Discurso durante a 118ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagem a Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile, falecido em 11 de setembro de 1973.

Autor
Serys Slhessarenko (PT - Partido dos Trabalhadores/MT)
Nome completo: Serys Marly Slhessarenko
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem a Salvador Allende, ex-Presidente da República do Chile, falecido em 11 de setembro de 1973.
Publicação
Publicação no DSF de 12/09/2003 - Página 26775
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, SALVADOR ALLENDE, EX PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, CHILE, DEFESA, DEMOCRACIA, JUSTIÇA SOCIAL, ELOGIO, VIDA PUBLICA.
  • REGISTRO, RESPONSABILIDADE, POLITICA EXTERNA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), GOLPE DE ESTADO, RESULTADO, MORTE, SALVADOR ALLENDE, EX PRESIDENTE.

A SRª SERYS SLHESSARENKO (Bloco/PT - MT. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Salvador Allende é lembrado pelo povo chileno como um político que nunca mentiu. Vejam só que lembrança bonita: Salvador Allende nunca mentiu. Nesta homenagem singela que o Senado Federal do Brasil presta, neste 11 de setembro de 2003, a este herói do povo latino-americano, queremos frisar essa característica extraordinária deste líder. Salvador Allende nunca mentiu.

Na campanha presidencial de 1970, Salvador Allende anunciou que as suas primeiras medidas como presidente do Chile seriam aumentar os salários dos trabalhadores, congelar os preços dos gêneros de primeira necessidade, nacionalizar os bancos estrangeiros, estatizar a produção do cobre e os meios de comunicação e fazer uma profunda reforma agrária no seu pais. Enfim, Salvador Allende se comprometeu com as reivindicações históricas do povo chileno e prometeu dar concretude a todas elas.

Estas foram as bandeiras que Salvador Allende e a Unidade Popular, que ele comandava, ergueram durante sua campanha eleitoral. E estes foram os compromissos que Salvador Allende tratou de cumprir, tão logo deu início ao seu mandato, em atendimento à vontade soberana do povo chileno. Sem subterfúgios, sem mentiras, sem vacilações. Cumprindo com as responsabilidades de um mandato que nasceu sustentado pelas lutas e pela organização da população chilena. Salvador Allende queria fazer a revolução dentro de uma estratégia de poder que caracterizou como “A Via Pacífica para o Socialismo!”

Há quem diga que Salvador Allende foi um sonhador. Dizem até alguns mais exagerados que Allende foi um sonhador irresponsável. Nosso entendimento é bem diferente. Entendemos que Salvador Allende e seus projetos ecoaram profundamente no coração do povo chileno, por isso foi possível a ele sustentar um projeto de governo tão corajoso como era o governo que ele propunha e procurou executar.

Mas a história nos mostra que contra as propostas de Salvador Allende, contra aqueles sonhos de soberania que eram os sonhos da maioria absoluta do povo chileno, naquele início da década de 70, contra estes sonhos se levantaram forças poderosas, capitaneadas pelo governo norte-americano, pelos interesses excludentes representados pelo governo de Richard Nixon e do seu lugar-tenente, o premier Henry Kissinger, somando-se a todas as forças reacionárias que atuavam no Chile.

Hoje, em seu artigo no jornal Folha de S.Paulo, o jornalista Jânio de Freitas, que é sempre uma referência para todos nós, pela coerência de suas posições, caracteriza a trama urdida pelos Estados Unidos, pelo presidente Richard Nixon, pelo premier Henry Kissinger contra o povo chileno e contra o governo de Salvador Allende como um dos grandes crimes da política americana contemporânea. Sim, senhores; um dos grandes crimes da política americana, que deve e precisa ser caracterizado como tal. Ao lembrar de Allende, não podemos calar com relação aos seus algozes, àqueles que tramaram contra a liberdade do povo chileno, que contribuíram para o desmantelamento da democracia chilena, fazendo com que aquele país mergulhasse num regime de terror dos mais virulentos que já se viu nesta América do Sul, nesta América Latina.

A trama para a derrubada de Allende, conforme hoje está fartamente documentado, foi financiada pela Casa Branca, monitorada pelo maquiavélico Kissinger e executada pelos representantes daqueles setores sociais que haviam perdido poder e fortuna ante as decisões revolucionárias de Salvador Allende. Foram as pressões dos Estados Unidos que, abalando a economia chilena, acabaram por inviabilizar o governo da Unidade Popular, que era o governo de Allende.

Da crise orquestrada pelos norte-americanos para o golpe militar foi só um passo. Em 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas e os Carabineiros, comandados por Pinochet, avançaram sobre o Palácio De La Moneda. Tudo estava preparado para o assalto ao poder e para que se encerrasse de maneira trágica a experiência socialista no Chile. Allende informou aos golpistas que não renunciaria e, antes de enfrentar o fogo inimigo, pronunciou seu último discurso, que é um documento histórico tocante.

“Trabalhadores de minha pátria” - disse Allende, nos momentos finais de sua vida - “tenho fé no Chile e no seu destino. Sigam vocês, sabendo que, mais cedo do que muitos imaginam, se abrirão as grandes avenidas por onde haverá de passar o homem livre que construirá uma sociedade melhor! Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!”

Allende resistiu enquanto teve munição em sua arma. A vitória episódica de seus algozes não conseguiu, todavia, toldar a sua imagem de governante profunda e intensamente comprometido com seu povo, com a luta do povo chileno, com a luta mais ampla de todo o povo deste continente latino-americano que busca uma sociedade em que impere a justiça social.

Salvador Allende deve, sim, ser lembrado como um herói do povo chileno, como um herói de todas estas Américas tão exploradas pelas nações até aqui hegemônicas, que não têm vacilado em recorrer aos crimes mais brutais, como foi o assassinato deste líder, no intuito de fazer valer os seus interesses.

Lendo hoje os jornais, vejo o professor Emir Sader fazer uma avaliação da experiência chilena, do golpe sofrido por Allende, e afirmar o seguinte: “uma transformação substancial do capitalismo requer, portanto, a combinação da luta institucional com a criação de uma grande força hegemônica alternativa, apoiada na grande massa explorada e dominada da população, associada a um projeto de transformação que atenda aos interesses dessa grande maioria e, ao mesmo tempo, promova a democracia econômica, social, política e cultural. Não basta a maioria eleitoral, mas a maioria política, social e cultural tem que se expressar também no plano institucional e eleitoral, para ganhar espaços fundamentais para o grande projeto transformador da sociedade.”

É evidente que a falta de uma melhor articulação entre os povos que, na América Latina, lutavam e lutam pela sua soberania diante das grandes nações hegemônicas, facilitou e facilita que ocorressem e ocorram tragédias como a que vitimaram o governo de Allende e se manifestaram também aqui mesmo no Brasil, com o golpe de 64, na Argentina, no Uruguai, na Guatemala, no Peru e em tantos outros países deste continente até recentemente tão amaldiçoado pelos golpes militares. Estão aí diante de nós as inquietações porque passam a Colômbia e a Venezuela como permanentes fatores de intranqüilidade.

A lição que nos fica do golpe contra Allende deve nos impor a necessidade de fortalecermos os elos que, dentro das nações deste continente, sustentam as experiências democráticas que hoje se multiplicam em nossa região. Precisamos fortalecer aquelas iniciativas, como no caso do Mercosul, que apontam para uma profunda solidariedade econômica, política e cultural entre os povos da América do Sul e da América Latina. Precisamos ter claro quais são nossos amigos e quais são nossos interesses. Precisamos ter claro qual é o nosso lado.

Neste 11 de setembro de 2003, devemos recordar a figura de Salvador Allende como um referencial de dignidade e como uma personalidade que sacrificou sua própria vida acreditando que a miséria e a exploração precisam ser banidas do dia-a-dia de todos os povos para que possamos, aí sim, falar em justiça, falar em liberdade e lutarmos, como tanto sonhou este brilhante brasileiro que foi o diplomata Sérgio Vieira de Melo, na afirmação e na existência de uma só raça, a raça humana, vivendo em espírito de harmonia e solidariedade.

Tenho certeza de que, à medida que mantivermos viva a memória de Salvador Allende e de sua luta, teremos muito mais motivação para construirmos esse futuro de dignidade.

E, para finalizar esta singela homenagem, reproduzo aqui o poema que Mario Benedetti dedicou à memória de Allende:

Poema de Benedetti:

"ALLENDE"

Para matar o homem da paz

para golpear seu semblante livre de pesadelos

tiveram que converter-se em pesadelo.

Para vencer o homem da paz

tiveram que reunir todos os ódios

além dos aviões e dos tanques.

Para abater o homem da paz

tiveram que bombardeá-lo, transformá-lo em chama,

porque o homem da paz era uma fortaleza

Para matar o homem da paz

Tiveram que desencadear a fúria da guerra.

Para vencer o homem da paz

e calar sua voz modesta e penetrante

tiveram que empurrar o terror até o abismo

e matar mais, para continuar matando.

Para abater o homem da paz

tiveram que assassiná-lo muitas vezes

porque o homem da paz era uma fortaleza,

Para matar o homem da paz

tiveram que imaginar que era uma multidão,

uma armada, uma tropa, uma brigada.

Tiveram que acreditar que era um outro exército,

mas o homem da paz era tão somente um povo

e tinha em suas mãos um fuzil e um mandato

e eram necessários mais tanques mais rancores

mais bombas, mais aviões, mais injúrias

porque o homem da paz era uma fortaleza

Para matar o homem da paz

para golpear seu semblante livre de pesadelos

tiveram que converter-se em pesadelo.

Para vencer o homem da paz

tiveram que afiliar-se sempre à morte

matar e matar mais para continuar matando

e condenar-se à solidão blindada.

Para matar o homem que era um povo

tiveram que ficar sem o povo.

Mário Benedetti


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/09/2003 - Página 26775