Discurso durante a 98ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações a respeito da reforma agrária e do programa Fome Zero.

Autor
Ideli Salvatti (PT - Partido dos Trabalhadores/SC)
Nome completo: Ideli Salvatti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA. POLITICA SOCIAL.:
  • Considerações a respeito da reforma agrária e do programa Fome Zero.
Aparteantes
José Jorge, Serys Slhessarenko.
Publicação
Publicação no DSF de 16/08/2003 - Página 23923
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, CONCENTRAÇÃO, TERRAS, BRASIL, CRITICA, IMPRENSA, MANIPULAÇÃO, INFORMAÇÃO, CONFLITO, SEM-TERRA, ILEGALIDADE, POSSE, PROPRIEDADE RURAL.
  • RESPOSTA, CRITICA, OPOSIÇÃO, PROGRAMA, COMBATE, FOME, DEFESA, PRIORIDADE, POLITICA SOCIAL, GOVERNO FEDERAL, VINCULAÇÃO, MELHORIA, DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, BRASIL, DETALHAMENTO, INSTRUMENTO, FISCALIZAÇÃO, PARCERIA, INFRAESTRUTURA, DESENVOLVIMENTO, INTEGRAÇÃO, EDUCAÇÃO, ESPORTE, EMPREGO, REGISTRO, DEPOIMENTO, CIDADÃO, BENEFICIARIO.

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, antes de falar sobre o assunto que me traz a esta tribuna, eu gostaria de tecer um comentário. Tem sido dado muito destaque, na imprensa nacional e neste Plenário do Senado, à tensão no campo. Todos os dias, há novidades, acirramentos, pronunciamentos e exigências. Foi publicada uma notícia que me chamou muito a atenção, porque o confronto está colocado entre os sem-terra e os “com-terra”.

Sempre é importante relembrar que, no Brasil, há uma concentração imensa de terra. Somos um dos raríssimos países que não fez reforma agrária e cuja concentração de terra chega ao absurdo de 1% dos proprietários deterem a propriedade de mais de 50% da terra agricultável. Todos sabemos, pela história do nosso País, como se obteve boa parte da posse dessa terra. Inclusive, já tive oportunidade de me referir, desta tribuna, à questão dos grileiros - como eram obtidos documentos falsificados de posse de terra.

Recentemente, tenho acompanhado pela imprensa uma negociação extremamente interessante que está acontecendo no Pontal do Paranapanema com os “proprietários” de terra griladas; ou seja, as autoridades reconhecem que as terras foram griladas, tendo sido obtidas pela falsificação dos documentos. Agora, estão negociando, para que esses “proprietários” paguem uma parte da terra de que se apossaram. Dessa forma, uma pequena parcela do recurso arrecadado pelo pagamento da terra obtida de forma ilegal pode ser aplicada na reforma agrária, não é, Senadora Serys?

Então, trazemos esses fatos, para que não continue o mascaramento da dura realidade, da injustiça e da violência existente na posse da terra.

A Srª Serys Slhessarenko (Bloco/PT - MT) - Senadora Ideli Salvatti, V. Exª me concede um aparte?

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Ouço V. Exª com prazer, Senadora Serys Slhessarenko.

A Srª Serys Slhessarenko (Bloco/PT - MT) - Senadora Ideli Salvatti, esse tema é realmente palpitante, é uma questão séria, é a questão da reforma agrária que está em jogo no País. Precisamos ter reforma agrária e uma política agrícola que compreenda cobrança de crédito, comercialização política de preços e tudo o mais. Quanto às terras públicas, estas existem em grande quantidade neste País. Venho dizendo que Mato Grosso não precisa mais desapropriar terras, e, com isso, vamos ter recursos para fazer a reforma agrária acontecer concretamente: ter crédito agrícola, escoamento, etc. etc. e condições de vida para a população que está no campo e de lá tira seu sustento. Por quê? Mato Grosso tem 6,6 milhões de hectares públicos na mão de pessoas que se apossaram de forma indevida. Após levantamento criterioso dessas terras, houve, de uma forma ou de outra, a regularização de 3,4 milhões de hectares, que eram públicos e que foram apossados de forma indevida. Com isso - 6,6 milhões menos 3,4 milhões de hectares -, 3,2 milhões de hectares de terras públicas, em Mato Grosso, estão nas mãos de grandes proprietários. É decisão do Governo Lula, da Presidência da República, que essas terras serão resgatadas para fins de reforma agrária. Portanto, só em Mato Grosso, 3,2 milhões de hectares de terras públicas estão nas mãos de proprietários, de forma indevida. Estes estão se rebelando e querem fazer uma guerra de contraposição ao Movimento dos Sem-Terra, ao Incra e ao próprio Governo. Apossaram-se das terras de forma indevida e, agora, querem lá permanecer. E ainda pretendem desapropriar essas terras para fins de reforma agrária...

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Com certeza.

A Srª Serys Slhessarenko (Bloco/PT - MT) - ...e, se brincar, superfaturadas, como foi no passado. Agora, o nosso Governo não vai permitir o superfaturamento que aconteceu no passado, de terras públicas lá no meu Estado - mais de três milhões de hectares.

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Senadora Serys, esta é a realidade e a verdade: é grave a situação agrária. Todos nós sabemos da tensão, mas há inúmeros falsos proprietários de terras se armando com milícia para defender algo a que não têm direito algum, em prejuízo da grande maioria da população brasileira!

Não vim à tribuna para falar sobre a reforma agrária. Falei porque este assunto está permanentemente na imprensa - inclusive, tivemos notícia ontem do registro feito por Ministro do Supremo e de atitudes que precisamos repercutir aqui.

O que me traz à tribuna é a questão do Fome Zero. Tenho acompanhado a insistência em atacar esse projeto, centro da política do Governo Lula. Registro aqui algumas questões que me parecem absolutamente pertinentes. Primeiro, a coragem do Governo Lula de colocar a fome e a miséria existentes no nosso País no centro da conjuntura; colocar a fome, a sede, a miséria e o analfabetismo como algo tão importante, equivalente a todos os outros debates. Quando se debatem políticas macroeconômicas, juros, câmbios, a relação PIB/dívida, política de ciência e tecnologia, política industrial, normalmente, - e isso tem sido a tônica -, esquece-se que isso tudo acoberta uma realidade dura, indigna e injusta para com a grande maioria do povo brasileiro.

Então, quando o Governo Lula coloca no centro da conjuntura, como política central, o Programa Fome Zero, estabelece-se exatamente uma equivalência: é tão importante resolver a política de ciência e tecnologia deste País quanto resolver o problema da fome e da sede; é tão importante ter uma política industrial quanto uma política para erradicar o analfabetismo.

Não podemos esquecer, em hipótese alguma, que, ao longo das três últimas décadas, o Brasil não modificou, não mexeu uma vírgula na distribuição de renda; ou seja, a distribuição da riqueza no nosso País está absolutamente congelada nos patamares há mais de três décadas. Portanto, colocar no centro do debate, como centro de política, como eixo de governo o Fome Zero é algo que requer muita coragem. Pode parecer coisa pouca, pode parecer insignificante, mas não é possível garantir três refeições ao dia para todos os brasileiros, para mais de cento e setenta milhões de pessoas, sem executar uma verdadeira revolução. Impossível garantir as três refeições ao dia sem mexer em estruturas injustas da posse da terra, da questão urbana, da distribuição de renda, da questão das políticas públicas de saúde, de educação, de saneamento. Ou seja, não é possível garantir três refeições ao dia sem virar este País pelo avesso. É preciso reverter todas as políticas que, infelizmente, ao longo de décadas, de séculos, beneficiaram apenas parcelas ínfimas da população em detrimento da maioria - infelizmente, foi isso o que ocorreu na maior parte das vezes.

O Fome Zero tem sido criticado como assistencialista, como pontual, como algo de menor importância. Para poder atingir o seu objetivo central, que é todos poderem comer, precisam ser feitas sérias alterações em estruturas antigas. O Programa Fome Zero tem tomado atitudes, implementado políticas que, muitas vezes, passam despercebidas por não serem políticas cujos resultados se tornam visíveis do dia para a noite, estatisticamente medidos, mensuráveis rapidamente.

Alguns eixos centrais do programa me parecem de fundamental importância. Um deles é o fato de o Fome Zero, que se implementa nos municípios, implementar-se com a participação popular, os conselhos gestores. Ou seja, a população diretamente atingida é responsável pela fiscalização do programa. Essa medida aparentemente insignificante possibilitou a detecção, de imediato, de desvios de recursos da ordem de 15 a 20% nos programas implantados anteriormente pelo Governo Fernando Henrique. Os cartões destinados aos parentes, aos amigos, aos familiares, aos funcionários das prefeituras só puderam ser detectados com a fiscalização de quem é do município, de quem sabe quem é quem.

Há situações como a do Prefeito de Guaribas, que está sendo processado pelo Ministério Público por todos os desvios. Isso é algo que está diretamente vinculado ao trabalho do conselho gestor do Fome Zero. As denúncias precisam ser comprovadas.

Há políticas anexas, como a da alfabetização; políticas emergenciais, como cesta básica para os acampados, para as comunidades indígenas, para os quilombolas; a merenda escolar, que foi uma medida de primeira hora, quando foi alterado o repasse de 0,06 para 0,13 - ou seja, mais de 100% de reajuste no valor da merenda, para que as nossas crianças pudessem ter, na escola, acesso a uma merenda, a uma alimentação de maior qualidade, pois sabemos que uma boa parte das nossas crianças muitas vezes só faz a refeição da escola.

Há que se mencionar também a ligação do Programa Fome Zero com o abastecimento de água, com a construção das cisternas - a propósito: uma parceria com a Febraban possibilitou a construção de milhares de cisternas para garantir o abastecimento de água. Há também as ações vinculadas à agricultura familiar - o Plano Safra, o Pronaf -, já que uma parte significativa da miséria brasileira está instalada no campo. Trata-se, portanto, de dar condições de vida digna aos nossos pequenos agricultores, algo que é de fundamental importância no combate à fome e à miséria.

Todas as parcerias desenvolvidas com o Ministério dos Esportes, Ministério do Meio Ambiente e o Programa Primeiro Emprego fazem parte do arcabouço das políticas integradas de governo que têm como objetivo central o Fome Zero.

Gostaria, porém, de falar a respeito daquilo que é impossível mensurar, as ditas estatísticas impossíveis. Podemos medir várias coisas, podemos mensurar, fazer cálculos e ter indicadores de muitas coisas, mas felicidade, auto-estima, o sentimento de acolhimento, de estar em ambiente agradável são difíceis de ser medidos. O que me chama a atenção no Programa Fome Zero é que as estatísticas impossíveis podem ser retratadas com histórias de vida comoventes que dão uma idéia do significado desse programa, dos resultados que vem obtendo ao ser implementado.

Gostaria de me referir a alguns textos que trazem essas estatísticas impossíveis. Há um texto de Roberto Malvezzi, que é membro da coordenação nacional da CPT, a Comissão Pastoral da Terra, em que se lê o seguinte:

‘O que está acontecendo em Guaribas [um dos primeiros municípios a ter implantado o Fome Zero] é uma revolução’. Essa frase - dita por um trabalhador numa assembléia de trabalhadores rurais de Pilão Arcado, Bahia, vizinho de Guaribas - revela o que pensa o “olho de fora” a respeito do que o “Fome/Sede Zero” anda fazendo aqui em nossa região. São vizinhos, mas vêem. E o que é essa revolução para eles? “Agora o povo tem água tratada; as casas velhas foram reformadas; as casas do interior agora têm cisternas; o pessoal está sendo alfabetizado; houve produção e o governo comprou a safra; a turma recebe um dinheirinho para comprar comida.

Que revolução mais insignificante, não? Insignificante uma ova. Só não valoriza a água tratada, a cisterna, a casa limpa quem nunca bebeu lama, nunca morou em barraco e nunca viu um filho chorar de fome. A revolução para nosso povo passa pela satisfação das necessidades mais primárias da pessoa humana. Teremos que repetir à exaustão que 50 milhões de brasileiros passam fome, 40 milhões não têm acesso a água potável e mais 60 milhões não têm segurança quanto à água que consomem, mesmo tendo água encanada? Teremos que repetir que 50% dos lares brasileiros não têm coleta de esgoto e 80% do esgoto coletado é jogado em bruto nos rios? Então, água tratada, cisterna, comida, casa digna é sim a revolução.

Esse texto do Roberto Malvezzi foi completado com...

O Sr. José Jorge (PFL - PE) - Senadora Ideli Salvatti, V. Exª me permite um aparte?

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Pois não, Senador José Jorge.

O Sr. José Jorge (PFL - PE) - Ao mesmo tempo em que manifesto a minha concordância com a importância do abastecimento d’água e do saneamento básico, gostaria de lembrar a V. Exª que, na verdade, o objetivo do Governo Federal deve ser ter uma política de abastecimento d’água e de saneamento básico que contemple todo o País e não apenas um município.

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Com certeza.

O Sr. José Jorge (PFL - PE) - Reconheço também que é preciso começar por algum lugar, mas, na verdade, o que constatamos até agora é que não existe ainda uma política definida para o País. Essa política social, município por município, é lenta. Estamos com oito meses de Governo e V. Exª está apresentando o resultado do primeiro município. O Governo Federal atuar em um município específico de forma integrada não é difícil, devido ao tamanho do Governo Federal e ao diminuto tamanho desse município do interior do Piauí. Convocamos para a Comissão de Infra-Estrutura desta Casa, no dia 26 se não me engano, o Ministro das Cidades, Olívio Dutra, para que converse com os Senadores sobre uma política nacional de saneamento básico que possa contemplar não só os municípios pequenos, que estão nesse programa social, o Fome Zero, mas também todo o País. Digo isso porque, no meu Estado de Pernambuco, por exemplo, temos uma enorme obra de abastecimento de água que foi paralisada e que até agora não foi concluída, exatamente porque essa política ainda não foi definida. Concordo com V. Exª quando diz que essa iniciativa é importante, mas ela será mais importante no momento em que isso for repassado para o total da população. Muito obrigado a V. Exª.

A SRª IDELI SALVATTI (Bloco/PT - SC) - Com certeza, nobre Senador José Jorge. Temos a convicção de que isso vem acontecendo, porque o Programa Fome Zero tinha como objetivo atingir, até o final de 2003, em torno de mil Municípios. E esse objetivo já estará sendo alcançado no mês de outubro. Esta é a previsão: vamos poder antecipar a meta de mil Municípios já no mês de outubro.

O nosso entendimento é o de que essa política deve valer para todo o Brasil. Mas, nessa política, infelizmente - e não posso deixar de dizer isto -, a questão do saneamento básico não foi implementada. Nos últimos dois Governos, não houve liberação de recursos para o saneamento básico. No meu Estado, por exemplo, é lamentável a situação. Em Santa Catarina, há índices de saneamento inferiores aos de uma boa parte dos Estados do Nordeste. Essa questão do saneamento, indiscutivelmente, não foi prioridade do Governo anterior, mas, no Programa do Governo Lula, está sendo cuidada com muita e especial atenção.

O Município de Guaribas é emblemático, porque, como ele foi o primeiro, os resultados já podem ser medidos, inclusive por essas estatísticas não mensuráveis, impossíveis de serem contabilizadas em números, visto que lá não havia uma única torneira, não havia nenhum tipo de abastecimento de água. As mulheres pegavam a lata d’água de noite, andavam de quatro a cinco quilômetros para chegar à gruta e recolher água. Faziam isso diversas vezes, passavam a noite buscando água para poderem tê-la em quantidade suficiente no dia seguinte. Portanto, apenas políticas integradas podem resolver o problema da miséria.

Estou com o meu tempo já esgotado, mas eu gostaria de relatar algumas questões das tais estatísticas não mensuráveis, porque essa simples medida de poder ter a água, este elemento tão necessário à vida, modifica de forma significativa o quotidiano das pessoas.

Para não me alongar e nem usar o tempo dos demais inscritos, quero apenas dizer que o Programa Fome Zero, ao colocar, no centro do debate nacional, as questões que sempre ficaram como subprodutos da política econômica adotada pelos Governos anteriores, teve da parte do Governo Lula um tratamento absolutamente revolucionário, sob a ótica de que só é possível este País ter soberania e dignidade se tratarmos a questão da fome e da miséria como eixo central da nossa ação política. Para tanto, todas as demais políticas deverão ser decorrentes e estar a serviço desse objetivo.

Ao encerrar, Sr. Presidente, peço desculpas pelos três minutos a mais que passei do meu tempo.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/08/2003 - Página 23923