Discurso durante a 11ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Solicita transcrição nos anais do senado de artigos de autoria de S.Exa.

Autor
Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: Pedro Jorge Simon
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ATUAÇÃO PARLAMENTAR.:
  • Solicita transcrição nos anais do senado de artigos de autoria de S.Exa.
Publicação
Publicação no DSF de 16/07/2003 - Página 18139
Assunto
Outros > ATUAÇÃO PARLAMENTAR.
Indexação
  • TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, TEXTO, AUTORIA, ORADOR, ANALISE, RELAÇÃO, CONGRESSO NACIONAL, OPINIÃO PUBLICA, PROBLEMA, REVISÃO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ELOGIO, PERSONAGEM ILUSTRE, APRECIAÇÃO, SITUAÇÃO, REFORMA AGRARIA.

O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, pela terceira vez, nos últimos dias, volto a pedir a inclusão nos anais do Senado Federal de alguns textos que elaborei em meados da década de 90. São esboços que acabaram servindo, quase sempre, como base para pronunciamentos que fiz aqui na Tribuna do Senado Federal ou que foram publicados, como artigos, em jornais de circulação. Pedi, antes, a inclusão nos anais de dois blocos dessas reflexões. No primeiro deles reuni textos que tratavam de temas sociais, todos eles ainda hoje candentes. A seguir, agrupei num outro conjunto textos que abordavam um outro tema que tem sido central na minha atividade política: o combate sem tréguas à corrupção.

Agora, venho pedir a Presidência da Casa a transcrição de um outro grupo de textos que tratam de assuntos variados. Dois desses textos analisam a péssima imagem que o Congresso Nacional desfruta junto à opinião pública. Três desses trabalhos abordam a questão da revisão constitucional que se deu no início dos anos 90. Em três outros artigos, fiz o elogio de grandes brasileiros: Darcy Ribeiro, Teotônio Vilela e Barbosa Lima Sobrinho. Por fim, em outros, trato da questão agrícola, com destaque para a reforma agrária.

Seguem os trabalhos acima referidos:

            A reforma agrária e os pequenos municípios

Uma das questões mais relevantes, que está a merecer atenção especial de todos os formuladores de políticas públicas no Brasil, é o recrudescimento das disparidades regionais e pessoais de distribuição da renda.

O grande contingente populacional que, até aqui, se dirigiu para os centros urbanos deixou para trás imensos vazios econômicos e provocou, nos destinos, sensíveis hematomas sociais, principalmente nas regiões metropolitanas. Nas áreas pobres permanecem, quase sempre, crianças e idosos, exatamente aqueles que exigem maior presença do Estado, em termos de serviços de educação e de saúde, enquanto nas cidades, o desemprego, a falta de moradia e de outros requisitos básicos de sobrevivência criam verdadeiros guetos marcados pela fome e pela miséria.

Não é à toa que o Brasil já é considerado, segundo dados do Banco Mundial, o país de maior concentração de renda de todo o mundo: mais da metade da renda nacional se concentra nas mãos de, apenas, um em cada dez brasileiros. Enquanto quatro em cada cinco trabalhadores somam rendimentos que não atingem a um terço do que é gerado no País, um único apresentador de programas populares de televisão, citado em matéria de capa da revista Veja, e que procura atingir, exata e ironicamente, as camadas mais pobres da população, obtém uma remuneração mensal equivalente a 1.153 anos de suor de um trabalhador de salário mínimo, incluído o décimo terceiro. É como se esse mesmo trabalhador tivesse sua carteira assinada nos idos de junho do ano de 843 (depois de Cristo). Ou, um único dia de trabalho do primeiro seria suficiente para contar o tempo necessário para aposentadoria integral do último e, ainda, lhe sobrariam três anos para engrossar as fileiras reivindicatórias por melhores condições de vida.

Os fluxos migratórios que, até aqui, se deslocavam em mão única, já esboçam movimentos de reversão. A Estação da Luz, em São Paulo, já não é, mais, somente porta de chegada. E outras tantas estações ferroviárias e rodoviárias de todas as grandes cidades brasileiras assistem ao reembarque de milhares de passageiros, antes expulsos pela pobreza do campo e, hoje, enxotados pela miséria das cidades e que, agora, se desdobram nos trilhos e nas estradas, muitas vezes sem qualquer destino ou direção.

O Estado não pode mais continuar a reboque da história, sob pena de ser atropelado pelos fatos. Neste refluxo populacional, que deverá se intensificar com a crise estrutural do desemprego urbano, dois caminhos parecem se colocar no horizonte do poder público.

O primeiro é a reforma agrária, cujos assentamentos se localizem próximos aos núcleos urbanos de origem das populações rurais expulsas para as cidades. Resgata-se, com isso, os traços culturais e sociais perdidos com a migração, além de se propiciar melhor capilaridade aos serviços públicos a serem colocados à disposição destas populações.

O segundo caminho é o fortalecimento dos municípios de pequeno porte e das regiões consideradas deprimidas. Não se pode negar que se trata de tarefa das mais árduas. Os recursos públicos, cada vez mais escassos, tendem a se deslocar, com maior intensidade, para as regiões geradoras destes mesmos recursos, por apresentarem maiores possibilidades de retorno, em termos econômicos, e por concentrarem, quase sempre, lideranças políticas mais bem articuladas para a negociação de fatias mais suculentas dos orçamentos públicos.

O artigo 158 da Constituição Federal estipula, em seu inciso IV, que pertence aos municípios, “vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação”. Destes recursos, três quartos, no mínimo, dependem da proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e da prestação de serviços em cada município e, o restante, depende de lei estadual, que estabelece os critérios de distribuição de tal parcela do ICMS.

Ora, a primeira parte dos recursos, a mais significativa, tende a melhor aquinhoar aqueles municípios que já apresentam atividades geradoras de riquezas. Mas, os governos estaduais, através de legislação aprovada por suas respectivas assembléias, podem estipular critérios legais que direcionem a segunda parte para potencializar recursos latentes nos municípios menos desenvolvidos e para socorrer aqueles que apresentem maiores sinais de debilidade econômica e social.

Caso exemplar, citado pela grande imprensa, nos últimos dias, é o de Minas Gerais. O Governo do Estado estabeleceu um verdadeiro “contrato de gestão” com as prefeituras municipais no sentido de que, quanto mais eficientes forem as administrações locais, na consecução de objetivos comuns, mais vultosos são os recursos do ICMS transferidos para o município, no exercício posterior.

A Lei Estadual nº 12.040, de 28 de dezembro de 1995, estabelece como critérios, não somente os considerados clássicos, como tamanho relativo da população, da área geográfica e da produção agrícola e industrial, mas, também, aqueles que procuram maximizar a performance dos administradores municipais, consubstanciadas nos indicadores relativos à educação (capacidade de atendimento do município em relação ao número de alunos matriculados na rede municipal), saúde (relação entre o gasto per capita do município em relação ao somatório do gasto per capita de todos os municípios), acréscimos da área cultivada na agricultura, além de outros indicadores formulados com base na atuação do município em relação ao seu patrimônio cultural e à proteção ao meio ambiente.

Além disso, os critérios levam em conta a utilização de recursos próprios, a existência de municípios mineradores e compensações financeiras para eventuais desmembramentos de distritos. Todas essas transferências se somam a uma cota mínima, igual para todos os municípios do Estado.

Essa Lei, conhecida popularmente como “Robin Hood”, já propiciou, no primeiro quadrimestre de 1996, acréscimos de repasses superiores a 1000%, em relação a igual período do último ano, principalmente nos municípios pertencentes às regiões consideradas bolsões de pobreza.

O País já passou do processo de urbanização para o de metropolização. Quem sabe seja este o momento de uma discussão séria sobre um novo processo de ruralização. E ser rural, no Brasil, não significa morar aquém das placas indicativas de perímetros urbanos. Rurais são quase todos os pequenos municípios brasileiros, cuja sede é, na verdade, a aglomeração relativamente mais densa. Mas, no caso, essa aglomeração é salutar, porque facilita a capilaridade da ação pública.

Como se observa, embora árduos, todos os caminhos podem ser pavimentados pela criatividade e, sobretudo, pela decisão política.

            Teotônio Vilela: a imagem do semeador

Nada mais difícil do que traçar o perfil do Teotônio Vilela, apesar de ter convivido com ele durante tanto tempo, na resistência democrática e na luta pelos direitos mais fundamentais de todos os brasileiros. É que ele parecia transcendental. Ele inspirava algo de divino. Pudera, ele incorporava o poder de Deus até no próprio nome! Talvez seja por isso que o seu reino parecia não ser, também, deste mundo. Como alguém que encarnou, no seu tempo, a imagem do semeador, ele plantou idéias e exemplos. E não partiu para a eternidade sem, antes, ensinar todos os passos da colheita.

Talvez não fosse necessário resgatar a sua biografia. Porque a vida dos verdadeiros amigos é transparente. Imagine-se, então, a dele, que dedicou a sua existência a todos os que pouco ou nada têm além da própria vida. Ele era onipresente. A dor do excluído era, para ele, sempre maior do que a de seus cânceres. E ele pregava que a fome, a miséria e a injustiça são tumores malignos, mas curáveis.

Suas muletas pareciam ser, na verdade, batutas. Como um maestro, dava o tom e marcava as entradas. Dos cárceres, dos templos invadidos pelos vendilhões e dos corações petrificados pelo ódio, pela discriminação e pela omissão.

Apesar de, ainda hoje, sentir a sua presença viva, como uma luz, eu, às vezes, imagino o Teotônio caminhando, no planalto do céu, de braços dados com o Ulysses, com o Tancredo, com o Pasqualini e com tantos outros. Parece-me, até, que nenhum deles está a desfrutar do merecido descanso. Porque eu também imagino que o Teotônio continua inquieto com o que está acontecendo nestas terras acidentadas do Brasil. Quem, como eu, tantas vezes caminhou ao seu lado, sabe que ele não descansará, nem no céu, enquanto faltar pão na terra onde ele ensinou a plantar e a colher. Por isso, para o seu verdadeiro descanso eterno, ele quer a salvação de todos aqueles que ainda ardem no inferno da fome, da desnutrição, da miséria, da doença, do analfabetismo, da injustiça, da discriminação e da omissão.

Teotônio Vilela é o outro nome de todas as ruas e praças deste país, porque em todas elas ele fincou a sua bandeira da esperança. Ele dizia ser um homem de muita sensibilidade e de muita ilusão. E que é preciso acreditar no amanhã, mesmo sabendo que, até lá, é preciso muito esforço e tenacidade. A gente sentir lá dentro que é capaz de ultrapassar a adversidade é uma forma de ilusão. É o meu caso. E não é uma coisa vã, desprovida de qualquer apoio, porque eu sinto isso. “É um problema de sensibilidade”.

Pois é, Teotônio Vilela não morreu. Deus lhe pediu um aparte!

            Longa vida ao doutor Barbosa

O Brasil comemorou, no último dia 22 de janeiro, cem anos de sua história. Uma história viva, porque, para privilégio de todos nós, brasileiros, pode ser contada por quem a faz. Mais do que isso: inspirados na vida centenária do Dr. Alexandre Barbosa Lima Sobrinho, comemoramos, também, o dia de luta pela imprensa livre e democracia, pela ética na política, pela probidade, pela soberania e pelos direitos humanos fundamentais de todos os cidadãos.

Aliás, em nome da coerência, que sempre marcou a trajetória da vida do Dr. Barbosa, deveríamos instituir o dia 22 de janeiro com o “Dia Nacional de luta pelo Brasil para os Brasileiros”. Porque a bandeira que ele sempre empunhou mantém o verde de nossas florestas, o amarelo de nossas riquezas e o azul de nosso céu. E, sobre o branco da paz, a inscrição: “Liberdade e Soberania”.

O Dr. Barbosa chega aos cem anos com a mesma lucidez e o mesmo espírito de luta de sua juventude.

Com uma biografia invejável, iniciou sua vida literária em 1911, com 14 anos de idade, colaborou, desde cedo, com diversos jornais de todo o País, ingressou no Jornal do Brasil em 1921, onde foi redator político e redator-chefe. Em 1927, inaugurou a sua coluna dominical “Coisas da Política”.

Foi eleito, em 1926, e reeleito, em 1929, Presidente da Associação Brasileira de Imprensa, a ABI. Em 1952, tornou-se Secretário Geral da Academia Brasileira de Letras - ABL e, no ano seguinte, Presidente. É autor de mais de sessenta títulos.

Na vida pública, foi, em três oportunidades, Deputado Federal por Pernambuco, líder de partido, membro da Assembléia Nacional Constituinte, em 1946, Governador de Estado e Presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool - IAA.

Entretanto, dois momentos mais recentes são emblemáticos na trajetória deste brasileiro incansável em sua luta pela liberdade, pela soberania e pela ética na política.

O primeiro, em 1974, quando se colocou como candidato a Vice-Presidente da República, pelo MDB, na chapa encabeçada pelo Dr. Ulysses Guimarães, nas eleições indiretas promovidas e patrocinadas pelo regime militar. Como “anticandidatos” do MDB, percorreram o País, em denúncia ao regime militar. No pleito, em um ambiente de força e repressão, foram vencedores os candidatos da Arena, Generais Ernesto Geisel e Adalberto Pereira dos Santos. Mas, nas ruas, as candidaturas, consideradas simbólicas, caracterizaram-se como o marco inicial de um amplo movimento político oposicionista que redundou nos acontecimentos que se sucederam, como a vitória das oposições nas eleições parlamentares daquele mesmo ano, e a luta pela anistia e pela volta dos exilados e nos movimentos por eleições diretas dos anos posteriores. Não é à toa, portanto, que o Governo Geisel é considerado como o do início da chamada abertura política.

O segundo movimento marcante, em que Barbosa Lima Sobrinho colocou-se como representante legítimo das aspirações de todos os brasileiros foi em 1992, quando, da discussão do impeachment do Sr. Fernando Collor de Mello. É dele a primeira assinatura que deu início ao processo contra os ilícitos praticados pelo então Presidente da República. Ali se sintetizavam, em um único cidadão, os segmentos que se abraçaram durante as investigações da CPI Collor/PC: o povo, o político e a imprensa. A entrega do pedido de abertura do processo contra o Presidente da República foi, sem dúvida, um dos momentos mais importantes, significativos e emocionantes da história da democracia brasileira. Nada mais justo, portanto, a presença, ali, do Dr. Barbosa Lima.

Mas, com certeza, ele não considerava o afastamento de um presidente corrupto como a etapa final de um processo de moralização da Administração Pública. Ele sabia que era o início de uma árdua caminhada. A entrega de documentos ao Congresso Nacional era mais do que um momento simbólico que, ali, se exauria. Haveria que se desatar todos os nós que estrangulam o dispêndio dos recursos que faltam nas filas dos hospitais, na escuridão do analfabetismo e na mesa de milhões de brasileiros famintos. E o Congresso deu mais um passo neste sentido: voltou-se contra o seu próprio espelho e cassou parlamentares. Mas, faltou-lhe o passo decisivo: era preciso investigar os agentes corruptores. E, isso, a história está em débito com o Dr. Barbosa Lima Sobrinho e com todos os brasileiros à sua semelhança.

Além disso, ele lutou e viu nascer a Petrobrás. Ele participou, ativamente, da Campanha “O Petróleo é Nosso”. Ele foi, quando Deputado Federal, um dos autores do Código Nacional de Telecomunicações. Ele assistiu à abertura das comportas que deram à luz o nosso sistema elétrico. Ele viu nascer a Companhia Vale do Rio Doce. Ele defendeu, nas ruas e nas tribunas, a nossa terra e o nosso subsolo. Portanto, como político, como jornalista e como brasileiro legítimo ele sabe quanto suor, sangue e lágrima foram derramados para implantar um projeto de país soberano e independente.

Não é á toa que o Dr. Barbosa diz que “na luta pelo País, não se aposenta”. E os fatos estão a demonstrar que, nem por idade e nem por tempo de luta.

Por tudo isso, parabéns ao Dr. Barbosa por esta data querida, muitas felicidades, mas, sobretudo, muitos anos de vida!

            Homenagem a Darcy Ribeiro

Não consigo imaginar o que o Senador Darcy Ribeiro está fazendo, agora, no céu. Lá não há sem-terra, nem sem-casa, nem sem-comida. De lá, ele contempla os milhões de sem-nada, como que uma verdadeira obra inacabada nesta “terra que sonhou ver dividida”. Por isso, não se assustem se o encontrarem por aí, com sua voz rouca. É que, por essa obra inacabada, ele é capaz de fugir do céu.

No Senado, nos últimos tempos, sua cadeira era de rodas. Sua imaginação, de asas. Tinha o dom da ubiqüidade. Ele era todos, em todos os lugares. Era o índio, o negro, o mulato, o menino de rua, o povo brasileiro, o Brasil.

Era um símbolo da mineiridade, nascido entre pequis, carnes de sol e serestas, na bela Montes Claros. Ao mesmo tempo, um cosmopolita. Sabia, como ninguém, unir educação e folia, como num sambódromo. Seu tempo era integral, como num CIEP. Viveu momentos de tensão e de ternura, como na Universidade de Brasília das invasões militares e do “beijódromo”. Ele era o pantanal, etnólogo; o Rio de Janeiro, Vice-Governador e Senador; o Brasil, Ministro; o mundo, exilado. Quem sabe restava-lhe, apenas, a imensidão dos céus. Pelo menos, por tudo o que conhecemos e que com ele aprendemos e pelos princípios divinos, lá ele não pertence a qualquer bloco de oposição. Nem ele, nem o Teotônio, nem o Ulysses, nem o Tancredo.

Uma experiência nova para quem, na terra, a realidade brasileira impunha a contestação. Seu último artigo demonstrava a sua preocupação com os meninos de rua. Ainda sobre o tema, gravou mensagem ao Presidente da República: “Você já viu bezerro sem ração? Ou um cabrito? Ou uma galinha sem dono para lhe dar comida? Você não viu! E, sabe por quê? Porque não existe! Agora, menino de rua tem um monte por aí. Não existe galinha de rua, existe? Pois é, nem bezerro e nem cavalo. Mas, criança, tem. Isso não pode!”

Preocupava-lhe, sobremaneira, a privatização anunciada da Companhia Vale do Rio Doce, a descaracterização da Petrobrás, a desnacionalização do nosso subsolo, a invasão sorrateira da Amazônia.

Pela Academia Brasileira de Letras, ele se tornou imortal, porque sua obra será reconhecida até o final dos tempos. No Senado Federal, também. Lá, o seu espaço físico será ocupado por uma nova personalidade do pensamento brasileiro. Daqui, ele se foi, mas, quis o destino que o seu suplente tivesse, como sobrenome, Nascimento.

O Darcy será homenageado por todos os brasileiros. Com cânticos, orações, folias, catiras, carnavais, serestas, afoxés e aruanãs. No palacete suntuoso e na palhoça mais humilde. Ele era um brasileiro que, verdadeiramente, amava o seu País. Garimpava riquezas em nossas diferenças. Mas lutava contra todas as nossas disparidades. Vivia, intensamente, a vida e o seu exemplo ultrapassa a morte. Somos, todos nós, suplentes. Somos, todos, nascimento.

Recomendei ao Senado Federal que o próximo número da edição de “Os Grandes Vultos do Senado” seja dedicado ao Darcy Ribeiro. Não sei se será necessária uma grande tiragem. Afinal, a sua vida como antropólogo, escritor, romancista, educador , pesquisador e humanista já é, por si só, uma obra conhecida e reverenciada. Acho que o Darcy não se quietaria, nem mesmo em compêndios, se eles dormitassem em prateleiras frias. Quem sabe um número suficiente para as mesas de trabalho de todos os tomadores de decisão sobre os destinos deste País. Ou de cabeceira, à luz dos seus exemplos. Assim, o Darcy descansaria, em paz. E, enfim, a sua obra se tornaria acabada.

            Em defesa de uma revisão constitucional

Não há como negar: o Congresso Nacional vive um de seus momentos mais sensíveis, em termos de legitimidade popular. É bem verdade que os ventos da democracia, que derrubaram todas as barreiras que se interpunham entre o público e o seu poder constituído, parecem ter sido mais fortes pelos lados do legislativo. Aqui não há porta-voz. O Congresso Nacional comunica-se com a população através da própria imprensa.

Entretanto, não deixa de ser preocupante o fato de o Poder Legislativo situar-se no rodapé do quadro de legitimidade institucional. A população brasileira, segundo as últimas pesquisas, atribui maior prestígio, por exemplo, aos Sindicatos de Trabalhadores e, até mesmo, aos Clubes de Futebol do que aos seus representantes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

O Congresso Nacional não é uma instituição monolítica. Ao contrário, ele é a verdadeira síntese de um país de contrastes. As mais diferentes correntes de opinião se expressam, nas tribunas, através de partidos políticos, e fundamentam, em última instância, os seus princípios doutrinários e programáticos. Era de se esperar, portanto, que, pelo menos, a legitimidade dos partidos políticos que dão conformação ao Congresso Nacional fosse a continuidade e a conseqüência do voto livre, secreto e democrático. Mas não é. Os partidos políticos, segundo as mesmas pesquisas, não têm prestígio para três em cada quatro brasileiros.

A experiência mundial mostra que não há como imaginar um regime democrático sem um Congresso legítimo e sem partidos políticos verdadeiramente representativos. Esse mesmo Congresso, hoje visto apenas pelo retrovisor da avaliação popular, já propiciou momentos memoráveis na história política recente do País. Quem não se lembra dos debates que deram origem à Constituição de 1988? Os corredores e os salões do Congresso Nacional transformaram-se em ruas e praças e as tribunas nos coretos que identificam o lugar central, o centro de convergência de idéias e de expectativas.

Talvez fosse aquele o momento mais adequado para uma ampla reforma política e partidária, fundamentada no contraditório do debate de idéias que emergiram da própria população. Perdeu-se, portanto, a oportunidade de se rediscutir a representação partidária, quando o Congresso se transfigurava na face do próprio País. É que se concentraram todos os esforços na discussão de um documento onde tivesse lugar tamanhas esperanças reprimidas, ou a dor do amigo, do pai, do companheiro ou, ainda, o corpo insepulto do anônimo desaparecido. Ou, quem sabe, as ilusões perdidas com a morte de Tancredo Neves.

É por isso que, talvez pelo receio da volta a um passado tão perverso e tão recente, a Constituição de 1988 seja tão abrangente. É que, naquele momento, antes de ser abrangente em demasia, ela teria que ser envolvente o necessário. E, aí, matérias que poderiam ser caracterizadas com infraconstitucionais se transformaram em preceitos constitucionais. Não é à toa que mais de duzentos artigos da Constituição de 1988 ainda não foram regulamentados. É que, quando os assuntos considerados mais polêmicos geravam risco do chamado “buraco negro”, os constituintes invocavam o artifício de remetê-los para a legislação subsidiária e, conscientes dos riscos de tal decisão, previram, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Revisão Constitucional, após um período de cinco anos.

O que os constituintes não previram é que o fim de tal período, se considerado “ao pé da letra”, coincidiria com um ano eleitoral e, conseqüentemente, com as últimas luzes dos mandatos parlamentares. Também não poderiam prever que se trataria de um dos períodos mais conturbados da história política brasileira, com o impeachment do Presidente da República, pelas vias constitucionais e a cassação de parlamentares revestidos de poderes constituintes. Daí, o fiasco da revisão que se propôs ocorrer em 1993.

Fracassada a revisão, as mudanças constitucionais passaram a ser discutidas ao sabor de emendas que, embora os trâmites regimentais, em termos de discussão e quorum (3/5, em duas votações, em cada uma das Casas do Congresso Nacional), são apresentadas, quase sempre, segundo interesses momentâneos do Poder Executivo ou deste ou daquele parlamentar, não raras vezes movido por interesses de grupos de pressão mais bem organizados. Não há, aí, o propósito de se discutir a Constituição Federal como um todo e os rebatimentos sobre assuntos que lhe são específicos.

A essa miscelânea de apresentação de emendas a à falta de regulamentação de temas considerados relevantes, somam-se a mixórdia das medidas provisórias. O que deveria ser justificado pela relevância e pela urgência, tornou-se instrumento de administração do dia-a-dia, já ultrapassando 1500 edições, isso sem considerar as reedições sucessivas e mensais que chegam, em alguns casos, a quatro dezenas. Medidas provisórias, que se justificam como relevantes e urgentes pelo Poder Executivo, não são votadas pelo Congresso Nacional durante quatro anos. Ou seja, para o Congresso, não são relevantes nem urgentes, por todo o período de um mandato legislativo.

Triste constatação. A Constituição “cidadã” se transformou numa miscelânea de leis que não complementam e de medidas que não são provisórias, ao relento de filiações partidárias que, muitas vezes, não se atrelam a idéias, mas a barganhas corriqueiras que denigrem os verdadeiros postulados de São Francisco de Assis, tudo isso em nome da fiel observância à “lei de Gérson”.

Esse é o quadro político partidário brasileiro, pintado, aqui, em cores cinzentas. E é exatamente ele que dá moldura à Proposta de Emenda Constitucional nº 50/96, que apresentei no último dia 10 de outubro. Ela se antepõe ao varejo das emendas constitucionais e às medidas provisórias que, na verdade, preenchem o vácuo das regulamentações reclamadas pela Constituição de 1988. Tenho consciência de que a minha proposta é, sobretudo, ambiciosa. Com ela, procuro resgatar a revisão constitucional abortada em 1993. Mais do que isso: as idéias que serão debatidas e que darão corpo a um texto constitucional mais condizente com a realidade atual e com o projeto que se deseja para o País, serão, também, o suporte necessário à consolidação de agremiações partidárias verdadeiramente representativas do pensamento dos diferentes segmentos da população brasileira.

Preocupa-me, portanto, a questão da legitimidade, tanto do novo texto constitucional, quanto dos parlamentares que irão aprová-lo. O plebiscito e o referendo serão os dispositivos utilizados para legitimar, respectivamente, os novos parlamentares, eleitos nas próximas eleições, e o novo texto, após sua aprovação, em votação unicameral.

Aos partidos políticos caberá, verdadeiramente, a legitimidade das urnas, porque eles emergirão de idéias e é em sua defesa que se apresentarão, nos palanques, os candidatos. Se eleitos, manter-se-ão coesos aos princípios doutrinários e ao programa partidário. Se desfiliados, perderão o mandato, em nome do suplente, que mantém em punho a bandeira do partido que o elegeu. Mas, esse é um assunto que deverá ser detalhado neste mesmo espaço democrático da Folha de S.Paulo, nos próximos dias. O que já garante um início profícuo ao debate. Afinal, a imprensa é a instituição mais legítima aos olhos do público.

Em defesa de uma revisão constitucional (II)

Na primeira parte deste artigo, publicado no dia 24 último, procurei alinhavar as características do processo constituinte de 1988. Ali foram discutidas as circunstâncias daquele momento histórico, após tamanho período na contramão da liberdade, a abrangência do texto constitucional, a falta de regulamentação de mais de duas centenas de seus artigos, o fracasso da revisão de 1993, a promiscuidade das medidas provisórias, nem sempre tão relevantes e tão urgentes e, em especial, a conseqüente arritmia do processo legislativo que hoje se observa.

Ali, também, se enfatizou a preocupante falta de prestígio do Congresso Nacional e, especialmente, dos partidos políticos junto à população brasileira. São estas, portanto, as questões que dão suporte à proposta de emenda constitucional nº 50/96, que apresentei em 10 de outubro.

Em primeiro lugar, procuro resgatar a legitimidade do Congresso Nacional. Sem discutir a importância do voto no regime democrático, a participação popular não pode se circunscrever ao ato formal e obrigatório das eleições, nem à atuação perseverante, e nem sempre legítima, de grupos de interesse mais bem organizados.

No dia 3 de outubro de 1998, simultaneamente, às eleições federais, mediante plebiscito, o eleitorado decidirá sobre a realização da revisão constitucional. Algo assim como “Você concorda em delegar ao futuro Congresso Nacional poderes para a revisão da Constituição, por voto de maioria absoluta, em sessões unicamerais?” Trata-se do ato formal que dará início a um amplo debate de idéias sobre os temas que se consideram mais relevantes para o País.

Aprovada a proposta de revisão, via plebiscito, ela terá início em 2 de janeiro de 1999, com o advento da nova legislatura, e se estenderá por todo aquele ano. A nova Carta deverá se constituir, verdadeiramente, na convergência das idéias discutidas com a sociedade durante os trabalhos revisionais. Temas como sistemas de governo, representação política em todas as esferas do poder, papel do Estado na economia, a estrutura do Poder Judiciário, democratização dos orçamentos públicos, sistemas previdenciários, papel das Forças Armadas, salário mínimo, pena de morte e aborto deverão ser abordados. Mas, a participação comunitária não se esgotará com a edição do novo texto. Se o plebiscito atribuiu poderes revisionais ao Congresso, o referendo popular, previsto para cento e vinte dias após o término dos trabalhos, delegará à sociedade poderes para legitimar a Constituição revisada. Como conseqüência, essa legitimidade desejada se estenderá para o Congresso Nacional.

Note-se que a proposta coloca ênfase especial no debate de idéias. É que o contraditório que se explicitará nas discussões temáticas se reproduzirá na concepção e na consolidação de partidos políticos fundamentados em idéias e não atrelados, unicamente, a pessoas ou a fatos sensíveis à lapidação do dia a dia. Resgata-se, portanto, a oportunidade perdida durante os trabalhos constitucionais de 1988, no sentido de uma ampla reforma político-partidária. Cada parlamentar terá seis meses, contados a partir da promulgação da nova Constituição, para decidir, com suas bases eleitorais e a partir das idéias sedimentadas durante os trabalhos revisórios, sua filiação partidária. Perderá o mandato, a partir daí, o Senador ou Deputado Federal que se desfiliar de seu partido político, a quem pertencerá, efetivamente, a vaga no Congresso Nacional. Tudo isso, em nome do respeito aos princípios doutrinários e à ação programática do partido político que lhe serviu de abrigo na eleição e em função da legitimidade da procuração que lhe foi outorgada, através do voto, pelo segmento da população que o elegeu em nome de ideais comuns. Acaba-se, com isso, com o obscuro e oportunista “troca-troca” de partidos, que relega a vontade e a soberania popular a um plano secundário, em função de interesses políticos particulares e circunstanciais.

Tenho consciência de que, mesmo que ilegítimas, são fortes as razões desta arritmia legislativa. E que essas razões levam, muitas vezes, ao pessimismo de muitos. Mas este pessimismo da razão não é maior do que o otimismo da vontade de mudar.

            Resgatar a Revisão Constitucional

Depois de quase um quarto de século sob o domínio da mordaça, parecia existir, somente, o futuro. Mas, como enterrar na memória a lembrança do filho ou do amigo insepulto? Seria possível abafar o eco de quem teve calada a voz? O arbítrio manter-se-ia poderoso o suficiente para provocar o “meia volta, volver”?

É esse medo do passado que fez o Brasil buscar abrigo numa Constituição verdadeiramente cidadã. Nada haveria de criar obstáculos à busca pela liberdade e pelos direitos mais fundamentais. O direito à vida deveria ser a relação unívoca entre a Bíblia Sagrada e a Constituição Brasileira. E assim se fez a nova Carta de 1988: abrangente o necessário para espantar o medo do passado e para abrigar todas as esperanças do futuro.

Nada haveria de conter aqueles corredores do Congresso Nacional que mais se pareciam a avenida que circunda a grande cidade ou a única rua que atravessa o pequeno lugarejo. E os eventuais “buracos negros” obedeciam ao artifício da legislação subsidiária e da Revisão Constitucional, prevista para após cinco anos da promulgação do novo texto.

O que os constituintes não poderiam prever é que a mistura de vozes da sociedade organizada nos corredores do Congresso se transformasse na miscelânea do atual processo legislativo. Em tempos de impeachment de um Presidente da República e da cassação de parlamentares, fracassou a revisão de 1993. Além disso, mais de duzentos artigos da Constituição ainda não foram regulamentados. Como contraponto dessa arritmia legislativa, o Diário Oficial da União já publicou mais de 1.500 medidas provisórias, algumas delas já com dezenas de reedições e muitas sob o disfarce da relevância e da urgência.

Por tudo isso, o Congresso Nacional, “rebatizado”, em 1988, na pia da nova Constituição e crismado duas vezes nas CPIs Collor/PC e do Orçamento, viu sua credibilidade ruir. As últimas pesquisas mostram que o Congresso e os Partidos Políticos carregam a lanterna do prestígio institucional, numa ladeira de melhor performance, até, dos clubes de futebol. Isso significa dizer que o Flamengo, o Corinthians, o Internacional, o Cruzeiro ou o Fluminense ostentam, hoje, mais prestígio que o PFL, o PSDB, o PMDB, o PPB ou o PT.

Como Congresso Nacional, partidos políticos legítimos e democracia são questões de correlação unitária, o redirecionamento do processo legislativo e o resgate da credibilidade parlamentar são fundamentais para a consolidação da liberdade e dos direitos fundamentais dos cidadãos, cravados na Constituição de 1988. São essas questões e esses fundamentos que nortearam a minha Proposta de Emenda à Constituição nº 50/96. O que se pretende é transformar, novamente, os corredores do Congresso Nacional no ponto de convergência de idéias semeadas pela própria população. E é da discussão destas idéias que deverão brotar as bases para a consolidação de partidos políticos sólidos e para uma Constituição Soberana e em consonância com as transformações da realidade mundial.

O primeiro passo é resgatar, de uma forma legítima, a Revisão Constitucional frustrada em 1993. No dia 03 de outubro de 1998, simultaneamente às eleições, mediante plebiscito, o eleitorado opinará sobre a delegação de poderes ao futuro Congresso Nacional, para a revisão da Constituição, por voto da maioria absoluta, em sessão unicameral.

Aprovada a proposta plebiscitária, os trabalhos terão início em 02 de janeiro de 1999 e se estenderão por todo aquele ano. Durante esse período, temas como sistemas de governo, representação política em todas as esferas de poder, papel do Estado na economia, estrutura do poder judiciário, democratização dos orçamentos públicos, sistemas previdenciários, papel das Forças Armadas, pena de morte e aborto deverão ser discutidos com toda a população.

Mas, a preocupação com a legitimidade não se esgota com o plebiscito e com o debate contínuo de idéias. O novo texto constitucional sistematizado será submetido a um referendo, previsto para cento e vinte dias após o término dos trabalhos revisórios. A Nova Constituição, a ser promulgada em ato contínuo ao referendo será, portanto, concebida no pensamento da população e sistematizada pelos seus representantes legítimos no Congresso Nacional.

O que se depreende, daí, é que os diferentes segmentos da população outorgam aos parlamentares, através das urnas, uma espécie de procuração para representá-los no Congresso Nacional. E, exatamente como numa procuração, essa outorga pode ser cancelada se o parlamentar se distanciar do pensamento das bases que o elegeram. É por isso que a minha proposta prevê um prazo de seis meses, após a promulgação da nova Constituição, para que todos os Senadores e Deputados Federais decidam, com suas bases, pela filiação partidária mais adequada, a partir do contraditório do debate de idéias ocorrido durante a revisão constitucional. Perderá o mandato, a partir daí, o parlamentar que se desfiliar do seu partido político, pois serão, efetivamente, as agremiações partidárias, que congregam os princípios doutrinários e a ação programática, aquelas que abrigarão as propostas de palanque. Acaba-se, com isso, com o obscuro “troca-troca” de partidos, que relega a vontade e a soberania popular a um plano secundário, em nome de interesses políticos particulares e circunstanciais. Os partidos se constituirão sólidos e legítimos, atrelados a idéias e não a pessoas e a fatos sujeitos à lapidação do dia a dia ou às barganhas de balcão.

Trata-se, portanto, de uma proposta pretensiosa. Na vida pública há quase quarenta anos, ela é, talvez, a mais importante de todas que já ousei formular. Mais do que isso: como devoto de São Francisco de Assis, quem sabe possa resgatar o verdadeiro e sublime significado do “é dando que se recebe”. 

            Recuperar o Poder Legislativo

Michelângelo, que imortalizou obras como a Pietá e a Capela Sistina, quando indagado sobre a sua fonte de inspiração, afirmava que nada criava e nada concebia: “as imagens estão prontas e perfeitas dentro dos blocos de mármore, cabendo-me, apenas, descobri-las dos excessos e expô-las à luz”.

Esse parece ter sido, também, o princípio que inspirou a obra da Assembléia Nacional Constituinte de 1988: nada criou, apenas expôs à luz a vontade de todo um povo, petrificado durante um quarto de século de obscurantismo. A nova Constituição deveria, naquele momento, se transformar numa obra que se desenhasse com os traços desse mesmo povo e não apenas ser cumprida, mas, sobretudo, imortalizada. Por isso, ela deveria conter o pão, a escola, o hospital, a liberdade e a soberania. Ela teria que se chamar “cidadã”. Não é à toa que, naqueles idos tempos, cada gabinete parlamentar se transformou na moradia rústica ou no palacete suntuoso e os corredores e galerias do Congresso Nacional pareciam, na verdade, ruas e praças do pequeno município ou da imensa metrópole.

Mas, entre os blocos e capítulos da Nova Carta, a lapidação da democracia manteria um resquício de autoritarismo. Algo assim como uma bactéria auto-inoculada pelos próprios parlamentares. Encravada no capítulo 62, ela quebra as resistências do Congresso Nacional e transfere a atribuição de legislar para o outro lado da Praça dos Três Poderes.

E, ali, onde já se esculpiu figuras monstruosas sob os títulos de Atos Institucionais e Complementares e de Decretos-leis, multiplicam-se, hoje, e com códigos genéticos semelhantes, as tais Medidas Provisórias, que se reproduzem e se reeditam imunes aos anticorpos da representatividade popular.

Muitas vezes sorrateiras e concebidas na calada da noite, nada têm de provisórias, ainda que o parágrafo único do mesmo capítulo estipule que elas “perderão a eficácia quando não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”.

Enquanto o Poder Legislativo desdenha mais de duas centenas de leis subsidiárias à Constituição de 1988, o Poder Executivo exorbita na legiferância que caminha, célere, para dois milhares de edições de medidas provisórias, muitas delas reproduzidas em dezenas de cópias. São números que demonstram as tantas vezes em que o Poder Executivo se antecipa ao Poder Legislativo no conceito do que deve ser, em termos legais, relevante e urgente. A relevância substitui o debate pelo “convencimento”. E a urgência cassa a representatividade popular atribuída pelas urnas.

E é assim que a população brasileira vê, hoje, o Congresso Nacional: inerte e a reboque do Poder Executivo. Que o digam as pesquisas de opinião, que colocam o Parlamento e os partidos políticos no rodapé do quadro do prestígio institucional. Não é à toa: o grande escultor das obras do dia-a-dia da população brasileira é, hoje, o Presidente da República. Parece ser, ele, o único homem público com divindade, à semelhança de Michelângelo, capaz de “descobrir os excessos e expor à luz imagens prontas e perfeitas”.

É esse o grande desafio do Congresso Nacional, nos nossos dias: recuperar o seu poder de legislar. E isso, obviamente, não se alcança por decreto legislativo. Há que se resgatar, como primeiro passo, a legitimidade institucional. Não há como negar que o voto obrigatório parece estar se transformando, cada vez mais, em mero ato formal indicador de proporcionalidades partidárias que se transformam, não raras vezes, em instrumentos de negociação e de barganha.

As eleições de 1998 podem ser, portanto, emblemáticas para o Congresso Nacional. A representação política deverá se colocar muito além da benemerência, do pequeno favor ou da ignorância providencial de milhões de eleitores pressionados no sentido de confirmar o voto, ao invés de corrigi-lo. E isso se concretizará, somente, com a reaproximação do povo com o parlamento e de uma correlação mais forte entre o voto do eleitor, nas urnas, e o voto do eleito, nas tribunas.

As organizações de classe são imprescindíveis em um regime democrático. Mas a prática tem demonstrado que o maior poder de influência se dá naqueles setores mais fortes, em termos políticos e econômicos. É aí que adquire importância a consulta popular, incluído o próprio voto. O plebiscito e o referendo são instrumentos previstos na Constituição Federal. Tudo indica que a utilização destes instrumentos pode ser considerada como inversamente proporcional à legitimidade e à representatividade parlamentar. Se isso é verdade, o momento é de se recorrer a tais institutos.

A miscelânea do processo legislativo atual, sob a égide de uma Constituição concebida em um momento de transição para a democracia, que espelha o receio de um retrocesso político, a recorrência de medidas ditas provisórias no lugar das regulamentações previstas na mesma Carta e a deterioração do prestígio do Congresso Nacional suscitam a necessidade de um amplo debate sobre as reformas constitucionais e sobre a representação política e institucional no País.

Nas próximas eleições, após amplo esclarecimento público, a população deverá ser consultada, através de plebiscito, se o novo Congresso poderá ter poderes para revisar a Constituição. Caso afirmativo, os Senadores e Deputados Federais eleitos se revestirão da legitimidade necessária para promover, durante o ano de 1999, um amplo debate de idéias e propostas que culminará em um novo texto constitucional. Mais do que isso: ao término dos trabalhos, após quatro meses de discussão, a população deverá ser novamente consultada, através de um processo de referendo, dizendo sim ou não às alterações propostas.

Do contraditório no debate de idéias durante os trabalhos revisionais, deverão emergir novas acomodações político-ideológicas, mais sólidas e mais representativas dos diferentes segmentos da população. Cada parlamentar terá seis meses, após a promulgação da nova Constituição, para decidir sobre sua filiação partidária mais adequada. À desfiliação, após esse prazo, corresponderá a perda automática do mandato, que pertencerá ao partido político aglutinador das idéias do segmento populacional que o sufragou.

A idéia é romper o terceiro milênio com uma Constituição imune a reformas ditadas por interesses conjunturais e de segmentos mais fortes e organizados, com um Congresso Nacional e com partidos políticos sólidos e representativos.

Aí estão, portanto, os propósitos e os instrumentos encravados na Proposta de Emenda Constitucional nº 50/96, que encaminhei ao Congresso Nacional.

Como se observa, também nada criei nem concebi: as idéias estão prontas nas pesquisas de opinião pública e nos anseios mais imediatos da população. Coube-me, apenas, captá-las e expô-las à luz.

            Sobre o (des)prestígio do Congresso Nacional

A Folha de S.Paulo publicou, recentemente, resultado de pesquisa de opinião sobre o grau de prestígio e poder de 12 instituições brasileiras. Os números são auto-explicativos mas, mesmo assim, merecem uma reflexão mais profunda, já que refletem o pensamento da população brasileira sobre sua representação política.

Pode-se, mesmo, dizer que se trata de um retrato de como a população percebe e avalia a institucionalização de seu dia-a-dia, dada a abrangência da pesquisa, que inclui todos os aspectos da vida do cidadão, como a religião, o esporte, os poderes constituídos, a defesa da cidadania e da soberania e a representação profissional e política.

Considerada essa abrangência, uma primeira observação que os números não escondem é que, na percepção da sociedade brasileira, o país vive uma crise institucional, à medida que, das 11 instituições incluídas na pesquisa, apenas três obtiveram percentual acima de 50%: a Imprensa, os clubes de futebol e a igreja católica. Ou seja, somente estas três instituições mantêm prestígio, na opinião da maioria da população brasileira.

Mas, o que chama atenção nos resultados da pesquisa são algumas posições relativas no ranking institucional. Para a população, a imprensa tem mais poder que as forças armadas. Ou o Poder Judiciário, embora o nome, é menos poderoso que os clubes de futebol, que, por sua vez, têm mais prestígio que a Presidência da República e os Ministros de Estado, que também perdem para os bancos e as financeiras. Mais ainda: o porte de estatais como a Petrobrás, a Cia. Vale do Rio Doce, a Eletrobrás ou a Telebrás não é suficiente para que a população as considere com maior poder que o Flamengo, o Corinthians, o Vasco da Gama, o São Paulo, o Internacional e o Grêmio.

Não se considerou, até aqui, o Congresso Nacional e os Partidos Políticos. Longe de se cometer, premeditadamente, o pecado da omissão. Pelo contrário, é que os resultados da pesquisa, no que se refere ao que a população percebe sobre sua representação política e partidária, merece destaque especial.

Para o povo que elege Senadores e Deputados Federais como seus legítimos representantes, o Congresso Nacional e os Partidos Políticos carregam a lanterna no ranking do prestígio das instituições.

A metade da população considera que o Congresso ainda mantém poder, mas não tem prestígio para três em cada quatro brasileiros. Embora repetitivo, para ser enfático, há que se refletir sobre a constatação de que a população brasileira considera o Congresso Nacional e os Partidos Políticos com menos prestígio, pela ordem, que a Imprensa, os Clubes de Futebol, a Igreja Católica, as Forças Armadas, os Bancos e Financeiras, a Presidência da República e os Ministros de Estado, o Poder Judiciário, os Sindicatos de Trabalhadores, as Empresas Estatais e, até, a Igreja Universal do Reino de Deus.

Mais ainda: tamanho desprestígio ocorre, exatamente, no momento em que este mesmo Congresso se reveste do poder de Assembléia Constituinte, ao propiciar mudanças importantes na Constituição Brasileira, como a quebra de monopólios e as reformas administrativa, previdenciária, fiscal e tributária e que discute volumes de recursos com elevados custos de oportunidade, como o empréstimo externo para a implantação do SIVAM. Ou seja, a população ainda considera com menor prestígio uma instituição cujos integrantes formulam e alteram a mais importante de suas leis do que outra cujo representante agride o seu mais importante símbolo religioso. Haja reflexão!

Para as cinco maiores capitais brasileiras, a pesquisa mostra resultados obtidos em três momentos: março de 1987, outubro de 1992 e dezembro de 1995. Como era de se esperar, o Congresso Nacional obteve maiores percentuais, em termos de poder e prestígio, em 1992, exatamente no momento em que promoveu as investigações que culminaram no impeachment de Fernando Collor de Mello.

Isso retrata um dos papéis fundamentais que a população espera ser desempenhado por seus representantes no parlamento: a constante vigilância da probidade na alocação de recursos públicos. Mais do que isto: mostra o repúdio da população brasileira à corrupção e à dilapidação do patrimônio público. Daquele momento até os dias atuais, a Presidência da República recuperou poder e prestígio, enquanto o Congresso Nacional e os Partidos Políticos perderam espaço, na opinião de brasileiros e brasileiras.

Há muito que se refletir sobre estes fatos. Se é grave a observação de que há, aos olhos da população, crise institucional, é particularmente preocupante a crise de legitimidade do Congresso Nacional e dos Partidos Políticos. E, parece não haver desinformação ou falta de comunicação com a população como um todo.

O Congresso e a Imprensa encontram-se em pólos distintos na pesquisa. Se os meios de comunicação possuem tamanha legitimidade popular e povoam plenários, corredores e gabinetes divulgando informações sobre o dia-a-dia do parlamento e, se este é o momento em que se altera profundamente a legislação do país, era de se esperar que o Congresso obtivesse melhor performance na avaliação popular.

Pior que o resultado da pesquisa da Folha de S.Paulo é ela permanecer silenciosa, na página 1.8 da edição de 29 de janeiro. Há que se considerar que tais números são reflexo de uma situação que dever ser, urgentemente, repensada. Aliás, em se tratando de Congresso, talvez o melhor termo não seja repensar, mas, antes, resgatar. Aqui se viveu momentos históricos. Biografias não lhe faltam. Basta recorrer à memória de figuras e exemplos como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Teotônio Vilela, Alberto Pasqualini, entre outros.

            Lanterna de popa

Na comemoração dos 50 anos de existência da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque, estavam representados 180 países, através de seus principais mandatários. Se percorrermos as páginas dos mesmos jornais que repercutiram o evento, perceberemos que, no noticiário cotidiano dos últimos tempos, menos de um terço desses povos ocuparam espaço ou mereceram qualquer referência sobre sua maneira de ser, seus costumes, sua língua, sua religião ou, até, sua própria existência. O que se estampa, mais amiúde, é a opulência dos dez mais ricos e a miséria dos dez mais pobres. Sabe-se, no máximo, que os primeiros dez são o próprio universo e os últimos são uma amostragem das quase duas centenas de nações que se caracterizam muito mais como figurantes do que como protagonistas da vida terrestre.

Quem conhece, por exemplo, como vivem os 1,4 milhão de betchuanos, naturais de Botswana, país do centro-sul da África?

É evidente que, mesmo para fundamentar a minha pergunta, recorri a uma enciclopédia. Mas, se considerar insuficientes as informações ali contidas, a fonte que me parece mais significativa para conhecer a vida de um povo é a Constituição de seu país. Afinal, espera-se que na Carta Magna estejam contidos os princípios que devem reger a conduta de toda a população, do primeiro mandatário ao mais singelo dos habitantes.

Embora não conheça a Constituição da República da Botswana, estou certo de que, se seus comandos forem efetivamente seguidos, os frutos do desenvolvimento daquele país estarão distribuídos igualmente, entre todos os seus cidadãos.

O risco de erro é mínimo, porque todas as constituições tratam, quase sempre na primeira página, dos direitos fundamentais e das liberdades individuais. Escolhi Botswana porque aquele país freqüentou a mídia, nos últimos meses, como ocupante do incômodo penúltimo lugar nos índices de concentração de renda em todo o planeta. Lá, os 10% mais ricos abocanham 43% da renda gerada no país.

O temor pela possibilidade de generalização do exemplo, que me levaria a acreditar que não há correlação entre o que ditam as leis e o que ocorre na realidade, me faz debruçar, preocupado, sobre a Constituição brasileira. Sem fugir à regra, o Capítulo I trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Já o Capítulo II, art. 6º, estipula que "são direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados...". O art. 7º, inciso IV, diz que é direito dos trabalhadores urbanos e rurais, o "salário mínimo, fixado em lei, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes períódicos que lhe preservem o poder aquisitivo...".

Se eu fosse um cidadão de Botswana e pretendesse conhecer mais sobre o Brasil, além do Pelé, do Carnaval e do Cristo Redentor, e utilizasse o mesmo método de compulsar a Constituição do País para conhecer a vida de seu povo, certamente concluiria que a alegria dos brasileiros não se restringe aos festejos momescos.

Desconfiado, como eu, consultaria, também, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, editado em 1994 pelo BIRD, que contém indicadores básicos para a grande maioria dos países.

Brasil. Com B, de Botswana. Esperança de vida ao nascer: 66 anos; analfabetos adultos: 19%; taxa de mortalidade infantil: 57/1000 habitantes; recém-nascidos de pouco peso: 11%. Não satisfeito, pesquisaria dados sobre salário-mínimo capaz de propiciar alimento, moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, etc. para toda a família. Desemprego, na sua maior metrópole: mais de 1 milhão de trabalhadores. Número de indigentes: 17 milhões. Concentração da riqueza: os 10% mais ricos detêm 51,3% do total da renda. Como, tanto cá como lá, 51,3 é maior que 43, descubro, como brasileiro ou betchuano, que país segura a lanterna na fila das desigualdades de distribuição de renda do Planeta: o Brasil, mesmo que sua Constituição seja "cidadã".

Essa tem sido a minha grande preocupação enquanto legislador: é preciso que as leis não sejam, apenas, formuladas e aprovadas. Os dispositivos legais têm que ser postos a vigorar. De nada adianta as leis serem promulgadas se a realidade continua a não revogar as disposições em contrário.

É por isso que tenho me esforçado no sentido de instituir mecanismos de acompanhamento, avaliação, investigação e controle da prática dos instrumentos legais aprovados pelo Congresso Nacional. Aí se incluem as CPIs Collor/PC e do Orçamento, a luta pela instalação da CPI dos Corruptores e, mais recentemente, a minha proposta no sentido de recriar a Comissão Especial de Investigação do Governo Federal, instituída pelo ex-Presidente Itamar Franco e extinta no início do atual Governo.

A esperança de que todas essas iniciativas tomem curso com a brevidade que a realidade exige me leva, agora, a mais uma preocupação que considero fundamental: a de reforçar a importância e o significado do Tribunal de Contas da União. E, para tanto, mais uma vez é preciso, apenas, cumprir os ditames constitucionais: o conteúdo dos artigos 70 e 71 não estão em seqüência por acaso: o Congresso Nacional e o TCU se irmanam na defesa da probidade no tratamento da coisa pública. É preciso, entretanto, aproximar, mais uma vez, o texto da prática. E, pelo texto, ninguém é mais fiscalizado que no Brasil, apesar da prática teimar nas disposições contrárias.

De nada adiantará devolver a lanterna a Botswana. Quem sabe, ao contrário, ela possa iluminar corações e mentes no sentido de consolidar o "Estado Democrático", sonhado pela Assembléia Nacional Constituinte de 1988 e gravado no preâmbulo da Constituição promulgada "sob a proteção de Deus".


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/07/2003 - Página 18139