposição nas "farmácias do BIRD e do BID. Não tão raros, pôr exemplo, programas para pequenos produtores rurais, em regiões típicas de latifúndio.

Como se sabe, além de não receberem os recursos esperados e de não assistirem às transformações desejadas, os Estados se obrigaram a investir seus próprios recursos escassos para o pagamento de "taxas de comportamento", calculadas, ironicamente, sobre os valores disponíveis para o financiamento e não utilizadas por falta de contrapartida ou, simplesmente pela impossibilidade de realizar as ações propostas, muitas vezes frutos de verdadeiras traduções de manuais dos tais organizarmos de financiamento.

Mas, até aqui, ainda não se discutiu, em profundidade a questão mais crucial da negociação nos termos aqui expostos: a essência das contrapartidas, ou seja, o que se coloca por trás das exigências de quem financia. No caso dos organismos financeiros internacionais, seria inocência imaginar que a seleção de regiões, de ações e de estratégias ocorrem ao saber do acaso. Os interesses que envolveram tais financiamentos compõem uma história ainda pouco exploradora.

Pouco se fala, hoje, sobre FMI ou BID. Os jornais têm publicado inclusive, que sobram recursos nas carteiras de financiamento destes organismos. Atribuiu-se ao fato exatamente a incapacidade dos Estados financiarem novos custeios. Mas, os Estados continuam negociando recursos.

Os jornais dão conta da negociação dos Estados com a Caixa Econômica Federal que atinge uma cifra aproximada de U$1 bilhão. O que chama a atenção mais uma vez, não são os valores, dos respectivos financiamentos nem as cláusulas de garantias neles embutidas, mas as "obrigações adicionais", exigidas como contrapartida. Demissão de funcionários, proibição de novas contratações, privatização de bancos estaduais de outras empresas estatais são algumas destas "obrigações", cujas listagens atingem 28 itens em Santa Catarina, 44 no Rio de Janeiro, 44 em Minas Gerais, 47 no Rio Grande do Sul, e assim por diante.

O endividamento não parece ser o melhor modelo de planejamento estadual. Além da necessidade de saber quais os remédios disponíveis, antes da elaboração do diagnóstico, exige-se agora e a priori, que o paciente se comprometa a se tornar doador de órgãos.

Espera-se que o Governo Federal não encaminhe ao Congresso Nacional proposta de emenda Constitucional que suprima a expressão "todos autônomos" do artigo 18 da Constituição Brasileira.

            A "reciprocidade" nas campanhas políticas

É tema recorrente na mídia, principalmente nos períodos eleitorais, a discussão que envolve as formas de financiamento das campanhas políticas. Enganam-se aqueles que imaginam ter o País uma lei eleitoral estruturada capaz de ditar as normas para as eleições em seus diferentes níveis e propiciar uma visão de futuro que exceda, simplesmente, os períodos correspondentes aos respectivos mandatos.

Ao contrário, a cada momento que antecede as disputas eleitorais, evidencia-se um verdadeiro alvoroço em torno de mudanças na lei que regerá o próximo pleito. O discurso explícito procura transmitir a esperança de uma maior transparência e de um maior rigor na apuração dos gastos de campanha, quanto às suas origens e ao montante de recursos efetivamente envolvidos.

Na verdade, o que se coloca, no discurso político e nas expectativas da população, é a própria legitimidade dos seus representantes na formulação das leis que constróem a história do país, na tentativa de aperfeiçoar, cada vez mais, o sistema de representação no processo democrático.

Entretanto, a própria prática tem mantido distância do discurso político. Na verdade, o que se percebe é que as sucessivas mudanças na lei eleitoral facilitam a adaptação dos interesses momentâneos às pressões exercidas pelo poder econômico.

E, é essa mesma prática que tem mostrado que financiar campanhas políticas tornou-se um grande negócio, nos dias atuais. Negócio pautado por contratos, ainda que informais e que chegam a movimentar cifras das mais significativas, a ponto de já se tornar hábito relacioná-las, percentualmente, com o próprio Produto Interno Bruto do País.

As CPIs Collor/PC e a do Orçamento são o retrato mais recente de como se materializam os financiamentos de campanha e das relações promíscuas que ocorrem entre doadores e tomadores após as cerimônias de posse. Não é à toa que as leis eleitorais parecem propiciar maiores dificuldades a quem procura obedecê-las do que punição a quem não as cumpre. É por isso que as informações oficiais sobre cada uma das eleições não passam, efetivamente, de um exercício de ficção.

É bem verdade, também, que essa não é uma marca que se registra unicamente no Brasil. Já no relatório final da CPI Collor/PC há informações de que na França, por exemplo, os recursos despendidos nas campanhas políticas possuem o traço da velocidade. Lá, os gastos com as campanhas presidenciais em 1974, 1981 e 1988 subiram os degraus de 40, 150 e 260 milhões de francos, respectivamente. E, foi a partir deste diagnóstico que o parlamento francês adotou, em dezembro de 1994, medidas radicais que proíbem doações de pessoas jurídicas a candidatos e partidos políticos.

O mesmo relatório mostra que, aqui, a ordem de grandeza dos números também exige maior reflexão. Em 1990, pelo menos 80 parlamentares eleitos para a Câmara Federal gastaram, cada um, mais de um milhão de dólares. Em 1992, nas eleições municipais das grandes cidades, estimava-se que o custo de campanha para as prefeituras atingiu os US$ 20 milhões e a média de gastos para eleger cada vereador não foi inferior a US$ 100 mil. Se esses dados espelham a verdade, não há como acreditar nos dados oficiais da última campanha presidencial, que demonstram gastos totais, de todos os candidatos, da ordem de US$ 51 milhões. Por tudo isso é que o capítulo dedicado ao financiamento de campanhas, tornado público naquele histórico dia da leitura do relatório da CPI, principalmente pelo contexto ao qual ele se inseria, não mereceu, da população, a devida atenção.

Se os quantitativos veiculados pela imprensa são, no mínimo, duvidosos, por não espelharem a realidade, a questão se torna mais dramática quando se conhece as formas de atuação dos verdadeiros doadores de campanha e o que eles exigem, em troca. A Folha de S.Paulo, na edição de 08 de outubro último, sob o título "Folha revela como empreiteiras e bancos financiam o jogo eleitoral", explicita a promiscuidade que marca as ligações entre os financiamentos de campanha e a alocação de dinheiro público, via orçamento, rubricada exatamente pelos respectivos tomadores de tais recursos privados. Nunca é demais notar que o quadro ali divulgado é povoado por boa parte das empresas que, segundo investigações da CPI Collor/PC, contrataram assessoria fictícia do Sr. Paulo Cézar Cavalcanti Farias no período anterior ao impeachment do Sr. Fernando Collor. Até mesmo o então presidente, em sua defesa, alegou tratar-se de "doações de campanha".

Embora "doar" signifique transferir "gratuitamente" e "generosamente" a outra pessoa a propriedade de um bem, na prática essas contribuições constituem algo mais que doações generosas: são verdadeiros investimentos, cujo retorno é a inserção de emendas no orçamento da União, de interesse dos "doadores". A mesma Folha de S.Paulo revela que, nas últimas eleições, o cruzamento de informações sobre contribuições de campanha com os dados da Comissão Mista de Orçamento demonstra que as doações feitas a determinados parlamentares foram retribuídas pela apresentação de emendas para obras de interesse das empreiteiras. Isso sem contar a questão do superfaturamento das obras públicas. O Banco Mundial estima que, no Brasil, estas obras chegam a custar o dobro daquelas realizadas em outros países. Também não é à toa que o Brasil foi considerado, recentemente, o quinto país onde se pratica mais corrupção, numa lista de 41.

Doação significa, pois, bem mais que "generosidade". Significa obter créditos futuros junto àqueles a quem se doou. A "doação generosa", muito bem caracterizada por Marcel Mauss, em seu clássico "Ensaio sobre a Dádiva" impõe uma reciprocidade entre "dar", "receber" e "retribuir". Impõe obrigações múltiplas entre os parceiros envolvidos. Favores passados ou por vir fazem parte deste intrincado jogo do poder onde as eleições, muitas vezes, constituem-se no primeiro passo da caminhada rumo à corrupção. Favores outros como preenchimento de cargos públicos, aprovação de projetos de lei transformando interesses individuais em coletivos, são outros compromissos, obrigações que a reciprocidade impõe.

Embora o ideal e eticamente mais correto fosse que as doações ocorressem a partir de uma identidade de idéias, de defesa de princípios e de um programa a ser desenvolvido, a prática mostra que elas se constituem em um verdadeiro negócio, onde o poder econômico oferta e recebe, como troca, o passaporte para grandes investimentos.

Não há, portanto, como negar que é necessário encontrar mecanismos que permitam que o financiamento de campanhas políticas deixe de ser uma das formas mais perversas de corrupção, ao condicionar o resultado das eleições ao uso e ao abuso das estruturas de poder econômico, o que leva à descaracterização da legitimidade das disputas eleitorais e à distorção da representação política no processo democrático.

O que não se admite é o silêncio com odor de cumplicidade. É necessário repensar o uso do verbo "negociar", tão em voga nos últimos tempos, em substituição ao de "discutir", especialmente no Congresso Nacional. O próprio Congresso tem a sua "obra inacabada", ao silenciar sobre a continuidade das investigações sobre os "agentes corruptores". Ainda bem que, pelo menos, a obra divina não é inacabada. Se o fosse, não existiriam os homens...

            Mau uso de dinheiro público

De pouco adianta o controle remoto da televisão. Do primeiro ao último canal, o tema é recorrente no noticiário do horário nobre: o mau uso do dinheiro público, justificado pelos restos de campanha, pela proximidade do poder ou, até, pela "ajuda de Deus".

Creio não ser essencial, no tratamento do tema, citar nomes, mesmo que eles tenham povoado a imprensa nos últimos tempos. Não que eu queira esquecer os escândalos recentes, omitindo os nomes dos inesquecíveis Paulo César, comandante Bandeira ou o outro Fernando. Não quero e não devo cercar-me do varejo, emendado pelos anões do orçamento, ou me afogar nos cheques-fantasmas da Rosinete.

São três as razões que me levam a não especificar casos como os do bingo paulista ou do jogo-do-bicho carioca. Em primeiro lugar, porque não tenho o monopólio da página deste jornal para listar tantos nomes e tantos fatos. Em segundo lugar, porque, por ser tão repetitivo, o assunto poderia suscitar bocejos ali pelo oitavo nome ou décimo caso. Em terceiro lugar, porque não devo persistir no erro de considerar cada caso ou nome como um fato isolado. Este, inclusive, parece ter sido o grande equívoco(ou, quem sabe, a grande estratégia) nas investigações sobre malversação de recursos públicos no Brasil: considerar que a cassação ou, mesmo, a cômoda renúncia do "anão" ou a exoneração do funcionário público alcançassem a plena magnitude do problema.

Não se quer menosprezar a importância dos frutos de tais investigações. Nem das milhares de folhas de documentos compulsados durante os trabalhos das comissões de inquérito. Mas, não se pode negar que pouco ou nada se conheceu, até aqui, sobre as verdadeiras raízes da corrupção no Brasil.

Esse parece ser, hoje, o tema central de discussão nacional. Há, inclusive, uma contradição evidente quando se debruça sobre questão de tamanha relevância: enquanto os jornais parecem repetitivos nas manchetes diárias sobre o mau uso do dinheiro público, é escassa a bibliografia capaz de aprofundar a análise compreensiva sobre o assunto. Basta recorrer às pesquisas bibliográficas para perceber que esse não é um tema prioritário para autores e editoras, nem mesmo para traduções sobre estudos de casos considerados, mundialmente, emblemáticos. Como as editoras, certamente, baseiam suas decisões sobre novos lançamentos em pesquisas de mercado, tudo indica que o frenesi das manchetes de primeira página não chega a despertar a necessidade de um conhecimento mais aprofundado da população sobre o tema, pelo menos daquela que, ainda, adquire livros.

O que parece difícil negar é que a corrupção se institucionaliza, cada vez mais, no aparelho do Estado, apesar das boas intenções deste ou daquele governante ou da sucessão de CPIs. Mais, e pior: a repetição de casos de corrupção sem se aprofundar nas suas verdadeiras causas e sem propor medidas mais severas de combate e punição às práticas corruptas parece ter incutido na população um sentimento de impotência e uma sensação anestésica, que tende a minar, até, a sua capacidade de indignação e de auto-defesa, como se fosse natural ou normal uma certa dose de corrupção.

Mas, o que, também, ainda não mereceu a devida atenção é a durabilidade do efeito dessa "anestesia" numa população que sofre nas filas de hospitais públicos sem recursos nem mesmo para combater as verdadeiras febres, que chora a morte de milhares de crianças desnutridas e miseráveis, que troca o lápis e o livro didático pelo revólver e pelo Código Penal, que abarrota ruas, praças, pontes, viadutos e celas de carceragem, em um país onde há, cada vez menos, vagas, não só na obra da construção civil ou na capina da roça, mas, também, na sala de aula, na cadeia, na enfermaria ou, até, sob as pontes.

O médico sabe que o controle da febre não cura a doença; o promotor público está consciente de que o maior número de celas não extingue o crime e o arquiteto também reconhece que a solução do problema habitacional não está no alargamento de pontes e calçadas ou na proliferação de viadutos. Assim, também, não se combate a corrupção apenas com o ataque a casos isolados, numa sucessiva numeração de comissões especiais ou de inquérito.

Em primeiro lugar, há que se reconhecer a existência da corrupção e se ter vontade política para combater as suas causas, aniquilando estruturas e redes de relações pessoais que permitem as práticas de corrupção. Em segundo lugar, há que se observar que não há, ainda, democracia na distribuição dos recursos públicos no Brasil. O dinheiro "do povo e para o povo" se submete a um "regime de exceção": continua a ser, em tese, para o povo, mas é, na prática, para poucos. E a razão principal é que os "governos democráticos" se submeteram à "administração autoritária" dos recursos. É por isso, por exemplo, que os recursos públicos que faltam para a educação, a saúde, a segurança e o bem-estar da população foram, aos cântaros, para o sistema financeiro. No caso, a saúde pública, no seu sentido mais amplo, é trocada pela saúde financeira dos bancos, no seu sentido mais estrito.

Independente de governos, o Estado brasileiro encontra-se privatizado. E os governantes passaram a se constituir em administradores de interesses privados. E, o que causa maior apreensão é que, mesmo nos casos em que a corrupção é extirpada, não parece se constituir, na verdade, em defesa dos interesses públicos: trata-se de interesses privados hegemônicos ameaçados por intromissões de grupos exógenos que poderiam atrair a atenção e a ira da opinião pública. Não é à toa que, nas investigações já efetivadas, a figura dos corruptos era mutante, mas se mantinham as mesmas indicações dos agentes corruptores. Também não é por acaso que estes últimos mantêm-se incólumes a qualquer investigação. O próprio Estado cuida de mantê-los longe dos holofotes das inquirições porque, neste momento, eles se confundem: investigá-los significaria escancarar as entranhas do próprio Estado.

É por isso que, repito, procuro não incorrer no erro de, apenas, reavivar, na memória do leitor, certas figuras que foram acometidos pela febre da corrupção e podem, passados os "intervalos antitérmicos" das CPIs, retornar, em temperaturas ainda mais elevadas, corporificados, quem sabe, em outros "comandantes". As "infecções", entretanto, persistem incólumes e perigam tornarem-se "septicemias" de difícil controle. No lugar dos "antitérmicos" há que se prescrever, urgentemente, os melhores "antibióticos"...

            Preservar os avanços da Lei de Licitações

Há vários meses, o titular do Ministério da Administração e Reforma do Estado vem divulgando a intenção governamental de enviar ao Congresso projeto de lei modificando, substancialmente, a atual Lei de Licitações(Lei nº 8.666/93), que, no seu entender, é "a pior lei do mundo". Objetivamente, são apontados como inconvenientes graves dessa lei o aumento do custo das compras e serviços contratados pelo Estado, a formação de cartéis para a cotação de preços muito superiores aos de mercado, a aquisição de bens e serviços de qualidade inferior em face da prevalência do critério de menor preço no julgamento das propostas e cotação de preços altos pelos participantes das licitações em razão da demora do Estado em honrar seus compromissos(Jornal da Tarde de 06-04-96, pág. 6A).

Conheço, nos seus pormenores, a Lei n° 8.666/93, pois fui relator, no Senado Federal, do projeto que lhe deu origem. Apesar do tempo decorrido, ainda lastimo que o Substitutivo que a ele ofereci, então prontamente acolhido pelo mesmo Senado, não tenha merecido idêntico destino na Câmara dos Deputados. Afinal, tratava-se de texto que era fruto de criterioso trabalho de equipe, produzido a partir de valiosos subsídios colhidos em audiências públicas e outros mecanismos de escuta dos meios especializados. Contudo, ainda que persista no entendimento de que o texto de minha autoria tratava mais adequadamente a matéria, jamais endossaria as críticas que o titular do Ministério da Administração vem opondo à Lei de Licitações.

De início, parece-me incorreto atribuir-se à lei o aumento de custos das compras e serviços contratados pelo Estado. Entendo, ao contrário, que uma das virtudes da nova lei é, precisamente, colocar ao alcance do bom gestor mecanismos que impedem contratações a preços superfaturados. Basta verificar que a lei em questão determina que já conste do próprio edital o critério de aceitabilidade dos preços(art. 40, X), o que impõe à Administração a realização de prévia pesquisa de preços.

Além disso, ainda nos termos da mesma lei, cabe à Administração verificar a conformidade de cada proposta com os preços de mercado ou, quando for o caso, fixados por órgão competente, correndo-lhe ainda o dever de desclassificar as propostas desconformes ou incompatíveis com tais preços(art. 43, IV, c/c art. 48, II).

Por aí se vê que só contrata a preço superfaturado aquele que efetivamente o desejar. Tanto isso é verdade que, poucos meses após a promulgação da lei, o então titular do Ministério dos Transportes, segundo foi amplamente noticiado, anunciou a sua intenção de renegociar os preços de boa parte dos contratos então administrados por aquela pasta, ao argumento de que os preços ofertados nas novas licitações haviam caído a quase a metade!

Também inconsistente, a meu ver, é a alegação de que a nova lei propiciaria a formação de "cartéis de fornecedores" a fim de elevar preços. Basta ver que, a par de utilizar os mecanismos referidos no parágrafo anterior, a Administração pode ainda abrir o prazo de oito dias para a apresentação de novas propostas escoimadas dos vícios que motivaram a desclassificação(art. 48, parágrafo único), ou contratar diretamente, atendidas as formalidades legais, quem ofereça preços compatíveis com os praticados no mercado(art. 24, VII).

Também não se sustenta a afirmação de que o Estado é impelido a adquirir bens e serviços de qualidade inferior em razão do julgamento das propostas pelo critério de menor preço. Ora, é óbvio que o objeto da licitação deve ser pormenorizadamente descrito no edital, com especificação não apenas dos requisitos técnicos indispensáveis, mas, principalmente, dos padrões mínimos de qualidade aceitáveis.

O que ocorre, em verdade, são editais lançados, de regra, com descrição deficiente do objeto da licitação, o que deixa a Administração à completa mercê dos caprichos dos licitantes.

O mesmo se diga, por fim, do sobrepreço decorrente da mora da Administração em solver seus compromissos. Além de a causa decorrer exclusivamente do mau funcionamento da Administração, note-se que a lei impõe como condição prévia para a abertura de licitação a existência de previsão orçamentária de recursos suficientes ao adimplemento das obrigações a serem assumidas(art. 7º, § 2º, III e IV), o que significa dizer que, sem recursos, não há sequer como iniciar o procedimento licitatório.

Como se vê, os apontados males da Lei nº 8.666/93 decorrem principalmente dos problemas gerenciais hoje comuns à Administração, que, por não investir no aprimoramento e profissionalização dos recursos humanos necessários, há muito se ressente da falta de bons quadros, notadamente em funções cujas tarefas impõem razoável conhecimento técnico, como é o caso dos procedimentos licitatórios.

Entendo que é preciso a máxima cautela ao pretender introduzir qualquer alteração substancial na nova Lei de Licitações, pois, embora possa apresentar eventuais inconvenientes, contém ela, inegavelmente, valiosos avanços se comparada ao antigo Decreto-lei nº 2.300/86.

Um desses avanços está na livre concorrência instaurada a partir de sua promulgação, especialmente porque não são mais admissíveis exigências descabidas na fase de habilitação dos licitantes, como ocorria com as antigas solicitações de apresentação dos famigerados "atestados de capacidade técnica", objeto de oportuno veto do Presidente Itamar Franco.

Alterá-la impensadamente, da forma e pelos motivos até agora alegados, é sobretudo legitimar novos atentados ao bem público, ressuscitando antigas formas de assalto ao Erário. 

            A morte do homem que sabia demais

Escrevo essas linhas no momento em que ainda pairam sérias dúvidas sobre a autoria do crime que eliminou o mais completo arquivo de informações da história recente da corrupção no País. Sei que, mais horas, menos dias, é possível que o nome do assassino do Sr. P. C. Farias venha a ecoar nas salas de milhões de telespectadores, ávidos por decifrar mais este final infeliz.

Não sabemos quais foram os reais motivos que levaram à consumação do fato mas estou certo que razões haviam para silenciar "o homem que sabia demais". Para muitos, mais importante que o coração emudecido pela bala que atingiu o Sr. P. C., é a sua morte cerebral.

Se por crime passional - o que não acredito - ou por motivo torpe, P.C. é , hoje, um arquivo morto. O silêncio que hoje jaz no Campo das Flores, em Maceió, é o mesmo de inúmeras salas frias, onde descansam em paz não menos volumosas pastas que um dia o pó irá sepultar. São inquéritos cuja causa mortis é, quase sempre, a esclerose múltipla do poder público, debilitado precocemente por esforço repetitivo e que teima em transformar tapetes em tumbas.

As CPI's PC/Collor e do Orçamento cuidaram de levantar as bordas deste tapete como que numa "perícia" do esqueleto da corrupção no Brasil. Através da quebra do sigilo bancário, montou-se o "corruptograma".

Depois de cassado o Presidente, sob a culpa de "mandante", em ato contínuo à posse, o Sr. Itamar Franco criou a Comissão Especial de Investigação para apurar todos os atos lesivos ao Patrimônio e aos recursos públicos. A CEI era composta de cidadãos de ilibada reputação e de reconhecida competência em suas áreas de atuação. Insuspeitos, debruçaram sobre milhares de páginas de documentos, ouviram dezenas de pessoas e produziram análises e recomendações em todos os níveis. Para a CEI, a corrupção jamais poderia ser tratada, apenas, como mais uma página virada.

Não se sabe, ao certo, quem participou das cerimônias póstumas de arquivamento da documentação produzida pela CEI. Sabe-se, apenas, que ela é, hoje, mais um arquivo morto e, até aqui, foram vãs as tentativas de sua exumação. Mais do que isso, não se tem conhecimento exato de onde ela usufrui da desmerecida paz.

Tal e qual o destino da documentação da CEI, em algum lugar do Senado Federal também descansa o acervo consultado e produzido durante as duas CPI's mais importantes instaladas no Congresso Nacional. São informações que propiciaram a decisão histórica do impeachment e a cassação de parlamentares cúmplices nos atos de corrupção no orçamento público. Mas, todas as investigações deram conta de que faltava, ainda, a "CPI dos Mandantes".

Foi exatamente este o espírito que me propiciou energias para a coleta de assinaturas necessárias à instalação da "CPI dos Corruptores". Recomendada por votação unânime e constante do Relatório Final da "CPI do Orçamento", tal CPI se fundamentaria, portanto, em fatos mais do que determinados.

Mas, os mesmos interesses que sepultaram a documentação da CEI e, quem sabe, o Sr. PC Farias, cuidaram de abortar a CPI dos Corruptores. Não foram indicados todos os seus integrantes, isto é, não se desenvolveu por absoluta falta de membros.

Como já disse, ainda não sei quem matou o Sr. PC Farias. Mas sei que sobram motivos para o seu silêncio eterno. Sei, também, que são os mesmos que condenaram os trabalhos da CEI ao esquecimento, que calaram a CPI dos Corruptores e outras investigações sobre fatos cada vez mais recorrentes na mídia.

Mas, eu ainda sei que a impunidade tem como contraponto a indignação. Como na TV, a população brasileira está a exigir, cada vez mais, desfechos e, conseqüentemente, quer decidir sobre os finais. E, como se percebe nas ruas, nas praças e nas esquinas, a população também está consciente de que a corrupção é uma novela cujos capítulos se arrastam repetitivamente e que, portanto, "não vale a pena ver de novo".

            Privatização da Companhia Vale do Rio Doce

O parágrafo primeiro do artigo 13 da Constituição de 1988 dispõe que são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais. No capacete do corredor, na camisa do atleta, na farda do militar e na voz "dos filhos deste solo" está o Brasil, representado nas cores que simbolizam suas maiores riquezas.

Ao longo dos tempos, o País foi incorporando outros emblemas, verdadeiros novos símbolos nacionais que representam a luta, a soberania e a própria história de um povo. São exemplos típicos o Banco do Brasil, a Petrobrás, a Companhia Vale do Rio Doce, cujas bandeiras sempre suscitaram os mais fortes sentimentos de nacionalidade. Mudar estes símbolos requer o envolvimento de toda a população. É por isso que venho defendendo, na tribuna do Senado, a instituição do referendum, fórmula através da qual a sociedade pode externar o seu pensamento naqueles assuntos considerados essenciais.

Este instituto se reforça no regime presidencialista, onde todos os representantes da população são eleitos por prazo determinado, dificultando a explicitação da vontade popular e a conseqüente legitimidade de propostas de ação. O mundo oferece ricos exemplos da prática do referendum. Em passado recente, o Tratado de Maastrich foi amplamente discutido nos países do Mercado Comum Europeu. Na Itália, a questão do aborto mereceu o devido debate com a população, entre outros casos.

Como se sabe, uma das discussões mais importantes que ocorre hoje no País refere-se ao Estado Brasileiro, quanto ao seu papel e ao seu tamanho. O principal marco legal relativo ao tema se consolidou na Lei nº 8.031, que criou o Programa Nacional de Desestatização. Como resultado, foram privatizados os setores siderúrgico, petroquímico e de fertilizantes. Não há como negar que o debate sobre tema de tamanha relevância se circunscreveu aos limites dos gabinetes técnicos. À população coube, apenas, informações muitas vezes maquiadas em peças publicitárias bem produzidas e, nem sempre, pouco tendenciosas.

Passada a primeira etapa das desestatizações, o País se debruça, hoje, sobre uma questão de fundamental importância: a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, a CVRD.

A discussão sobre a proposta de privatização da CVRD não pode ser desviada para aspectos meramente quantitativos, extraídos de indicadores frios e determinados pela tecnocracia. A CVRD, enquanto empresa emblemática, é parte integrante do desenvolvimento do próprio País e, em nome da população, manipula materiais estratégicos para a consolidação de sua soberania. A privatização da CVRD significa, para mim, privatizar o subsolo brasileiro. Significa a forte possibilidade de abrirmos mão de nossas reservas de ferro, ouro, manganês, bauxita, potássio, cobre, caulim, prata, titânio, entre outros metais nobres. Significa, também, interromper programas de desenvolvimento regional e social implementados pela empresa, que aloca parte de seu lucro líquido nas áreas de influência dos municípios onde atua.

É por isso que os números da Vale não se limitam aos seus aspectos puramente quantitativos. São números que assumem dimensões econômica, social e política.

A Vale do Rio Doce é, com certeza, o outro nome do Brasil, pois ela é a guardiã de riquezas nacionais estratégicas das quais as grandes potências são, sensivelmente, carentes. A Vale contabiliza, em nome do povo brasileiro, em toneladas: 41,2 bilhões de minério de ferro; 1,1 bilhão de bauxita; 1,2 bilhão de cobre; 131 milhões de manganês; 65 milhões de caulim; 563 de ouro, fora as descobertas mais recentes, além de enormes reservas de potássio, titânio, nióbio, etc. São 36 empresas controladas ou coligadas, mais as participações minoritárias. Produz quase um terço do minério de ferro do mundo, é a maior produtora de ouro da América Latina, possui duas ferrovias que somam 7% da malha ferroviária do País, mas sobre cujos trilhos são transportados dois terços da carga ferroviária brasileira. Responde por 40% do movimento portuário nacional, os navios da Docenave transportam 30 milhões de toneladas de carga por ano. Suas florestas comerciais se estendem por 560 mil hectares de terras brasileiras. Do outro lado, os Estados Unidos, os países europeus e o Japão são, total ou quase totalmente, dependentes de nióbio, manganês, alumínio, titânio, estanho, cobre, cobalto, cromo, platina, níquel... Deste lado, a Vale (ou o Brasil) ainda não se permitiu conhecer os montantes de suas gigantescas reservas minerais. Sabe-se, entretanto, que somente as reservas de minério de ferro, sob a responsabilidade da Vale do Rio Doce, garantem o consumo, em níveis atuais, até a Copa do Mundo de 2.398.

Fica evidente que a CVRD, apesar destes números grandiosos, não pode ser representada, aos olhos do público, pelo paquiderme que deu publicidade aos leilões de privatização, em período recente. Trata-se de uma empresa lucrativa, estratégica, que alavanca o desenvolvimento regional.

São estas as razões que respaldam a minha postura contrária à privatização da Companhia Vale do Rio Doce, nos termos propostos. Curvo-me, única e exclusivamente, se esta não for a vontade popular. E, é aí que se justifica e se reforça a proposta de consulta ao povo brasileiro. Afinal, privatizar a CVRD sem ouvir a população seria o mesmo que, à sua revelia, trocar o amarelo da bandeira ou suprimir o "gigante pela própria natureza" do hino.

1996 - O ano dos bancos

Para as instituições públicas, parece não existir o cidadão brasileiro na sua inteireza. Ele é o doente para o Ministério e as Secretarias de saúde, o analfabeto para os órgãos encarregados da educação, o desempregado para os responsáveis pelo trabalho, e assim por diante. Para estas instituições, tudo indica que se perdeu a idéia horizontal de cidadão e se assumiu, frente a ele, uma postura vertical, enquanto carente. E, assim, o cidadão, com todos os seus direitos fundamentais, passa a ser o carente de saúde, de educação, de emprego produtivo, de alimentação, de segurança, dependendo do "balcão" onde se identifique.

Com isso, os grandes problemas nacionais passam a ser encarados, também, como fatos isolados e, como tal, questões conjunturais, passíveis de intervenção com o anúncio de novos programas setoriais. E a implantação destes programas, cujos recursos tendem a permanecer, em parcela significativa, na manutenção da própria máquina administrativa, realimentam a postura maquiavélica de dividir o cidadão em supostas diferentes carências.

O que é mais preocupante é que essa postura não se limita aos órgãos que se assumem como setoriais. O planejamento brasileiro, em todos os níveis, tem sido, principalmente nos últimos anos, míope e segmentado. Assim, parece não haver, para o Governo, correlação entre a questão dos sem terra e a crise econômica, as endemias e epidemias e a falta de saneamento básico, a renda familiar e o analfabetismo. Pior ainda, à busca de mais recursos no Planejamento, os órgãos setoriais chegam a disputar os "carentes", porque, aí, antes de serem cidadãos, eles são indicadores estatísticos que justificam maiores fatias do "bolo" orçamentário. E isso alimenta o tal círculo vicioso da setorialização.

Mas, são exatamente os mais recentes dados estatísticos que devem estar preocupando os tomadores de decisão na esfera pública. Porque os números dizem por si mesmos. E porque a crise econômica aguça, nas pessoas, a sua percepção enquanto cidadãos, isto é, elas passam a sentir-se em uma dimensão mais compreensiva e, principalmente, mais coletiva.

É por isso que os governos não podem insistir na contra-mão da história, sob pena de serem abalroados pelos números que a ilustram. O país mudou de pista e os governos teimam em manter-se, apenas, nos desvios.

São milhões de desempregados, vítimas de uma crise ainda mal dimensionada. São quase quarenta milhões de brasileiros que não comem, não se vestem e nem moram adequadamente, quase a metade deles miseráveis, que não têm nem mesmo o que comer, vestem-se de trapos e vivem ao desabrigo das pontes.

Aliás, parece não haver mais espaço suficiente, nem mesmo sob as pontes e os viadutos. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, elaborada pelo IBGE, em 1993, e somente agora divulgada, merecem reflexão.

Nos três anos que separam esta pesquisa da anterior (1990), quase 4,5 milhões de pessoas se somaram à categoria dos "ocupados", mais de 90% deles na agricultura. Isso significa uma reversão na tendência observada em quase meio século de história do País.

Até o início desta década, as luzes da cidade atraíam. Hoje, elas andam assim como na penumbra. Portanto, se há quase 17 milhões de famintos (e outros tantos mal alimentados), se há escassez de alimentos, se o País ostenta a dádiva de possuir todos os microclimas do planeta, se as migrações internas se revertem no sentido urbano-rural, se a cultura originária da população brasileira é rural e se o desemprego é o grande fantasma que ronda quase todos os lares brasileiros, não seria lógico que a maior parcela dos recursos públicos disponíveis fossem carreados para o incentivo à produção agrícola?

Segundo a mesma PNAD, quase a metade da população que retornou para o campo encontra-se na categoria dos "não-remunerados", o que é reforçado pela diminuição do número de "assalariados rurais". Isso significa que, aproximadamente, dois milhões de trabalhadores ou se transformaram em "unidades familiares de produção", à espera de uma melhor alternativa, ou trocaram as pontes e os viadutos pelas margens das estradas. Isso também não justificaria priorizar recursos para a agricultura?

Tudo indica que a destruição de empregos urbanos está ligada a causas estruturais, diferentemente de outros períodos anteriores de crise, caracterizados por desempregos cíclicos. Ainda isso não instigaria o governo federal a colocar a agricultura como prioridade nacional?

Não parece, a não ser no discurso. "1996 é o ano da agricultura" foi a manchete dos jornais de 23 de fevereiro último, baseada no programa "Palavra do Presidente" do dia anterior. Pois bem, o "ano da agricultura" chega ao final com uma safra de grãos quase 10% menor do que a do período anterior, com um decréscimo de área cultivada de 4% em relação ao último ano agrícola e uma queda de produtividade em torno de 2,5%.

É inacreditável e, até, inconcebível que o "país de todos os microclimas", importe, no seu "ano da agricultura", arroz, feijão, milho, trigo e outros alimentos básicos. Pior: em 1989, ano anterior ao penúltimo levantamento da PNAD, a área agrícola cultivada no Brasil era da ordem de 54,8 milhões de hectares. Em 1993, quando da última pesquisa, esse número caiu para 45,2 milhões. Portanto, no mesmo período em que quatro milhões de trabalhadores brasileiros procuravam novas ocupações no campo, enxotados pelo desemprego nas cidades, a área cultivada decresceu quase dez milhões de hectares. Trata-se, portanto, de uma relação inversa e perversa.

O erro talvez esteja nas manchetes dos jornais. O melhor título deveria ser "1996 é o ano dos bancos". Ou, quem sabe, no significado da sigla. O PROER não é o Programa de Recuperação Organizada da Economia Rural. Mesmo porque, se o fosse, não seriam liberados, até aqui, os R$ 13,3 bilhões para recuperar a agricultura brasileira. E, se isso ocorresse, seriam utilizados todos os meios de comunicação para dar retumbância ao fato, obviamente, em horário fora da calada de uma noite de sexta-feira.

Pelo visto, o produtor rural brasileiro continuará a ser, ainda por muito tempo, o carente de saúde para o Ministério da Saúde, o carente de educação para o Ministério da Educação, o carente de trabalho para o Ministério do Trabalho. Para os banqueiros, parece não ser necessário criar um novo Ministério dos Bancos. Seria, apenas, uma questão de nomenclatura.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/07/2003 - Página 17641