Discurso durante a 99ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Comentários sobre a matéria "Um gesto que pode salvar", publicada na Revista Veja, edição de 20 de agosto de 2003.

Autor
Lúcia Vânia (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/GO)
Nome completo: Lúcia Vânia Abrão
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE.:
  • Comentários sobre a matéria "Um gesto que pode salvar", publicada na Revista Veja, edição de 20 de agosto de 2003.
Publicação
Publicação no DSF de 19/08/2003 - Página 24026
Assunto
Outros > SAUDE.
Indexação
  • SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, ARTIGO DE IMPRENSA, PERIODICO, VEJA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), REFERENCIA, TRANSPLANTE DE ORGÃO.
  • COMENTARIO, TRAMITAÇÃO, SENADO, PROJETO DE LEI, IMPEDIMENTO, ALTERAÇÃO, ORDEM, NOME, RELAÇÃO, EXPECTATIVA, REALIZAÇÃO, TRANSPLANTE DE ORGÃO.
  • REGISTRO, IMPORTANCIA, CAMPANHA, INCENTIVO, DOAÇÃO, ORGÃO HUMANO.

A SRª LÚCIA VÂNIA (PSDB - GO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, venho neste momento à tribuna para destacar matéria especial da revista Veja sobre transplantes, publicada na edição número 33 de agosto de 2003.

O tema é extremamente oportuno e por isso solicito sua inclusão nos Anais da Casa, uma vez que foi aprovado na última reunião da Comissão de Assuntos Sociais o Projeto de Lei da Câmara n.34 de 2002 que proíbe a alteração da ordem dos nomes da lista única de espera de transplantes.

O projeto ainda retorna ao Plenário do Senado e visa impedir que os mais abastados desrespeitem a fila de espera, a não ser em caso de iminência de óbito.

Ressalto ainda que, por sugestão do Senador Leomar Quintanilha, faremos gestão junto ao Ministério da Saúde para que realize uma campanha em favor da doação de órgãos. A Comissão de Assuntos Sociais conta com a experiência de vários médicos e pode oferecer uma contribuição efetiva ao aumento de transplantes em nosso país.

 

*************************************************************************

DOCUMENTO A QUE SE REFERE A SRª SENADORA LÚCIA VÂNIA EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210 do Regimento Interno.)

*************************************************************************

Um gesto que pode salvar

Falta de doadores deixa por um fio 
a vida de mais de 50 000 brasileiros 
que esperam por um transplante

Lucila Soares

A única coisa certa da vida é a morte. Ainda assim, é muito difícil lidar com sua proximidade. Imagine, então, o que é estar na iminência de uma morte que a medicina pode evitar. É dessa forma que vivem os 56 364 brasileiros que estão na fila de espera por um transplante. Eles podem morrer não porque faltem recursos, tecnologia, médicos, remédios ou hospitais. Faltam órgãos. O drama dessas pessoas é depender de um gesto que só outro ser humano pode fazer - mas a maioria não faz. No Brasil há 5,6 doadores por milhão de habitantes. Em Portugal, por exemplo, essa relação é de 21,7 por milhão (veja quadro abaixo). O resultado é trágico. Neste ano serão realizados no país cerca de 6 600 transplantes, o que atende apenas 11,7% dos que estão na espera. A fila só não anda mais devagar porque quase metade dos pacientes morre antes de conseguir um transplante.

A maioria dos que recebem a notícia de que precisam de um transplante se sente, num primeiro momento, diante de uma sentença de morte. Mas em seguida vem a reação - uma reação quase heróica. O engenheiro paulista Eduardo Sirianni, 41 anos, descobriu há oito que sofre de grave insuficiência renal. Desde então, mudou radicalmente seus hábitos e consegue trabalhar normalmente. Sirianni encara com serenidade o fato de todas as noites ter de submeter-se à diálise peritoneal, plugando-se por oito horas a uma máquina que, através de um cateter, injeta na cavidade abdominal um líquido que filtra seu sangue. "A doença dá uma segunda chance de vida, que exige organização, planejamento e modificação interior", diz. Com apenas 5 anos, a pequena Gabriela Espírito Santo também está na fila do transplante de rim e consegue levar vida quase normal. Ela discorre com desenvoltura sobre diálise peritoneal e sonha com o dia em que vai "tirar a borracha da barriga". "Ela nem sabe o que é transplante, só sabe que pode ficar boa um dia", comenta Maria Luiza Centellez, mãe de criação da menina.

Em boa parte dos casos, entretanto, a vida normal torna-se gradativamente impossível. O cotidiano resume-se, muitas vezes, a lutar contra a morte. Vira uma rotina de sofrimento físico, que inclui depender de cilindros de oxigênio para respirar e suportar náuseas, dores de cabeça e outros efeitos colaterais de dezenas de remédios. A professora mineira Lídia Almira dos Santos, de 37 anos, sofre de uma doença pulmonar rara, que tira seu fôlego e exige um esforço sobre-humano para os movimentos mais rotineiros, como tomar banho ou comer. Por causa do problema, Lídia teve de tomar hormônios que anteciparam a menopausa e foi aposentada por invalidez. Em março, depois de quatro anos de tratamento, mudou-se de Caxambu para São Paulo e entrou para a fila do transplante de pulmão. A angústia da espera a consome. "É duro saber que estou piorando e não poder fazer nada", diz.

Essa angústia seria muito menor se não houvesse uma cruel conjugação de fatores, que começa pela subnotificação de mortes às centrais de transplantes, segue na falta de comunicação com os parentes dos possíveis doadores e culmina na recusa das famílias em permitir a retirada de órgãos dos mortos. O exemplo do Rio de Janeiro dá a dimensão do problema. Morrem no Estado cerca de 90.000 pessoas por ano. Dessas, pelo menos 900 poderiam ter morte cerebral (ou encefálica, no jargão médico), condição necessária para a doação de órgãos. Mas a central de transplantes do Estado recebeu apenas 300 notificações em 2002, o que, devido às exclusões clínicas e recusas, resultou em 107 doadores.  

 

Fotos Claudio Rossi

"Peço a Deus para ajudar nas coisas mais simples. Banho para mim não é prazer, é hora de stress. Fico exausta. Acordo com as mãos e a boca roxas por falta de oxigenação. Mas eu passo por tudo isso porque amo a vida e sonho com tudo o que um pulmão sadio pode trazer de volta. Quem está nessa situação só tem duas opções: definhar até morrer ou sonhar e lutar. Eu escolhi a segunda."

Lídia Almira dos Santos, mineira, 37 anos, professora, aguarda por um transplante de pulmão

Os números formam um quadro alarmante. A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos estima que, de cada dez famílias de potenciais doadores, apenas uma seja abordada. Desse minguado total, quase 60% negam a doação. É um porcentual alto se comparado ao da Espanha, onde a proporção é de 20%. Não se trata de simples egoísmo, tampouco apenas da questão genericamente batizada como "cultural", área na qual é evidente que Brasil e Espanha têm muito mais semelhanças que diferenças. O que separa os dois países é o nível de informação. Na Espanha, o sistema de transplantes foi criado em 1985. Desde então, todo espanhol ouve falar em doação de órgãos desde criança. Quando morre alguém da família, ele pode até não doar, mas não por ignorância.

Aqui, o sistema foi criado em 1997. E, do ponto de vista da comunicação, teve uma estréia desastrosa ao transformar todo brasileiro em doador compulsório de órgãos, a não ser por expressa manifestação em contrário. Sem uma campanha de esclarecimento, a população correu da raia, assombrada pelo fantasma do tráfico de órgãos. Em 1998, 60% dos que tiraram carteira de habilitação optaram por declarar-se não-doadores. Revogada a lei, o brasileiro continua, normalmente, só tomando contato com o tema em duas circunstâncias. Ao descobrir que ele próprio ou uma pessoa querida precisa de um transplante, ou ao ser abordado por uma equipe de busca de órgãos quando acaba de perder um parente. Não pode dar certo. Até porque, como lembra o médico Milton Glezer, que coordena a procura de órgãos do Hospital das Clínicas de São Paulo, o doador ideal é jovem e morreu subitamente, de morte violenta ou acidente vascular cerebral. "Fazemos contato com famílias chocadas por uma morte nessas circunstâncias para falar num assunto sobre o qual a maioria nunca pensou", diz.

Nesse momento ficam claras duas barreiras. A primeira é cultural. A idéia enraizada em todos nós é que a morte ocorre quando o coração pára de bater e cessa a respiração. Mas os transplantes de órgãos são feitos a partir de indivíduos com diagnóstico de morte cerebral. São pessoas efetivamente mortas: seu cérebro, incluindo a parte que desempenha funções vitais, como o controle da respiração, não funciona mais. No entanto, a respiração e os batimentos cardíacos são mantidos por aparelhos - medida essencial ao transplante, porque, se não forem irrigados, os órgãos perdem rapidamente as condições de aproveitamento. É difícil admitir uma morte com essas características. O drama é que o transplante é uma corrida contra o tempo. Um coração, por exemplo, só pode ser utilizado até no máximo quatro horas depois da morte do doador. Muitas vezes, quando vem a autorização, a doação já é inviável.

"Quando descobri que precisava de um transplante, todo mundo me encarou como alguém que está morrendo, quase um cadáver. Não sou cadáver. Estou vivo, mais vivo do que antes. Quisera ser um cara saudável com os hábitos que tenho hoje. A doença é um farol amarelo, que mostra que ninguém é invencível. E o transplante não dá invencibilidade a ninguém, mas uma segunda chance."

Eduardo Sirianni, paulista, 41 anos, engenheiro eletrônico, aguarda por um transplante de rim

A segunda barreira é a falta de confiança num sistema de saúde que não dá assistência às famílias. Quem já teve de buscar notícias de um parente num grande hospital de emergência sabe que não é tarefa fácil. Muitos só ganham um interlocutor quando o familiar morre e vem o pedido de doação. Fechando o ciclo perverso, os profissionais de saúde não têm praticamente nenhum contato com o tema em sua formação e trabalham sob pressão, com pacientes gravíssimos e UTIs lotadas. "Os médicos acham que o indivíduo em morte encefálica está perdido e deve dar lugar a alguém que pode ser salvo. A maioria não percebe que esse é um elo de vida", avalia Milton Glezer.

São situações muito novas quando se leva em conta que os primeiros transplantes de órgãos datam da década de 50 do século passado e que só há pouco mais de vinte anos passou a ser possível controlar a rejeição através de medicamentos. A chance de sucesso de um transplante hoje é da ordem de 90%, em média. No Brasil, o número de transplantes praticamente dobrou entre 1997 e o ano passado. As listas de espera foram unificadas por Estado, acabando com uma superposição que facilitava favorecimentos e até comércio de órgãos. Hoje, qualquer paciente tem acesso ao cadastro de que faz parte. São avanços que acabam tendo o efeito reduzido pela falta de doadores, como admitiu a VEJA o ministro da Saúde, Humberto Costa, que planeja uma campanha de esclarecimento para este segundo semestre.

Reação emocionada - Antes tarde do que nunca. Em pelo menos duas ocasiões, a televisão foi responsável por um pico no número de candidatos à doação. Na novela De Corpo e Alma, de 1992, a personagem Paloma (Cristiana Oliveira) recebeu um transplante de coração e provocou enorme curiosidade em relação ao tema. Há pouco mais de dois anos, o drama de Camila (Carolina Dieckmann) em Laços de Família comoveu o Brasil. Agora, a morte de Fernanda (Vanessa Gerbelli) em Mulheres Apaixonadas deve provocar fenômeno semelhante. Mas não basta contar com a reação emocionada a apelos desse tipo. "A doação deveria ratificar uma escolha já feita. Não ser uma decisão num momento de perda, decepção, raiva", comenta o psicólogo Gustavo Matta, que trabalhou por treze anos na captação de órgãos da central de transplantes do Rio de Janeiro.

Nada mais lógico, como demonstra a experiência do Banco de Olhos de Sorocaba, no interior de São Paulo. Lá, começou em 1984 um programa de captação de córneas que atingiu padrão de eficiência comparável aos melhores índices internacionais: a espera não passa de seis meses, contra uma média nacional de três anos. "O segredo é trabalhar em todas as frentes - escolas, igrejas, clubes", acredita Pascoal Martinez Munhoz, presidente do Banco de Olhos. É na tecla da informação que bate o editor carioca Geraldo Jordão Pereira, 65 anos. Ele recebeu um transplante de fígado no ano passado, depois de três anos de espera e várias recusas de familiares de possíveis doadores. Jordão tornou-se militante da causa da doação de órgãos ao longo desse processo, iniciado com o diagnóstico de hepatite C contraída numa transfusão de sangue. E espanta-se com a pouca importância dada ao tema. "É um descaso estarrecedor", diz o editor.  

 

Jarbas Oliveira

"Achava que estava bem e de uma hora para outra descobri que estou doente. É duro. Isso muda a gente. Eu achava que a vida era só viver, viver, curtir, sem possibilidade de a morte chegar. Não era doador, nunca tinha sido estimulado a pensar nisso. Se as pessoas soubessem da importância de um órgão para quem está esperando o transplante, haveria mais doadores."

Francisco Jacinto da Costa, potiguar, 49 anos, funcionário do Banco do Brasil, aguarda por um transplante de fígado

Jordão ganhou uma nova vida, assim como o gaúcho João Carlos Cechella, 50 anos, coração dez anos mais novo, transplantado em 1989. Ambos têm depoimentos semelhantes. Aprenderam a aproveitar melhor o presente e a usufruir alegrias que parecem pequenas a quem nunca enfrentou problema desse tipo. O mesmo aconteceu com o pequeno empresário paulista Antônio Bonini, de 47 anos. Em novembro do ano passado, depois de treze anos doente, dos quais sete impossibilitado de trabalhar, e dois na fila do transplante de pulmão, Bonini recebeu um telefonema. Achou que era trote. Não era. Há pouco mais de um mês, foi ao cinema com as filhas pela primeira vez. "É uma alforria", diz.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/08/2003 - Página 24026