Discurso durante a 118ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem a Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile, falecido em 11 de setembro de 1973.

Autor
João Capiberibe (PSB - Partido Socialista Brasileiro/AP)
Nome completo: João Alberto Rodrigues Capiberibe
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile, falecido em 11 de setembro de 1973.
Publicação
Publicação no DSF de 12/09/2003 - Página 26762
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, SALVADOR ALLENDE, EX PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, ELOGIO, VIDA PUBLICA, LUTA, JUSTIÇA SOCIAL, DEFESA, DEMOCRACIA.
  • COMENTARIO, PERIODO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), APOIO, FINANCIAMENTO, DITADURA, AMERICA LATINA, REJEIÇÃO, VITORIA, SALVADOR ALLENDE, CANDIDATO, ELEIÇÕES, PRESIDENCIA DA REPUBLICA, EPOCA, ELABORAÇÃO, PLANO, VIABILIDADE, GOLPE DE ESTADO, GARANTIA, INFLUENCIA, AMERICA.

O SR. JOÃO CAPIBERIBE (Bloco/PSB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Sr. Embaixador do Chile, Srs. Embaixadores, brasileiros que viveram no Chile, acompanharam a tragédia do povo chileno e que aqui estão presentes. O Governo da Unidade Popular (1970-1973), presidido pelo Presidente Salvador Allende, foi a mais extraordinária tentativa de colocar em prática os princípios do socialismo nos marcos de um regime democrático - e aqui temos vários testemunhos do processo chileno: realizar o ideário de justiça social com pluralismo de sensibilidades políticas. Salvador Allende foi eleito democraticamente pelo sufrágio universal e empreendeu transformações inadiáveis para a sociedade chilena, respeitando as instituições do país.

No dia 04 de setembro de 1970, a Unidade Popular de Salvador Allende obteve 36,6% dos votos. Tratava-se de uma coalizão de esquerda composta essencialmente pelos seguintes partidos: o Socialista, o Comunista e o Radical, vencendo Jorge Alessandri do Partido Nacional (35% dos sufrágios) e Radomiro Tomic da Democracia Cristã (27% dos votos).

Esse élan de liberdade que representou o seu governo coincidiu com um dos períodos mais trágicos no qual mergulharam os países das Américas: a transformação dos regimes democráticos do Continente em ditaduras militares com o aval e recursos dos Estados Unidos.

A este propósito, é importante ressaltar que, após a Revolução Cubana, em 1960, os Estados Unidos optaram por uma política de liquidação dos regimes democráticos existentes nas Américas, particularmente na América do Sul. Brasil, Argentina, Uruguai e outros sucumbiram ao autoritarismo, colocando, assim, por terra as frágeis democracias de nosso Continente. Trata-se da interrupção de um longo processo de construção de uma nova sociedade democrática que tem início com as lutas pela independência durante o século XIX e se estende por toda primeira metade do século XX, intensificando-se no após guerra (1939-1945). Este longo processo de construção de espaços democráticos é o reflexo das enormes transformações econômicas e sociais (urbanização, emergência de novas classe sociais, atores e categorias sociais organizadas) que se traduzem, politicamente, em novas reivindicações e maior participação nas decisões nacionais. Do ponto de vista externo, as sociedades americanas exigem maior autonomia e uma nova relação com os centros econômicos dominantes da Europa e dos Estados Unidos. Esse processo de maior independência frente aos países ricos, no quadro de um mundo bipolar, revelou-se inaceitável para os Estados Unidos. Nos anos 60, um a um, os países do nosso continente conheceram rupturas institucionais.

O Chile, na época, era um país com sólida tradição democrática, com instituições representativas das diversas categorias sociais e com um nível de distribuição de renda raro na América Latina para os padrões da época, além de ser o último reduto da democracia nas Américas. Pela lógica da hegemonia norte-americana e pelos cânones da Guerra Fria, um governo progressista no Chile não poderia ter direito à existência. E mesmo antes da vitória, o governo americano já se posicionou radicalmente contra eleição de Allende. A esse propósito, o livro de Nathaniel Davis, Os dois últimos anos de Salvador Allende, na época embaixador americano em Santiago, é bastante revelador.

Henry Kissinger, Secretário de Estado de longa biografia antidemocrática, relatou que Richard Nixon, na época Presidente dos Estados Unidos, ao saber da vitória de Allende, ficara fora de si - possesso -, responsabilizando o Departamento de Estado e o Embaixador dos Estados Unidos no Chile, Edward Korry, pelo resultado desfavorável. Mais tarde, ao receber o mesmo embaixador, em Washington, cinco semanas após a vitória de Allende, Nixon, reputado pelo seu linguajar chulo, não poupou invectivas contra o presidente eleito. Bastardo foi o impropério mais leve do seu vocabulário. Afinal, os US$425 mil que a CIA havia investido na campanha eleitoral chilena, com o objetivo de barrar o caminho de Salvador Allende, não haviam servido para nada.

Ainda, conforme Nathaniel Davis, Kissinger foi ainda mais longe. Considerava Allende uma ameaça muito mais danosa para a hegemonia americana do que Fidel Castro. Sabia que o novo regime poderia converter-se em um exemplo emblemático de transformações sociais para o nosso continente, dentro dos marcos de uma democracia representativa. Em reunião secreta na Casa Branca, no dia 27 de julho de 1970, Kissinger declarava: “não vejo por que devemos ficar esperando sentados assistindo a um país que vira comunista por irresponsabilidade de seu próprio povo”. Em setembro de 1970, Kissinger declara, em entrevista à imprensa, que ainda não havia encontrado ninguém que acreditasse que, com a vitória de Allende, o Chile voltaria a ter eleições democráticas. E agregava que não deveriam se enganar, pensando que Allende no poder não traria problema para os Estados Unidos e para as demais forças democráticas do hemisfério ocidental.

Helms, Diretor da CIA, em depoimento ao Senado dos Estados Unidos, diante do Senador Frank Church, apresentou suas notas contendo as instruções recebidas do Presidente Nixon, em reunião no Salão Oval, em 16 de setembro de 1970. Elas são estarrecedoras: “mesmo que tenha uma oportunidade, entre dez, salve o Chile! Vale a pena gasto. Não importam os riscos que tenha que correr. Deixar a embaixada fora desta ação. Dez milhões de dólares disponíveis imediatamente e mais se for necessário. Dedicação completa dos melhores homens. Plano estratégico. Arrebentar a economia. Quarenta e oito horas para plano de ação”.

A decisão estava tomada: destruir a democracia chilena e a de toda a América Latina. O Governo de Salvador Allende se propunha a um programa em 40 pontos. Aqui, vale a pena relembrar esse profundo compromisso democrático de Salvador Allende com o povo chileno. A medida mais importante nesses 40 pontos, em termos de impacto político, foi a nacionalização das minas de cobre, até então nas mãos de empresas americanas. Foi, aliás, uma decisão tomada pelo Congresso do Chile, com unanimidade de todas as correntes políticas. O cobre representava o principal item da pauta de exportações, superior a 70% das receitas externas. Allende terminou a reforma agrária; aliás, iniciada no governo democrata-cristão de Eduardo Frei, e estatizou a rede bancária. Os dois primeiros anos de governo conheceram um crescimento da produção e do emprego, fato que explica o crescimento da votação que obteve a Unidade Popular nos pleitos posteriores - beirando a 50% do voto do povo chileno.

Finalmente, os desígnios de Nixon e Kissinger se realizaram no dia 11 de setembro de 1973, com o golpe militar: o bombardeio do Palácio de La Moneda e a morte de Salvador Allende. Seguiram-se 17 anos de perseguições, torturas, mortes, atentados e também de resistência aos desmandos da ditadura militar.

Por um paradoxo e ironia da História, a trágica destruição das Torres Gêmeas de Nova Iorque, matando covardemente milhares de cidadãos americanos, ocorreu na mesma data do golpe de Estado que liquidou a democracia chilena. A tragédia americana, no início do Século XXI é, sem dúvida, um divisor de águas histórico. Esses fatos estão e restarão gravados em nossa memória política. Eles condicionaram a atual conjuntura internacional com contornos sombrios, que caminham para o intervencionismo, o unilateralismo, o desprestígio das Nações Unidas e a arrogância. É preciso debitar essas duas tragédias ao autoritarismo dos falsos democratas e também aos fundamentalismos de todos os naipes, religiosos ou não. Essas forças conservadoras sempre têm reagido com violência contra a modernização social, contra os respeito às diferenças entre os povos e ao avanço da representação dos interesses majoritários das sociedades. A ironia maior é usar a Democracia para reduzir os direitos humanos e defender interesses que não são majoritários e sim restritos à elite financeira e industrial. Mesmo no contexto da Guerra Fria, não podemos nos iludir, pois o autoritarismo que sufocou o povo russo no regime de Stalin e a atual reação conservadora nos Estados Unidos têm a mesma gênesis: a intolerância política.

Neste momento, devemos nos interrogar: Democracia sim; mas a quem serve a Democracia? À elite ou aos milhões de excluídos? O Governo de Allende representava a voz dos excluídos e dos pobres. Esses dois terríveis exemplos da nossa história recente devem servir como lição para a reconstrução da democracia no Brasil e na América Latina.

Sr. Presidente, já que falamos em tolerância política, esse exemplo foi dado, com abundância e generosidade, pelo povo chileno sob o governo de Allende, que acolheu de braços abertos e deu apoio material aos exilados que lá chegavam de todos os quadrantes, incluindo milhares de brasileiros.

Gostaria de registrar a presença, na vida pública nacional dos últimos anos, de vários brasileiros que gozaram da generosidade do povo chileno, entre eles alguns funcionários do Senado, como Athos Pereira, Georges Michel e Ricardo Zaratini. Também políticos de grande importância para a vida nacional, como Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Paulo Renato de Sousa, Marco Aurélio Garcia. Intelectuais como Teotônio dos Santos, Éder Sader, Plínio de Arruda Sampaio, Darcy Ribeiro e vários que se encontram no plenário do Senado Federal, como Ubiramar Peixoto de Oliveira, Cristina de Castro, Marijane Vieira Lisboa, José Duarte, Nielsen de Paula Pires, Fernando Safatle e Tomás Togni Tarquínio, entre outros. Entre esses, encontram-se aqui, também, a minha esposa e os meus filhos. Quero agradecer a generosidade do povo chileno, de nos ter recebido num momento de extrema dificuldade. O Chile foi o último bastião de liberdade e de democracia.

Portanto, relembrar 30 anos depois, aquela terça-feira, 11 de setembro, quando o Presidente Allende dirigiu suas últimas palavras ao povo chileno e a milhares de latino-americanos, entre eles mais de cinco mil brasileiros lá exilados , faz com que nos tornemos cada vez mais convictos de que o espírito democrático de Salvador Allende deve permanecer entre nós. E a história do Chile produziu no nosso País momentos de grande tensão.

E queria relembrar o Deputado Francisco Pinto, do MDB da Bahia, que condenou, da tribuna da Câmara dos Deputados, a presença do Presidente chileno, Augusto Pinochet*, na posse do Presidente Ernesto Geisel, ocorrida a15 de março de 1974.

No pronunciamento, Chico Pinto responsabilizou Pinochet por prisões ilegais, torturas e assassinatos, além de chamá-lo de ditador - os ditadores detestam ser chamados de ditador.

O novo Presidente abriu processo no Supremo Tribunal Federal contra Chico Pinto por “insulto a chefe de estado estrangeiro”. Chico Pinto foi condenado à pena de prisão. Cumpriu a pena e teve o seu mandato cassado.

Portanto, a história da tragédia chilena chega aos dias de hoje. Assim como o povo chileno foi submetido ao medo e ao terror, o povo americano, vinte e oito anos depois, está experimentando a perda dos seus direitos civis. Em nome do combate ao terrorismo, restringe-se a liberdade do povo americano.

A lição do Chile é uma lição fundamental para a construção das nossas democracias. E Allende será uma fonte de inspiração permanente na construção do processo democrático do nosso País e de toda a América.

Obrigado, Sr. Presidente.

(Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/09/2003 - Página 26762