Discurso durante a 118ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem a Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile, falecido em 11 de setembro de 1973.

Autor
Aloizio Mercadante (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Aloizio Mercadante Oliva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile, falecido em 11 de setembro de 1973.
Publicação
Publicação no DSF de 12/09/2003 - Página 26766
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, SALVADOR ALLENDE, EX PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, ELOGIO, ATIVIDADE POLITICA, DEFESA, DEMOCRACIA, SAUDE PUBLICA, JUSTIÇA SOCIAL.
  • COMENTARIO, PERIODO, DITADURA, AMERICA LATINA, ESPECIFICAÇÃO, BRASIL, REGISTRO, LUTA, DEMOCRACIA, HOMENAGEM, VITIMA, TORTURA.

O SR. ALOIZIO MERCADANTE (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, Srªs Embaixadoras, Srs. Embaixadores, demais convidados, amigos do Chile que estão presentes, o Senado Federal presta uma justa homenagem a uma grande figura do nosso continente e, ao mesmo tempo, convoca a uma reflexão sobre o episódio trágico, doloroso e uma das mais brutais agressões aos princípios do Estado de direito, da democracia, da liberdade de expressão e de manifestação às instituições democráticas em nosso continente.

No início dos anos 60, soprava na América Latina um forte vento de liberdade, de mudança. Sonhos de transformação profunda de um continente marcado por um longo passado colonial, uma pesada herança escravista, exclusão social e pobreza, desigualdade e dificuldade de superar o subdesenvolvimento, que levava a um esforço intelectual, político e ideológico para se buscar novos caminhos para a região.

A Revolução Cubana desencadeara um processo de combate à ditadura de Fulgencio Batista lançando uma chama forte e poderosa de estímulo à juventude, à militância de Esquerda, em toda a região, para buscar caminhos de transformação.

Não seria diferente no Brasil... O País também se sentia sensibilizado por esse processo de constituição de frentes nacionais e populares.

Em meio a uma grave crise econômico-monetária, período de instabilidade e de dificuldades na gestão da administração pública, o Governo João Goulart, a partir da renúncia do Presidente Jânio Quadros, tentava implantar um programa de reformas de base. Porém, encontrou dificuldades imensas para constituir um programa de estabilização econômica. A tentativa mais consistente havia sido um projeto coordenado por Celso Furtado e Santiago Dantas, que não alcançaram sustentação política. E aquele Governo, pela força das elites conservadoras, que propuseram a mudança do sistema político por um regime parlamentarista - sendo que o povo acabou mantendo o presidencialismo -, não foi capaz de administrar a crise, de alterar a correlação de forças e de construir uma base de governabilidade para dar sustentação às reformas.

As forças conservadoras, reacionárias, apoiadas por uma política externa, impulsionada pela Guerra Fria, que fazia do confronto político-ideológico a razão de ser da diplomacia externa, sobretudo da diplomacia externa do governo americano, contribuiu para a desestabilização do Governo João Goulart. E iniciávamos ali, exatamente nesse momento de expectativa de mudanças, de sonhos, de entusiasmo em relação ao processo de transformação da região, um ciclo de ditaduras militares; um tempo sombrio, doloroso, marcado pela censura, pela opressão, pela falta de liberdade de expressão, pela censura nos meios de comunicação de massa, por agressões de toda a sorte às instituições democráticas - inclusive a este Parlamento, tantas vezes!

Em seguida, quando as ditaduras começavam a avançar na América Latina, houve uma tentativa de resistência da juventude - maio de 68 -, grandes mobilizações aqui no Brasil, na França e em toda parte.

E o Governo de Allende foi, naquele momento da história, uma nova chama de resistência, de liberdade, de sonhos e transformação, numa região que já havia sido brutalmente agredida nas suas instituições democráticas, na vontade soberana do povo, por regimes ditatoriais, marcados por todos os instrumentos de dominação, de exclusão, de censura e de repressão.

Na minha geração, o Chile daquela época era a referência mais importante. Para todos os que se dispunham a pensar com liberdade, a olhar a realidade, a se sensibilizar com o povo, Allende era uma figura absolutamente necessária para que, de alguma forma, pudéssemos respirar e sonhar, desejando que a sensação de liberdade voltasse a ser diferente em países subordinados ao regime ditatorial.

A militância política aqui era clandestina - a resistência democrática nunca foi fácil nem para os que ficaram no Brasil. Muitos foram obrigados a partir para vários países.

E uma parte importante da nossa intelectualidade, de lideranças políticas com largo passado de militância popular e democrática, foi acolhida com muita generosidade pelo povo chileno. De todas as formas, buscaram colaborar com o processo de mudanças que se iniciava com o Governo de Allende, com a Frente Popular.

Um médico, que havia tido um papel destacado como ministro da saúde no governo de Esquerda de Pedro Aguirre, quando um terremoto abalou o Chile, em 1939 - fez uma carreira brilhante no parlamento, como deputado, senador, como já foi aqui destacado e mencionado, inclusive presidente da assembléia nacional -, tentou três vezes ser presidente da república e foi derrotado, mas nunca abdicou nem dos seus princípios, nem dos seus ideais, nem do seu projeto de transformar o Chile.

E venceu as eleições democraticamente, ainda que por votação minoritária.

Ele havia reconhecido, no passado, as derrotas, mas continuou a lutar nos marcos da democracia, e as mesmas forças que o haviam derrotado eleitoralmente não aceitaram o governo de mudanças e transformações.

Se analisarmos o tempo que a História nos permite, talvez se possa dizer que o Governo de Allende não avaliou corretamente a correlação de forças na sua sociedade. Lançou programas profundos, como a nacionalização do cobre e a reforma agrária, que nem a ditadura conseguiu reverter.

Parte dos avanços estruturais do País sobreviveu à ditadura e a toda pressão neoliberal, pela profundidade e pelas raízes que conquistaram na sociedade.

O Governo teve dificuldades de construir, apesar de ter aumentado a votação na segunda eleição do Chile, de manter uma base coesa de sustentação política. Aí, também, o tempo nos permite uma segunda reflexão: a divisão no campo progressista, setores que achavam, e o tempo demonstra absolutamente equivocados, que a co-relação de forças permitia mudanças ainda mais profundas, mais rápidas, mais aceleradas e, apressadamente, combatiam um Governo que era um Governo popular, era um Governo Nacional, era um Governo de resistência democrática num Continente agredido pelas ditaduras.

E, como tem acontecido tantas vezes na História, o esquerdismo impedia mudanças que eram essenciais para o Continente, para a História chilena e para o povo.

Portanto, um balanço sereno exige uma reflexão mais profundas para que a História deixe lições para que momentos como esse de figuras de tanta generosidade, de tanto espírito público, de ideais, de compromisso com a ética, com justiça, com a solidariedade humana, inspirado em valores socialistas, como foi populares, nacionais, como foi a figura de Allende, não fossem derrotados de uma forma brutal pelas pressões internacionais, inclusive, patrocinado pela ditadura militar brasileira que, de primeira hora, apóia o golpe, conspira contra o Governo democrático, auxilia na perseguição dos exilados políticos e contribui, eu diria, para uma página tão difícil da nossa História da nossa diplomacia externa.

Lembro-me, acompanhando as notícias daquele dia, o que representou para a minha geração ao testemunhar, mais uma vez, um Governo democrático ser derrotado pela brutalidade dos fuzis, dos tanques e das agressões militares e mais uma ditadura se instalando no Continente.

Resistíamos à ditadura e fomos de alguma forma uma geração vitoriosa na luta democrática, embora os exilados que saíram daqui perseguidos, com as marcas profundas da opressão, da tortura e teve que fugir do seu país, do seu povo, da sua cultura,das suas raízes, para ser acolhido pelas forças progressistas, pelo povo chileno, pelas instituições democráticas que até então estavam no Chile.

É certo que alguns morreram no golpe, outros tantos se abrigaram em algumas Embaixadas, e só sobreviveram por causa disso. E muitos países amigos, Embaixadores corajosos, naquela ocasião, permitiram que muitos brasileiros exilados sobrevivessem.

Exilados que ficaram amontoados, dormindo durante meses dentro de uma Embaixada, sem possibilidade alguma de dignidade, porque a ditadura sequer, dava a possibilidade de sair do país, porque se tratava de uma política apoiada por outros governos ditatoriais da região, que impedia que esses que tinham sido acolhidos com tanta generosidade, colaborando para encontrar respostas para as políticas públicas do Chile, pudessem sair.

Alguns são ilustres, como Plínio de Arruda Sampaio, aqui mencionado, e eu queria lembrar a minha amada companheira Maria da Conceição Tavares, que hoje, com seus 73 anos, conforme manchete que li no jornal, vai ser assessora da Liderança do Governo. Um jornalista me perguntou: “Mas a Conceição vai ser assessora da Liderança do Governo?” Eu respondi: “No dia em que a Maria da Conceição Tavares não puder ser assessora de um Governo de que eu participe, serei oposição a esse Governo.” Ela vai ser acolhida com toda grandeza e integridade intelectual.

Naquele momento, quando ela voltava para o Brasil, foi encapuzada, levada para o Doi-Codi e só não passou por um processo de tortura, como tantos que tentaram voltar, porque o conservador Ministro da Fazenda - e quero registrar o meu respeito a essa atitude - Mário Henrique Simonsen interveio imediatamente, impedindo que a ditadura espancasse a professora Maria da Conceição Tavares, que já era uma referência intelectual há trinta anos.

Outros foram presos e mortos assim que chegaram ao Brasil. Alguns viraram grandes figuras da nossa História política, em todos os campos. Posso lembrar Plínio de Arruda Sampaio, Almino Affonso, Fernando Henrique, José Serra e Paulo Renato, que logo que chegou do exílio trabalhou comigo na Unicamp. Durante anos, lembramo-nos desses episódios, das passagens, do que foram aqueles dias. Também lembro o companheiro Gerson Gomes, que coordena a minha assessoria técnica e por cuja integridade e competência tenho respeito e agradecimento eterno, e Capiberibe, que já estava ali, ajudando a articular as forças progressistas no exílio, e que voltaria, depois, para construir um projeto de mudanças no PSB, juntamente com Miguel Arraes e tantos outros.

Eu queria, por razões que são muito íntimas e profundas, homenagear também Marijane Lisboa Travassos, aqui presente, que voltou do exílio com Luís Travassos. Ela e Travassos foram presos e libertos no seqüestro do embaixador, foram para o Chile, onde conseguiram sobreviver, e, depois, para a Alemanha. Quando voltaram, foram para São Paulo. Ela dava aula na PUC, assim como eu, e ele era o meu grande companheiro. Morava comigo, na minha casa, e morreu num acidente de carro em que eu dirigia o automóvel.

Essas são figuras que, pela história, pela grandeza e pela coerência, fazem parte da manhã de hoje.

Quero terminar minha intervenção porque é muito grande a emoção de ver de tantos rostos e tantas figuras, de pensar em tanta esperança destruída, em tanto sonho massacrado, mas lembrar é uma forma de resistir.

Lembrar é uma forma de, definitivamente, em nosso País e nesse continente, assegurar um compromisso universal e histórico com os valores dos direitos humanos e da democracia. Não há transformação duradoura e consistente sem democracia. Democracia está à direita, é pluralismo, é convivência com a diferença, com a alternância de poder. A democracia pressupõe espírito público, capacidade de olhar além do seu tempo e de reconhecer as mudanças que estão em andamento.

As lições do Governo de Allende nos chamam para a necessidade de mudarmos o nosso País e esse continente, com responsabilidade, avaliando corretamente as correlações de forças, mantendo uma unidade e uma base de sustentação política permanente para as transformações democráticas e populares que estão acontecendo novamente em nossa região e que, seguramente, avançarão de forma irreversível nos marcos da democracia e do Estado de direito.

Lembro-me de como cantávamos a música da campanha da Unidade Popular, de Allende, que dizia: “Desta vez não se trata de eleger apenas um presidente. Desta vez se trata de construir um Chile bem diferente.”

Não tenho o talento musical do Senador Suplicy, então não me arriscaria em público, mas diria que é uma música que ficou mais de trinta anos na minha lembrança e que, me recorda a nossa juventude, o movimento estudantil daquela época, referenciando aquele vento de esperança e de liberdade para quem estava oprimido pela repressão, pela ditadura e pela censura.

Por tudo isso, Salvador Allende, hasta siempre! (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/09/2003 - Página 26766