Discurso durante a 105ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre o acidente ocorrido na base de Alcântara - MA. Analise sobre o projeto espacial brasileiro.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.:
  • Considerações sobre o acidente ocorrido na base de Alcântara - MA. Analise sobre o projeto espacial brasileiro.
Publicação
Publicação no DSF de 27/08/2003 - Página 25054
Assunto
Outros > POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.
Indexação
  • COMENTARIO, INICIO, PROGRAMA, DESENVOLVIMENTO TECNOLOGICO, PESQUISA ESPACIAL, BRASIL, INICIATIVA, AERONAUTICA, FORMAÇÃO, MISSÃO ESPACIAL COMPLETA BRASILEIRA (MECB), INSTITUTO TECNOLOGICO DE AERONAUTICA (ITA), CRIAÇÃO, CENTRO TECNICO AEROESPACIAL (CTA), INSTITUTO DE PESQUISAS ESPACIAIS (INPE), RESPONSABILIDADE, MINISTERIO DA DEFESA, MINISTERIO DA CIENCIA E TECNOLOGIA (MCT).
  • DEFESA, MANUTENÇÃO, PROGRAMA, PESQUISA ESPACIAL, BRASIL, NECESSIDADE, AUMENTO, ATENÇÃO, PODER PUBLICO, EDUCAÇÃO, PROGRESSO, PESQUISA CIENTIFICA E TECNOLOGICA, MELHORIA, PRODUTIVIDADE, CRESCIMENTO ECONOMICO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL.
  • CRITICA, ATUAÇÃO, PAIS, PRIMEIRO MUNDO, MONOPOLIO, CONHECIMENTO, IMPOSIÇÃO, OBSTACULO, EXPANSÃO, ATIVIDADE CIENTIFICA, TECNOLOGIA, PAIS EM DESENVOLVIMENTO, DEFESA, AUMENTO, RECURSOS, INCENTIVO, ATIVIDADES AEROESPACIAIS, AUTONOMIA, DESENVOLVIMENTO TECNOLOGICO, BRASIL.
  • REGISTRO, ATUAÇÃO, ORADOR, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, INVESTIMENTO, PESQUISA CIENTIFICA E TECNOLOGICA, ANTERIORIDADE, PROPOSTA, PARTICIPAÇÃO, PAIS, AMERICA LATINA, CRIAÇÃO, ENTIDADE, DEFESA, DESENVOLVIMENTO TECNOLOGICO.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Como Líder. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, agradeço ao Líder do meu Partido por ceder-me este espaço para vir à tribuna.

Volto a tratar do trágico acidente verificado na base de Alcântara, na última sexta-feira, que até hoje comove o País.

Venho à tribuna para retirar deste episódio um ponto positivo, no sentido de jamais recuarmos em perseguir o domínio da tecnologia de lançamento de satélites pelo Brasil. Acredito que esta é a maior homenagem que poderíamos prestar a todos aqueles que perderam a vida com este objetivo.

Quero recordar que a Aeronáutica foi pioneira na tentativa de dominar a tecnologia aeroespacial. Desde 1950 existe o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, ITA, hoje uma referência na formação de recursos humanos. Depois, veio o Centro Técnico Aeroespacial, com seus Institutos de Aeronáutica e Espaço e de Estudos Avançados, Fomento e Coordenação Industrial. Desse conjunto saiu o projeto da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), para lançar, com tecnologia nacional, foguetes e satélites. Foi uma luta árdua, que acompanhei muito de perto. Desenvolveram-se os foguetes Sonda 1, 2, 3 e 4. Lutou-se contra restrições internacionais, embargos e proibições. O Inpe, órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, com os mesmos embaraços, ficou com a responsabilidade dos satélites, e o CTA, com os vetores.

Em janeiro de 2000, chocado com a perda do Saci 2, eu avisava, em artigo que escrevi à Folha de S.Paulo, que o projeto tinha entrado em fase de agonia. Faltava dinheiro, faltava uma política de pessoal. Não segurávamos os nossos cientistas e não tínhamos condições de recrutar novos cientistas. O engenheiro Jaime Poscov, o Von Braun da corrida espacial brasileira, dedicou toda a sua vida a esse projeto e foi aposentado com R$920,00, no ano de 2000.

Perdemos nossos primeiros foguetes. Mas lembremos que os americanos tiveram centenas de fracassos e não desertaram. Recentemente, ocorreram as perdas das sondas a Marte, programa de milhões e milhões de dólares. O Ariadne 2, foguete francês de alta tecnologia, de US$8 bilhões, também não obteve êxito.

A base de Alcântara, como todos sabem, pela localização, consome metade de propelente e carrega o dobro de carga útil que vai ao espaço. Não podemos jogar fora essa dádiva da natureza, esse trunfo do Brasil. Assim, cabe-nos prestigiar a Força Aérea Brasileira que, desde o princípio, persegue esse projeto, e o Programa Espacial Brasileiro, e não maldizermos os insucessos, desprezando o idealismo e a garra dos pioneiros que têm prestado tantos serviços ao nosso País. O Programa Espacial, assim, não pode nem desaparecer, nem ser postergado e deve ter ajuda para continuar.

Repete-se, hoje, corroída ao longo da década, a situação alarmante que encontrei no início do meu Governo: laboratórios paralisados por falta de recursos; o valor das bolsas em declínio; a comunidade científica descrente do Poder Público e o investimento no setor descendo a níveis baixíssimos, o que nos colocava em posição de inferioridade marcada, não só em relação a países desenvolvidos, mas mesmo em comparação com países que, como nós, lutam ainda para desenvolver-se. Com consciência da gravidade do problema, invertemos a situação e, com muito esforço, mantivemos uma média anual de investimentos, na área de ciência e tecnologia, acima de 1% do PIB.

O novo século, este em que estamos vivendo, exige o fim do monopólio do saber, somente objeto de comércio e na mão dos países que dominam tecnologias. O Brasil jamais será o País que sonhamos se não nos dedicarmos agora, e logo, a essa tarefa redentora de estar presente nesse campo decisivo, que é o conhecimento humano em que se jogam os destinos da História.

A educação passa a ser, nessa paisagem, o mais dramático e inadiável de todos os problemas do Brasil. Nosso País, infelizmente, tem colocado a ciência e a tecnologia fora de suas prioridades. Isso é, lamentavelmente, uma realidade que temos que reconhecer. Os recursos que estavam alocados para o setor foram sistematicamente, ao longo dos últimos anos, menores do que em 1989 - recordo essa data porque fui testemunha do esforço daquele tempo. Esse fato é mais preocupante porque sabemos que, hoje, a ciência e a tecnologia são, talvez, mais importantes para o processo produtivo do que os recursos naturais, os equipamentos industriais e a própria mão-de-obra. Este século será marcado pelos países que dominam tecnologias e os países sem acesso ao saber serão, inevitavelmente, colonizados: uma nova forma de escravidão cultural a que estaremos destinados se não perseguirmos o projeto de tornar o Brasil uma potência científica, cultural e tecnológica.

O Brasil não pode ter o sonho de ser uma potência econômica se não for, repito, uma potência científica e culturalmente desenvolvida. Por outro lado, não podemos esperar a homogeneização de nossas estruturas sociais para enfrentar o desafio do progresso científico e tecnológico. Será, também, um erro separar a produção científica das condições sociais que presidem sua elaboração. O desenvolvimento econômico e tecnológico não pode ser exercido em um vácuo social. Depende de uma série de fatores institucionais, econômicos e propriamente científicos. Cada vez mais, o sistema produtivo passou a depender de uma infra-estrutura de conhecimentos, que exige um esforço coletivo.

Os países de nosso nível vivem o drama de perseguir sistemas produtivos mais modernos e mais eficientes, mas os países avançados criam dois impedimentos restritivos: o monopólio do saber e a tendência a cercear a difusão do conhecimento tecnológico. Fazem isso de todas as maneiras, com pressões econômicas, financeiras e diplomáticas. Para dar um exemplo, o acordo para utilização da base de Alcântara firmado com os americanos, que foi recusado pelo Congresso, tinha e tem uma cláusula impedindo uso de recursos resultantes da utilização da base no desenvolvimento de tecnologia espacial.

Sem dúvida, essa restrição decorre da visão que os países desenvolvidos têm, tendo à frente os Estados Unidos, de que estão destinados a preservar o futuro da Humanidade. É uma idéia generosa, sem dúvida, e, por isso mesmo, eles buscam, no mundo inteiro, restringir tecnologias de vetores, de foguetes, com receio de que eles possam conduzir ogivas nucleares, químicas e bacteriológicas. Assim, todas essas restrições são feitas para se evitar que a tecnologia desses vetores seja dominada por países além daqueles do grupo fechado que atualmente detém esses conhecimentos.

Por isso mesmo, os países têm que se dedicar a si mesmos, como o Brasil tem feito, num esforço de trinta anos, buscando desenvolver a sua tecnologia, porque não podemos comprá-la, não podemos importá-la e todos os caminhos que buscamos para avançar nesse setor foram fechados.

Sou testemunha, como Presidente da República, de que mesmo na área dos computadores de quinta geração, não tínhamos condições de comprá-los senão diante de um acordo de que não os utilizaríamos para pesquisa de natureza nuclear ou que importasse o envolvimento dessas áreas.

Acredito, apesar de todas as restrições, que o mundo do futuro será aquele em que os saberes não serão comercializados, mas patrimônio da Humanidade. Esse é um tema que sempre defendi e tive a oportunidade, quando fui honrado a receber um título na Universidade de Pequim, de dizer que todo conhecimento humano é resultado da acumulação da aventura humana na face da Terra.

Nós chegamos ao conhecimento do domínio dos satélites porque o homem da Pedra Lascada começou a fazer os seus machados de pedra, acumulando conhecimento ao longo do tempo de tal maneira que, hoje, nós tivéssemos perspectiva de dominar o conhecimento atual e, ao mesmo tempo, no futuro, poder criar uma civilização que enfrente a sobrevivência da própria Humanidade, a sobrevivência do nosso próprio Planeta.

Todo progresso científico nasce da bagagem de conhecimento acumulado, desde o homem do tempo das cavernas. O saber tem que ser universal e, no dia em que isso acontecer, toda a inteligência humana junta poderá, sem dúvida, transformar o nosso planeta. Não haverá mais barreiras para o saber nem lugar para o pessimismo, porque o homem estará apto a modificar os meios de produção, viajar às profundidades da lei da criação, para a descoberta de novas fontes de energia, criando amplas perspectivas para melhorar as nossas vidas.

Acredito que a grande transformação do mundo será feita pela ciência e a tecnologia. Foram elas que derrubaram as ideologias. Serão elas que recriarão uma nova ideologia, de um mundo solidário, sem desníveis regionais nem injustiças sociais. Para isso, é necessário colocar os saberes a serviço de toda a Humanidade e não como monopólio dos países ricos.

Reconheço que, no instante atual da Humanidade, é necessário um conjunto de regras internacionais, destinadas a evitar a proliferação de armas que possam, de alguma maneira, ameaçar a nossa civilização, ameaçar o futuro da Humanidade ou ameaçar a sobrevivência do próprio planeta.

Fui, em setembro de 1989, nessa visão, ao Fermilab, o laboratório de partículas elementares dos Estados Unidos, que fica perto de Chicago, onde se iniciaram os estudos destinados às maiores descobertas da física.

Como Presidente da República fui ao Fermilab para prestigiar um conjunto de cientistas brasileiros que lá estudavam Física Pura, estavam também participando na busca das partículas fundamentais, onde se avançou muito, inclusive com a descoberta, ali, do neutrino tau, a última dessas partículas.

A primeira pergunta que se faziam aqueles homens que ali trabalhavam era a de a saber o porquê daquela visita de um Presidente de um País da América Latina, região que não está inscrita entre as que se interessam por tecnologia de ponta e tem problemas bem maiores.

Recordo-me que, às vésperas de minha visita, o time de baseball de Chicago, muito famoso nos Estados Unidos, havia ganhado o campeonato mundial, em Boston. Então, perguntou-me o Professor Lederman - o grande descobridor do quark, e do neutrino, essa partícula que atravessa a matéria, sem que ela possa ser detectada; e pelo qual recebeu o prêmio Nobel - o motivo de minha visita àquele laboratório, prestigiando-os. Então, não encontrando outra resposta, resolvi utilizar um recurso jocoso, e disse-lhe: “Vim apenas congratular-me com os cientistas pela vitória do time de baseball de Chicago, ontem”. Então, descontraímos o ambiente e ele foi me explicar, exatamente como um grande cientista - acho que os homens que dominam completamente o conhecimento podem transformar as coisas mais complexas em coisas muito simples. E ele, então, me deu a seguinte lição - em face daquela parafernália extraordinária que ali existia, de aparelhos para detectar partículas que caminham a velocidades extraordinárias -: “Aqui, estamos brincando, Senhor Presidente, com essas caixas, que são as caixas de estrutura da matéria. Então, nós as quebramos. Hoje, quebramos essa caixa e olhamos o que tem dentro, outra; quebramos a outra e vamos verificar o que tem dentro, ainda outra; quebramos a outra... E, assim, com simplicidade, ele me explicou o que eles faziam ali, que era buscar a estrutura básica da matéria, a partícula fundamental, que até hoje se procura descobrir, fonte de toda a energia.

Eu, então, disse-lhe que, “como País em desenvolvimento, o Brasil aprendeu com esforço que a modernização não se origina apenas na determinação da sociedade de transformar-se e aperfeiçoar-se. Deter tecnologias é estar no centro das decisões. Houve um tempo em que território era sinônimo de poder. Hoje, o poder se confunde com o saber.”

O nosso País não pode estagnar nos problemas da conjuntura, perdendo a visão da estrutura. Recordo novamente o meu Governo, apenas para fazer uma comparação: há 15 anos não avançamos nesse setor; devemos, então, ganhar esse tempo perdido. Não podemos recuar mais. Durante o meu Governo, triplicamos os investimentos em tecnologia, mandamos cerca de 90 mil bolsistas estudarem e trabalharem em grandes centros de excelência do mundo inteiro. Investimos no financiamento de projetos de chips e fibras óticas, silício eletrônico, cerâmica de alta condutividade, combustível para satélites, supercondutores, laboratório de testes de satélite - aquele que foi construído em São José dos Campos e que preparou o satélite que estava no foguete que explodiu na Base de Alcântara, no Maranhão -, enriquecimento do urânio, biotecnologia, Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos, novos materiais, química fina, mecânica de precisão, supercomputadores, Laboratório Nacional de Computação Científica, engenharia de materiais e otimização de sistemas, a primeira etapa do acelerador linear de elétrons, Laboratório Nacional de Luz Sincroton, a própria Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara, enfim, procuramos ter uma permanente sensibilidade para com os problemas fundamentais do futuro, que são a ciência e a tecnologia.

No Grupo dos Presidentes da América Latina, propus a criação de um organismo, tipo Projeto Eureka, que existe na comunidade européia entre todos os países, para enfrentar os gastos com esses problemas de alta ciência, que unisse nossos cérebros e que fosse um grande centro de desenvolvimento científico no Continente.

Assim, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, hoje, lamentamos a perda da vida de homens dedicados ao futuro de nosso País. Não podemos, por eles e com eles, abandonar a idéia de fazer do Centro de Lançamento de Alcântara uma referência da ciência e da tecnologia nacional. Em Alcântara temos a obrigação de erguer um monumento de nossa capacidade, o acesso ao espaço, o acesso às novas fronteiras. É o compromisso que neste instante todos nós, brasileiros, devemos assumir ao reverenciar aqueles que ali morreram. Sem dúvida, se não trabalhassem nesse projeto, fora dele teriam condições de ter vantagens materiais muito maiores do que o que tiveram, perseguindo, unidos, o ideal de 20 anos, alguns deles 30 anos, esse grande projeto brasileiro. 

Em Alcântara temos obrigação de erguer - repito -, um monumento de nossa capacidade, o acesso ao espaço e o acesso às novas fronteiras do conhecimento. É o compromisso que o Governo e a Nação têm de levantar, de honrar, acrescentando recursos financeiros, reunindo os nossos recursos humanos, hoje dispersos, abrindo caminho para a recuperação do tempo perdido. Vamos dar, aos que deram a sua vida a essa conquista, o sonho que construíram.

Não é possível que o Brasil tenha a Base de Alcântara paralisada hoje em dia, sem usar de todos os seus benefícios, e que ali perto, Korou, até 2007, tenha todos os dias ocupados em projeto de lançamento de satélites, trazendo recursos para a França e desenvolvendo o meio científico francês. E nós, aqui em Alcântara, na mesma situação, tenhamos, há mais de 15 anos, aquele instrumento do desenvolvimento parado; e agora tenhamos que lamentar o episódio que ali ocorreu.

Srªs e Srs. Senadores, nós precisamos, a partir desta Casa, dar uma consciência ao País de que esse não é um projeto militar, esse não é um projeto particular; esse é um projeto de interesse nacional, de afirmação nacional, de independência nacional no setor científico e tecnológico. Os países que não fizerem isso, no futuro, estarão condenados à escravidão cultural e à escravidão tecnológica.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/08/2003 - Página 25054