Discurso durante a 96ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

O Trabalho como sinônimo de cidadania e instrumento de auto-estima.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • O Trabalho como sinônimo de cidadania e instrumento de auto-estima.
Publicação
Publicação no DSF de 14/08/2003 - Página 23387
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, TRANSFORMAÇÃO, TRABALHO, INSTRUMENTO, GARANTIA, CIDADANIA, DIGNIDADE, JUSTIÇA SOCIAL, MELHORIA, QUALIDADE DE VIDA, POVO, PAIS.

O SR. AMIR LANDO (PMDB - RO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, “Ficarás sem pão, porque te faltará o suor do teu rosto”. Essa parece ser a versão moderna do castigo atribuído ao homem expulso do mercado de trabalho. Nem mesmo os primeiros seres humanos do universo, que desobedeceram ao mandamento do Criador, herdaram tamanha penitência. “Comerás o pão com o suor de teu rosto”, isto depois do primeiro casal ter abocanhado, pelo menos, um pedaço de maçã, ainda que fruto proibido. O trabalho, que já foi castigo no início dos tempos, transformou-se, hoje, em sinônimo de cidadania e instrumento de auto-estima, apesar de um mercado longe do significado de paraíso celestial.

Imagine-se, então, o trabalhador, rosto rude e queimado pelo sol a sol, mãos calejadas pelos guatambus da vida, depois de intermináveis vias sacras diante das estações do “não há vagas”, de volta à casa das panelas rasas e das contas cortadas, e o balbucio traduzido pelo entendimento paterno como “fome”. Que pecado teria cometido tal criatura, para suportar a dor da míngua do filho inocente? Não importa, nem mesmo a maior das culpas poderia merecer tamanha expiação. É essa a situação dos desempregados, neste início de terceiro milênio, ávidos por suor, para terem pão. Talvez a oração que o Senhor nos ensinou adquira, na voz aflita do pai desocupado, versão mais atual: “O pão nosso de cada dia, livrai do mal da fome e da miséria, o fruto do nosso ventre. Amém”.

São tamanhos contingentes que, diante da tentação da serpente da fome, podem, também, curvar-se à violência, enquanto pecado originário do desespero. Não há que haver associação linear ou direta entre miséria e violência, até porque elas são sinônimas, mas, também, não há como negar que a exclusão social cria condições favoráveis para o delito. Ninguém suporta, calado e imune, a dor do inocente.

Lembro-me da obra maravilhosa do diretor Vittório de Sica, em “Ladrões de Bicicletas”, ambientado na Itália, no imediato pós-guerra. Empoeirado nas prateleiras dos filmes clássicos, o filme é um retrato, em preto e branco, dos nossos dias. Antonio Ricci, desempregado e desesperado, dois filhos, um, recém-nascido, outro, Bruno, no início da idade da compreensão e da razão, vê-se diante de uma sonhada e disputada, oferta de emprego. Colar cartazes, obrigatória a bicicleta penhorada para o aluguel, o pão e o leite, e liberada pela mulher, Maria. No lugar do penhor, o enxoval de casamento, três jogos de lençóis usados e dois novos. Primeiro dia, sonhos à flor da pele, filho a tira-colo, primeiro cartaz, bicicleta roubada. Desespero, busca do meliante. Único dia, sonhos interrompidos. Sociedade injusta, falta de solidariedade, dignidade à prova. Lágrimas de Bruno, tentação, tentativa de roubo de bicicleta de outrem, alcançado pela multidão em fúria, perdão por pena, brios solapados. Fiapo humano. Fim.

Quantos serão os Antonios neste mundo de Deus? Ou, os Severinos, iguais em tudo na vida aos Josés, aos Pedros, aos Franciscos... Quantas serão as Marias, mães dos mesmos Brunos, dos mesmos Joões, dos mesmos... No Brasil, são milhões, cidadãos sem rosto e sem destino. São os mesmos os retratos, em preto e branco. Os mesmos retratos da vida.

Como no filme, entre o desemprego e a violência, mora o desespero. Na obra de Vittório de Sica, os atores foram pinçados da vida real; eram desempregados de seu tempo. Então, ela poderia ser ambientada, hoje, em qualquer região do Brasil. Haveria Antonios, Brunos e Marias, perambulantes nas ruas de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Porto Alegre ou de Porto Velho. Somente nas seis maiores regiões metropolitanas poderiam ser selecionados atores da vida real entre os mais de 2,7 milhões de desempregados. Todos eles aptos para representar a si próprios.

Tal película poderia apresentar dois enredos diferentes, dependendo da vontade de quem se proponha dirigi-la. No primeiro, a deterioração do relacionamento familiar e social, a perda da identidade humana, os distúrbios psicológicos, a destruição das qualificações profissionais, o aniquilamento da auto-estima e, por fim, a violência.

Neste enredo macabro, as cenas mais fortes da vida real brasileira, que resultam em homicídios, poderiam ser selecionadas entre as quase 50 mil anuais, no crime organizado que alicia Antonios e Brunos, nas esquinas dos outros meninos de rua, nas balas perdidas ou miradas, ou na banalização da vida que vale, muitas vezes, menos que um calçado, um boné, ou uma bicicleta.

No segundo enredo, um projeto de desenvolvimento nacional, a prioridade ao mercado local, a reconstrução do pacto federativo, a reforma agrária, o apoio às pequenas e médias empresas, o investimento em infra-estrutura econômica e social, a defesa da Amazônia, a redistribuição de renda, a geração de empregos, a produção de alimentos e, por fim, um país democrático, cidadão e soberano.

Este enredo luzente, nada mais seria que a tradução da índole do povo brasileiro, calcada no respeito, na justiça, na solidariedade, na cidadania, na responsabilidade, na honestidade, na dignidade, no bom senso, na tolerância, na civilidade, na educação, na família e no trabalho.

O povo brasileiro tem demonstrado que prefere produzir esse último enredo. Para tanto, deu sinais de que não se contenta, apenas, em se constituir em figurantes secundários da história. Ao contrário, quer ser ator principal. Por isso, elegeu um dos seus mais legítimos representantes para dirigi-lo. E espera o mesmo desempenho de todos os demais atores coadjuvantes. Esse mesmo povo cansou-se dos dramas, das ficções e das comédias da vida real. Ele quer construir o seu próprio documentário, para que, nas prateleiras das gerações futuras, além da inevitável poeira do tempo, os Brunos do amanhã possam reconhecer a saga de um povo que não teve medo da mudança, embora, muitas vezes, tenha lhes faltado, na arte da vida, luz e câmera. Jamais a ação.

Era o que eu tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/08/2003 - Página 23387