Discurso durante a 112ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Necessidade de que seja retirada do texto constitucional a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.

Autor
Augusto Botelho (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RR)
Nome completo: Augusto Affonso Botelho Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • Necessidade de que seja retirada do texto constitucional a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.
Publicação
Publicação no DSF de 04/09/2003 - Página 26097
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • JUSTIFICAÇÃO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, AUTORIA, ORADOR, RETIRADA, DEPOSITARIO INFIEL, EXCEÇÃO, PROIBIÇÃO, PRISÃO, MOTIVO, INADIMPLENCIA, DIVIDA, AMBITO, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ATENDIMENTO, TRATADO, DIREITO INTERNACIONAL, RATIFICAÇÃO, BRASIL.

O SR. AUGUSTO BOTELHO (PDT - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores:

“PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 30”.

A Constituição Federal de 1988, expressão maior da nossa democracia, previu, em seu art. 5º, um extenso rol de direitos e garantias fundamentais. Dentre estes, destacamos a previsão insculpida no inciso LXVII (sessenta e sete) que reza:

“não haverá prisão civil por dívida, salvo o do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Sr. Presidente, a Constituição Federal, com esse dispositivo, buscou evitar que cidadão algum seja levado à prisão por não conseguir pagar uma dívida.

Nada mais justo.

No entanto, aludido dispositivo, nas exceções à regra da impossibilidade de prisão por dívida, estabeleceu a prisão do não pagador de pensão alimentícia e a do depositário infiel.

A primeira exceção é de indiscutível importância e deve ser preservada no texto constitucional. Porém, a previsão da prisão do depositário infiel não pode mais permanecer na Constituição, devendo, urgentemente, ser banida do rol de direitos e garantias do famigerado art. 5º da Carta Magna.

É premente a necessidade de se expurgar do ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de prisão civil do depositário infiel que, segundo vasto entendimento doutrinário e jurisprudencial, não mais se justifica em face da incorporação de alguns tratados internacionais ao Direito Interno. Noutro giro, há a premente necessidade de se adaptar o ordenamento jurídico pátrio aos tratados internacionais que foram ratificados pelo Brasil, após a promulgação da Constituição de 1988.

Estamos assistindo a um verdadeiro abuso, por parte de muitos credores, da prisão civil do depositário infiel. Muitos cidadãos de bem estão sendo submetidos ao encarceramento pelo fato de não poderem arcar com dívidas, muitas vezes em função da perda do emprego ou mesmo pela impossibilidade de arcar com os altíssimos juros cobrados por instituições financeiras.

            Essa situação, Sr. Presidente, não pode prosperar.....

A Carta Magna pátria não deixa dúvidas ao estatuir que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (art. 5º, § 1º). Isso significa dizer que qualquer norma definidora de direitos e garantias fundamentais, inclusive aquelas previstas em tratados internacionais de direitos humanos, devidamente ratificados, passam a vigorar de imediato na ordem jurídica interna brasileira, sem necessidade de posterior legislação que a implemente.

Por outro lado, o § 2º, do mesmo art. 5º, dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que a Republica Federativa do Brasil seja parte”.

Feitas essas considerações iniciais, urge destacar que os tratados ratificados pelo Brasil, não se coadunam com a atual previsão constitucional que viabiliza a prisão de depositário infiel.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos teve seu texto aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro através do Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991 e sancionado por meio do Decreto Presidencial nº 592, de 6 de julho de 1992, tendo o Brasil depositado a Carta de Adesão na Secretaria Geral das Nações Unidas em 24 de janeiro de 1992, entrando em vigor em 24 de abril do mesmo ano.

A partir dessa data, o Brasil obrigou-se a implementar e a proteger direitos fundamentais previstos no referido Pacto, o qual, no seu art. 9º, nº 1, estabelece que toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Além disso, repele a arbitrariedade da prisão ou do encarceramento, dispondo, ainda, que ninguém poderá ser privado de sua liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.

Mas o dispositivo que nos interessa mais de perto é o art. 11 do Pacto, que estatui que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir uma obrigação contratual”. Esse dispositivo, ao fazer alusão à “obrigação contratual”, açambarca aquelas obrigações decorrentes de depósito. Daí sua grande importância.

Por outro lado, o Brasil ratificou, também, o Pacto de São José da Costa Rica, denominado de Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Este Pacto foi aprovado pelo Brasil por meio do Decreto-Legislativo nº 27, de 25 de setembro de 1992, e sancionado através do Decreto Presidencial nº 678, de 6 de novembro do mesmo ano.

Na mesma linha do Pacto Internacional dos Direitos Civis e políticos, o art. 7º da Convenção Interamericana estabelece que toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais (nº 1) e ninguém será submetido à detenção ou ao encarceramento arbitrários (nº3). Mas é ao item 7 do art. 7º que se deve dar acentuada atenção ao se debater o preceito constitucional em análise. Dispõe referido dispositivo: “ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedida em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

Constata-se, pois, de maneira insofismável, da leitura dos dispositivos acima referidos, a expressa garantia de que ninguém pode ser preso por dívidas, cumprindo evidenciar, ainda, que a única ressalva a tal proibição é o inadimplemento de obrigação alimentar.

Assim, percebe-se claramente o conflito existente entre o inciso LXVII do art. 5º, da Constituição Federal e o disposto nos tratados internacionais, tanto o Pacto Internacional de direitos Civis e Políticos, quanto o Pacto Interamericano de Direitos Humanos. Surge, aí, um impasse, que pode ser solucionado por via interpretativa que deverá recair, sobretudo, no do § 2º, do art. 5º, da Lei Maior.

De fato, o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, tornou exemplificativo o rol dos direitos e garantias fundamentais previstos, sobremodo nos incisos do mesmo art. 5º, ao determinar, que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. É com base neste dispositivo que podemos afirmar, com tranqüilidade, que os TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS, QUANDO RATIFICADOS, INGRESSAM EM NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO COM STATUS DE NORMA CONSTITUCIONAL.

Na lição de Dalmo Abreu Dallari, “as normas sobre direitos e garantias constantes em tratados em que o Brasil seja parte completam as disposições do art. 5º e neste se integram, incorporando-se, portanto, ao sistema constitucional brasileiro de direitos e garantias individuais”.

Em verdade, a nossa Constituição é omissa quanto à maneira de se agir quando uma disposição de tratado internacional devidamente ratificado contrariar preceito constitucional, como aquele que prevê a prisão civil por dívida de depositário infiel. Flávia Piovesan, neste particular, ensina que, em havendo este conflito, deverá prevalecer a norma mais favorável à proteção da vítima, pois, no plano dos direitos humanos, interagem o Direito Internacional e Direito Interno, movidos pelas mesmas necessidades de proteção, devendo prevalecer a norma que melhor proteja o ser humano, tendo em vista que a primazia é da pessoa humana.

Ora,

- se os direitos fundamentais elencados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte têm aplicação imediata (art. 5º, § 1º);

- se dentre os direitos constitucionalmente garantidos são acrescidos aqueles previstos em tratados internacionais ratificados pelo País (art. 5º, § 2º);

- se as normas de Direito Internacional ingressam no ordenamento jurídico brasileiro com status hierárquico de norma constitucional e

- se no conflito de uma norma internacional com um preceito constitucional deve prevalecer aquele mais benéfico à proteção da vítima, dúvida alguma paira sobre a impossibilidade de prisão civil do depositário infiel no Brasil, ante o contido no Pacto Internacional de direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

A permanência do dispositivo constitucional que prevê a prisão civil por dívida pode conduzir a abusos, fortalecendo a posição de determinados credores ao ensejar a possibilidade de que a legislação infraconstitucional preveja, sem qualquer critério de razoabilidade ou adequação, privilégios para determinadas categorias de credores. Isto ocorre com a previsão, constante da Lei nº 8.866/94, na qual considera-se depositário da fazenda pública, a pessoa a que a legislação tributária ou previdenciária imponha a obrigação de reter ou receber de terceiro, e recolher aos cofres públicos, impostos, taxas e contribuições, inclusive à seguridade social. Será considerado depositário infiel, neste caso, aquele que não entrega à Fazenda Pública, o valor retido, no termo e forma fixados na legislação tributária e previdenciária. O depositário, neste caso, estará sujeito a um processo sumário, sem observância do contraditório e da ampla defesa, ao cabo do qual deverá ou poderá a ele ser cominada a pena de prisão. Esta pena de prisão, como é de bom alvitre, deve se aperfeiçoar em um processo em que se assegure ao depositário ampla possibilidade de demonstrar que não houve, por exemplo, culpa de sua parte ou mesmo que não se consubstanciou a situação fática que configure o descumprimento de deveres decorrentes do depósito. Pela forma como está redigida aludida lei, o depositário de quantias devidas à Fazenda Pública poderá ser preso se, na contestação, não comprovar o depósito integral devido ou mesmo se ficar revel. O juiz poderá, inclusive, julgar antecipadamente a lide, se verificados os efeitos da revelia. Isso, em verdade, é um absurdo.

O mesmo absurdo, e ainda com maior intensidade, pode ser verificado nos contratos gravados com alienação fiduciária em garantia. Segundo o Decreto-lei nº 911/69 “se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na poses do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmo autos, em ação de depósito...”. Isso significa que se o devedor-alienante deixar de cumprir a obrigação por algum motivo (desemprego, juros abusivos cobrados pela instituição financeira etc.), poderá ver decretada sua prisão.

É por ter observado essa verdadeira aberração jurídica que propus a PEC, que recebeu o nº 30 nesta Casa, para evitar, que muitos cidadão sérios sejam legados à prisão. Ademais, acredito que essa emenda irá melhorar o sistema constitucional de direitos fundamentais, adequando-os aos tratados de direitos humanos, que possuem força constitucional pelo § 2º, do art. 5º, tornar-se de curial importância para a aprovação dessa Emenda Constitucional que suprime a hipótese de prisão do depositário infiel prevista no inciso LXVII, do art. 5º, da Constituição de 1988.

Termino este pronunciamento ciente de que obterei apoio de meus pares na aprovação dessa PEC que reputo da mais alta importância para o aprimoramento de nossa Carta Magna.

É o que tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/09/2003 - Página 26097