Discurso durante a 119ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Necessidade de maior participação do Poder Judiciário nos conflitos entre a União e os Estados.

Autor
Marco Maciel (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JUDICIARIO.:
  • Necessidade de maior participação do Poder Judiciário nos conflitos entre a União e os Estados.
Publicação
Publicação no DSF de 12/09/2003 - Página 26949
Assunto
Outros > JUDICIARIO.
Indexação
  • COMENTARIO, COMPARAÇÃO, HISTORIA, JUDICIARIO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), BRASIL, ATUAÇÃO, SOLUÇÃO, CONFLITO, ESTADOS.
  • REGISTRO, NECESSIDADE, AMPLIAÇÃO, PARTICIPAÇÃO, JUDICIARIO, BRASIL, SOLUÇÃO, CONFLITO, UNIÃO FEDERAL, ESTADOS.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Romeu Tuma, Srªs e Srs. Senadores, os desafios do sistema federativo, a que venho aludindo desta tribuna, não se cingem, a meu ver, ao complexo problema do equilíbrio na distribuição de prerrogativas e competências entre os entes federados. Refere-se também ao insubstituível papel reservado aos Poderes do Estado. Assim como a organização e as normas de funcionamento do Legislativo e do Executivo mudam as características, também as do Judiciário assumem protagonismos e responsabilidades nos Estados federados, inexistentes nos países organizados sob a forma unitária.

Reporto-me à função de arbitramento dos conflitos entre os Estados e a União e entre os próprios Estados. Ao dirimi-los, os tribunais exercem não só uma tarefa moderadora, mas também criativa na interpretação constitucional. Essa função diz respeito a leis federais, quando a Constituição impõe normas a serem observadas pelos Estados, dentro dos limites de suas autonomias e também em relação às leis estaduais, para que se contenham no âmbito do que lhes permite o estatuto federativo. Tais conflitos, embora não existam nos Estados unitários, quando vêm eventualmente a ocorrer, resolvem-se pela via política ou administrativa, nunca pela intervenção judicial. O caráter moderador do Judiciário na Federação, no arbitramento de tais conflitos, é óbvio.

Mas, quando falo do poder criativo, estou aludindo a duas questões extremamente delicadas. A primeira diz respeito à circunstância de que os conflitos surgem em face de lacunas ou da inexistência de leis. Nem por isso os tribunais podem deixar de agir; nesses casos, devem suprir o papel não preenchido pelo Poder Legislativo. A segunda questão é a de que devem estabelecer padrões, demarcar competências e fixar comportamentos, nem sempre claros na Constituição e nas leis, relativamente às prerrogativas de cada um dos Poderes, contendo-os nos limites que lhes impõe a Lei Maior.

Além de arbitrar conflitos entre os Poderes, o que é tradicional seja nos Estados unitários, seja nos federativos, nesses últimos, o Judiciário tem suas atribuições sensivelmente alargadas, para suprir as lacunas legais.

Quando se analisa a construção do federalismo norte-americano é possível notar como o desempenho da Suprema Corte foi vital para o novo regime, decidindo casos, dirimindo dúvidas e estabelecendo precedentes que, na verdade, extrapolavam muito o mero exame da constitucionalidade das leis, normas, regras e procedimentos que tanto a União quanto os Estados aplicavam em face de suas respectivas competências.

No Brasil não foi diferente. A essa questão acrescentou-se outra, largamente discutida desde a Constituinte de 1890/91: a unidade processual em face da pluralidade judiciária, modelo adotado no Brasil, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos da América do Norte.

Mesmo com a ampla autonomia assegurada pela constituição americana aos Estados, foram várias e de larga significação as questões dirimidas entre os interesses divergentes entre eles e a União, o cidadão e os Estados, e esses entre si.

Essa sucessão de julgamentos terminou levando à famosa definição corrente naquele país de que a Constituição é o que os juízes dizem que ela é. Os constitucionalistas costumam invocar não mais do que duas dezenas de tais decisões. Restrinjo-me a aludir a duas ou três, que também nos dizem respeito. O primeiro julgamento, o de 1793, é o caso Chisholm versus Geórgia, em que a Suprema Corte reconheceu o direito de os cidadãos moverem ação contra qualquer um dos Estados em um tribunal federal.

O segundo não é de menor relevância, o caso sempre invocado de Marbury versus Madison, de 1803, em que a Corte Suprema tomou a si o histórico poder de declarar inconstitucionalidades, e portanto nulos os atos do Congresso. No Brasil ocorreu o mesmo, a partir da República, pois na Monarquia unitária, tanto a interpretação da lei quanto a declaração de sua inconstitucionalidade sempre foram matéria privativa do Legislativo.

Em meados do século XIX, em 1857, para ser mais preciso, ocorreu uma das decisões mais dramáticas de toda a história americana, o caso Scopt versus Standford. Em 1834, o escravo Scopt foi levado, por seu proprietário no Estado escravagista do Missouri, para o Estado livre de Illinois e, em seguida, para o território de Wisconsin, onde a escravidão era proibida pelo chamado Compromisso de Missouri, de 1820. Mais tarde, Scopt foi conduzido, de novo, para o Missouri, onde moveu, em 1846, uma ação em favor de sua liberdade, alegando ter vivido em Estados onde a escravidão não existia. O caso levou 11 anos para ser decidido e chegou à Suprema Corte, que sentenciou não ser o autor cidadão nem do Missouri, nem dos Estados Unidos e não poder, por conseguinte, mover ações em tribunais federais.

Até hoje, não é possível saber em que medida essa sentença contribuiu para a guerra civil americana, o único caminho que restou para se abolir a escravidão em face da intransigência dos escravocratas.

No Brasil monárquico, essa questão não foi suscitada perante os tribunais, pois nunca houve, como nos Estados Unidos, províncias livres da escravidão. Como se sabe, no período imperial, não existia a Federação nem os Estados, e, obviamente, não houve nenhum caso de província que tivesse um estatuto que a livrasse do trabalho servil. Além do mais, a legislação civil jamais reconheceu personalidade jurídica ao cativo, tratando-o - como no Direito romano - como res nullius. A matéria era da esfera administrativa do Estado. Quando o Conselho de Ministros resolveu pôr em execução a lei de 1831, que proibia o tráfico, alguns juízes antepuseram o direito de propriedade à própria lei, como ocorreu no incidente de Serinhaém, em Pernambuco, em que o juiz mandou que as autoridades policiais entregassem aos seus donos os escravos ilegalmente trazidos da África.

O ato levou o Governo, por iniciativa de Nabuco de Araújo, Ministro da Justiça, a adotar a medida extrema de demitir o magistrado, recorrendo ao Poder Moderador, ao qual a Constituição reservava essa faculdade.

Mais recentes são os casos de liberdade civil nos Estados Unidos, que culminaram nos litígios Drown versus Junta de Educação, de 1954, que deram início ao processo de integração racial e ao Rof versus Wade, de 1973, sobre o aborto, que ainda gera conseqüências, em face das convicções religiosas de importantes parcela da população norte-americana.

No Brasil, mesmo não tendo um protagonismo idêntico, pois o papel de guarda e intérprete da Constituição só se estabeleceu em 1891, com a Constituição Republicana, mais de um século depois da Federação estabelecida nos Estados Unidos, o desempenho do Judiciário ficou condicionado aos dois modelos a que me referi em meu primeiro pronunciamento sobre Federalismo; o de 1891, não intervencionista, consoante o modelo norte-americano, e o de 1946, chamado Federalismo “compartilhado”. Recordo seus fundamentos. No caso da Justiça estadual, o princípio da dualidade da Justiça está contido nos arts. 61 e 62 do texto da Constituição de 1891.

Prescreve o primeiro:

Art 61. As decisões dos juízes ou tribunais dos Estados, nas matérias de sua competência, porão termo aos processos e às questões, salvo quanto a:

1º Habeas corpus.

2º Espólio de estrangeiro, quando a espécie não estiver prevista em convenção, ou tratado federal.

Em tais casos, haverá recurso voluntário para o Supremo Tribunal”.

A regra geral só admitia, como se vê, duas exceções muito estritas. Já o artigo 62 dispunha cumulativamente:

Art. 62. As justiças dos Estados não podem intervir em questões submetidas aos Tribunais Federais, nem anular, alterar, ou suspender as suas sentenças, ou ordens. E, reciprocamente, a justiça federal não pode intervir em questões submetidas aos tribunais dos Estados, nem anular, alterar ou suspender as decisões ou ordens destes, excetuados os casos expressamente declarados nesta Constituição.

Esse modelo foi alterado. A Constituição de 1946, mudando o modelo Federativo até então vigente em relação ao Judiciário, instituiu o Tribunal Federal de Recursos, permitindo inclusive a criação de outros tribunais federais de recursos, mediante proposta do próprio tribunal e aprovação do Supremo Tribunal Federal, conforme dispunha o art. 105 da referida Constituição. O Ato Institucional nº 2, já sob o regime militar, datado de 27 de outubro de 1965, ampliou a intervenção da União ao instituir a Justiça Federal de Primeira Instância.

A principal diferença, contudo, a meu ver, reside na orientação doutrinária que inspirou a criação da Corte Suprema nos Estados Unidos como Corte Constitucional e a do Supremo Tribunal Federal entre nós, a partir de 1891, como Tribunal não exclusivamente constitucional. Esse papel de árbitro entre os poderes dos Estados e de moderador nos conflitos entre os entes federativos não se consumou, portanto, entre nós. A esses dois encargos foi adicionada uma enorme gama de competências judiciárias, que hoje abarrotam de processos de natureza meramente recursal o Supremo Tribunal Federal. A acumulação de funções políticas com atribuições de natureza judicial separou os dois modelos.

Lamentavelmente, as tentativas de aproximar os dois padrões nunca vingaram. Entretanto, as constituições do pós-guerra, em grande parte, quer em estados unitários, quer naqueles organizados sob forma federativa, seguiram a tendência de dispor de uma corte exclusivamente constitucional. Lembro aqui, entre os estados unitários, a Espanha, a França, a Itália e Portugal. Lembro, entre os de regime federativo, a Alemanha, a Rússia, a Polônia, para não recorrer a outros exemplos.

Hoje, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o fato de estarmos votando emendas constitucionais que disciplinam matéria de competência estadual em relação aos respectivos poderes não deixa de soar como se estivéssemos substituindo nossa federação por um sistema semi-federativo. Temos que reconhecer ser grande o grau de interferência da União em matéria que não é nem histórica nem organicamente típica da competência federal. Os conflitos que isso gera em matéria penal, dada a progressiva tipificação de crimes de competência federal são conhecidos e têm repercussão até mesmo na área da execução penal, como acabamos de assistir com as dubiedades relativas ao cumprimento da pena de um delinqüente que se tornou famoso nacionalmente.

A meu ver, Sr. Presidente, é preciso que a fronteira entre as deficiências e carências de cada um dos Poderes não seja assunto privativo de suas exclusivas esferas de interesse. Instituições como o Conselho da República, de tão estritas atribuições constitucionais, poderiam ter membros dos três e não apenas dos dois Poderes e servir de fórum para discussão e busca de soluções, não só de questões do Estado mas também da Federação, sendo indispensável incluir entre seus membros, a meu ver, em caráter rotativo, os Governadores.

Não tenho a pretensão, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, de apresentar soluções, mas de buscar caminhos que nos levem a elas através de uma reflexão que possamos ponderar não só sobre os problemas da forma de governo, como tem sido tradicional entre nós, mas também dos que dizem respeito à forma do Estado. Confesso que quanto mais penso nos desafios do governo, que são transitórios, mais me preocupo com os do Estado, que são permanentes e transcendem o horizonte de nossas precárias e transitórias aspirações.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/09/2003 - Página 26949