Fala da Presidência durante a 124ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Discurso homenageando os 175 anos da criação da lei que criou o Supremo Tribunal Federal.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Fala da Presidência
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Discurso homenageando os 175 anos da criação da lei que criou o Supremo Tribunal Federal.
Publicação
Publicação no DSF de 19/09/2003 - Página 28035
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, DISCURSO, AUTORIA, ORADOR, SOLENIDADE, HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE FUNDAÇÃO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF).

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) -

HISTÓRIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

É com grande honra que, em nome do Senado Federal, participo desta solenidade em que se comemoram os 175 anos do Supremo Tribunal Federal, com a criação, a 18 de setembro de 1828, na Capital do Império, do Supremo Tribunal de Justiça, que marcou um momento decisivo do direito no Brasil.

A primeira forma desta casa, como bem explicitou no seu brilhante discurso o nosso ministro Carlos Velloso, está ligada a Bernardo Pereira de Vasconcelos, como a casa atual está ligada à de Rui Barbosa. Sua inteligência extraordinária estava atenta a todos os problemas nacionais. Bernardo Pereira de Vasconcelos justificara seu projeto, em agosto de 1826, dizendo que o Desembargo do Paço exercia suas atribuições "com grande vexame público"; mas criou uma instituição que vem assumindo, ao longo destes anos, este papel central no equilíbrio de poderes, na harmonia da Nação.

O parlamentar Bernardo Pereira de Vasconcelos foi talvez para o 1o Império, sobretudo para o direito do 1o Império, o que Rui foi para a transição republicana. Preocupado com a dimensão tutelar do Estado, formulou o Ato Adicional, o Código Criminal de 1830, o primeiro da América Latina, os cursos jurídicos, entre tantas leis, e nos deixou uma lição extraordinária.

O grande mineiro fora liberal e "incendiário" na Constituinte, ao lado de Antônio Carlos, de José Bonifácio, de Cairú e de tantos outros que marcaram profundamente o pensamento constitucional brasileiro naquele instante inaugural das nossas Constituições. Fora defensor do direito de convocar os Ministros, uma das questões centrais na crise entre a Assembléia Constituinte e o Imperador:

"Qual de nós se curvará a um Ministro de Estado? Qual de nós não elevará sua voz (voz poderosa porque é a da Nação) para interrogar, refutar e argüir os Ministros de Estado?"

Quando criou o partido conservador, o partido "regressista", se explicou:

"Fui liberal; então a liberdade era nova em meu país. Estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas idéias práticas; o poder era tudo; fui liberal. […] Como então quis, quero hoje servi-la, a Pátria, quero salvá-la e, por isso, sou regressista."

Quando, no centenário da instituição do Supremo Tribunal Federal da República -- quero aqui tornar a recordar Bernardo Pereira de Vasconcelos; ele foi uma figura tão importante, com uma auréola de grandeza, de inteligência e grande formulador das instituições políticas que naquele instante faziam começar o Brasil, que o Senado do Império concedeu-lhe a faculdade de falar sentado, e ele falava sentado, cercado por uma auréola, como eu disse, respeitado por todo o Senado, que ouvia em silêncio o grande tribuno e o grande pensador da Constituinte -- quando, no cenário da instituição do Supremo Tribunal Federal pela República, fiz a saudação a esta casa em nome do Senado Federal, comecei lembrando a nova realidade que enfrentávamos juntos, o Brasil, o Supremo e o Senado. Esta realidade em que temos que fazer o grande entendimento que permitirá à Nação obedecer ao seu destino de paz e justiça social.

Senado e Supremo são casas muito próximas. Próximas pelos laços formais, por estarem os membros de uma casa sujeitos ao exame da outra; mas mais próxima pelos vínculos não escritos, pela idéia que está apenas insinuada nas qualificações constitucionais para os cargos: a da ponderação, a da responsabilidade, a da maturidade. Ambas as casas representam, na tradição do Estado brasileiro, os princípios permanentes, a estabilidade institucional, a superação dos conflitos contingentes, a segurança final dos direitos.

O Supremo Tribunal Federal e o Senado Federal têm também, em comum, a preocupação com a lei, e, em especial, com a Constituição. Por isto estamos reunidos, hoje, na apresentação de mais três títulos da coleção de obras clássicas da História Constitucional Brasileira. Como os anteriores, trata-se de livros que estão esgotados, de difícil acesso, e que colocamos à disposição de juristas, legisladores, historiadores e todos os interessados na história do nosso Direito Constitucional.

Estes três volumes são A Constituição de 1937, de Araújo Castro, História do Direito Constitucional Brasileiro, de Waldemar Martins Ferreira, e Do Poder Judiciário, de Pedro Lessa.

O exame por Araújo Castro da Constituição de 1937 me toca, inicialmente, por uma circunstância particular: Araújo Castro era filho do meu tio-bisavô, João Albino. O conheci menino, na minha infância, na sua casa no Maranhão, e guardo indelevelmente -- eu tinha seis anos de idade -- a figura do homem que era juiz federal, cercado de uma respeitabilidade imensa dentro do estado, numa grande austeridade em que vivia e em que era tido em todo estado do Maranhão. Àquele tempo ele já trabalhava nos livros sobre as constituições. E menciono uma outra coisa também muito particular: foi Araújo Castro que indicou meu pai para ser promotor público em Pinheiro, onde eu nasci.

Ele estudara a Constituição de 1934, de tão curta duração, a grande Constituição liberal, talvez não adaptada àquele tempo, fazendo comentários sobre sua pertinência e viabilidade. Logo depois, chegando o golpe do Estado Novo, e a violenta outorga da Constituição de 1937, ele escreveu um manual sob um regime que feria a própria Carta, ultrapassada no abuso de poder do ditador. Trata-se, por isto, como acentua o prof. Inocêncio Mártires Coelho, aqui presente, de obra marcada pela análise técnica, que não discute o mérito político e jurídico de seus artigos.

Assim, é com atenção especial que lemos os capítulos sobre o poder Legislativo, ficção em que o Senado seria substituído por um Conselho Federal, composto de representantes dos Estados nomeados pelo Presidente da República, e que teria que ouvir o Conselho de Economia Nacional, a câmara corporativa. Coloco no condicional, pois, como sabemos, o legislativo do Estado Novo jamais se reuniu.

O estudo daquele projeto - pois ele nunca foi submetido ao plebiscito que o validaria como Constituição - é importante para entender as idéias dominantes em todo o mundo na exacerbação concentracionária daquele triste momento da História. Conhecer os caminhos usados pela tentação autoritária para torcer a lei é um passo importante para evitá-los.

Waldemar Ferreira, no outro livro aqui lançado, História do Direito Constitucional Brasileiro, enfatiza "a irrealização do organismo político plasmado na carta de 1937" por ser "destituída de sinceridade". A intenção manifesta de fazer um regime de arbítrio passou também pelo que chamou de "anti-judiciarismo", com a colocação do "estado de emergência", em que dos atos do Presidente não poderiam conhecer os juízes e tribunais.

Lembremos que um dos eventos que levou ao fim do regime Vargas foi a posição do Supremo Tribunal Federal na concessão dos habeas corpus -- instituído ao tempo de Bernardo Pereira de Vasconcelos e consagrado por Rui Barbosa -- impetrados por Maria Rita Soares de Andrade e pelo próprio professor Waldemar Ferreira, em dezembro de 1944 e abril de 1945. Junto com a liberdade de imprensa, feita heroicamente pelo Correio da Manhã e por O Globo, com a publicação da entrevista de José Américo, e com o Manifesto dos Mineiros, foi a magistratura brasileira decisiva na restauração do Estado democrático.

A matéria política não era alheia também a Pedro Lessa, autor do terceiro livro lançado hoje, o estudo Do Poder Judiciário. Ministro de 1907 a 1921, Lessa é considerado um dos maiores nomes -- talvez todo o dia citado e lembrado -- desta Casa de tantos filhos ilustres. Embora datado de 1915, sob a vigência, portanto, da carta de 1891, seu livro é um importante ensaio sobre este poder e, sem dúvida alguma, uma referência obrigatória.

Entre os grandes temas desta Corte, Pedro Lessa estudou longamente o habeas corpus, indo descobrir seus traços nas Ordenações do Reino de Portugal -- livro 3o, título 78, parágrafo 5o --, e transcrevendo, para ilustrar a relação do instrumento com a liberdade individual, seu voto vencido no exame do impetrado por Nilo Peçanha, reconhecido presidente do Estado do Rio de Janeiro por uma minoria da Assembléia:

(...) concede a ordem impetrada para que o paciente possa, livre de qualquer constrangimento e assegurada a sua liberdade individual, penetrar, no dia 31 de dezembro, no palácio da presidência do Estado do Rio de Janeiro, e exercer suas funções de presidente...

O ministro Velloso bem ressaltou a importância do poder político que passou a ser exercido pelos tribunais e na cópia do que foi a Corte Suprema dos Estados Unidos. Pedro Lessa estudava também o que chamava "as questões políticas", em sua admissibilidade ou não ao exame do Supremo Tribunal Federal. Sua conclusão foi de que só estariam alheias ao tribunal as "questões exclusivamente políticas", isto é, as que dizem respeito ao poder discricionário do Executivo ou do Legislativo. Este é um dos princípios que, seguidamente adotados por esta Casa, criando um corpo de jurisprudência das relações entre os poderes, têm assegurado o adequado equilíbrio dos poderes e o funcionamento de nossa democracia.

Quero trazer uma surpresa ao senhor ministro Maurício Corrêa. Ele, há poucos dias, em uma solenidade que fazíamos, no Senado Federal, lançando o livro em que Dom Pedro I fazia anotações sobre a Constituição de 1924, ele me fez uma solicitação: de que, juntamente com o Supremo Tribunal Federal, o Senado editasse a revista de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Pois bem, ministro Maurício Corrêa, nós já estamos trazendo hoje o convênio. Vossa Excelência, que é jurista e juiz, naturalmente vai examinar o convênio, mas só tem uma cláusula ao final que diz que as divergências sobre o nosso convênio serão decididas por um juiz arbitral.

Assim, nós estamos trazendo o Senado para participar da edição do mais importante, valioso e fundamental repositório jurídico brasileiro, o que é o cumprimento de um dever e de uma grande honra.

Eu quero sobretudo ressaltar que a comemoração de hoje, dos 175 anos da instalação daquela primeira Corte de Justiça, que na sucessão veio se transformando no Supremo Tribunal Federal, realiza-se em um momento em que o Brasil está em uma plenitude do Estado de direito, em que todos nós caminhamos sem olhar sombras sobre as instituições do país. O Supremo Tribunal Federal não teve, em alguns momentos da sua história, essa oportunidade de comemorar grandes datas em situações como esta.

Recordo que em 1941, nos 50 anos do Supremo Tribunal Federal, nós vivíamos sob uma ditadura. O presidente Vargas, por um decreto, anulara uma sentença do Supremo Tribunal Federal e substituíra, em nome do poder Executivo, o seu presidente. Outras vezes tivemos comemorações nas quais o Supremo Tribunal Federal sentia na sua própria carne restrições ao número de seus membros e intervenções

O Brasil sempre foi, ao longo do tempo, um país que teve problemas e atos institucionais, mas nunca nenhum brasileiro, nenhum homem, mesmo nos momentos de maior autoritarismo, pensou em fechar o Supremo Tribunal Federal. O mesmo não aconteceu com o Congresso Nacional, que algumas vezes foi fechado.

Pois bem, mas eu quero também dizer que, na evolução desse tempo, quando pegamos no decreto de Dom João VI de 1808, de 10 de maio de 1808, quando ele criava a Casa de Apelação do Rio para que não se precisasse levar as causas até o Tribunal de Suplicação de Lisboa, nos considerandos ele dizia que aquele tribunal se destinava a defender os direitos de propriedade, porque considerava a propriedade o fundamento da vida dos homens daquele tempo.

Quando veio o Supremo Tribunal Federal, Campos Salles, na sua exposição de motivos, diz que o Supremo Tribunal Federal é feito para guardar os direitos individuais.

E hoje, estamos comemorando 175 anos do Supremo Tribunal Federal, quando estamos dedicados a resguardar os direitos sociais.

A gente vê, na evolução desta Corte, como passamos do pensamento dos direitos da propriedade absoluta, para os direitos individuais, e destes para os direitos sociais. E da guarda permanente destes direitos sociais está incumbido o Supremo Tribunal Federal.

Sou levado também a fazer alguns comentários -- me perdoe o Supremo Tribunal Federal -- motivados pelas palavras do ministro Carlos Velloso. Na cópia que temos do modelo americano, na colocação do Supremo Tribunal Federal como o pilar mestre de todas as nossas instituições, eu procuro e verifico que, quando também nós começamos a instituir o Supremo Tribunal Federal, no começo da República, o decreto dizia que para exercer o cargo de ministro os cidadãos deviam ter as condições de elegibilidade dos senadores da República. Não falava em condições específicas, mas vinculava o Senado aos senadores.

Eu vejo isso não para aproximar o Senado, em uma imagem que talvez não caberia, mas para dizer que àquele tempo o poder moderador, que constituiu o equilíbrio durante todo o Império, era exercido pelo Imperador e também pelo Senado, que era tido como uma casa conservadora, que ajudava ao equilíbrio das instituições e que assegurava a estabilidade do país.

Com a fundação da República, essa transposição da noção do poder moderador a que aqui aludiu o ministro Carlos Velloso, é talvez a função principal do poder Judiciário nas democracias. Hoje, mais do que nunca, numa sociedade de conflitos, numa sociedade inviável sob o ponto de vista de conflitos, a Justiça é aquela que tem a condição de estabelecer o equilíbrio dentro da sociedade, de harmonizar os conflitos, de colocar-se, acima de tudo, como fiadora da Constituição e de colocar a Constituição como fiadora do pacto que nos faz ser um Estado de direito.

Assim eu renovo aqui, nesses 175 anos, repetindo Rui que disse que o Supremo Tribunal Federal era a Casa guardiã, não somente da Constituição, mas da nossa pátria, assim eu renovo esses votos, na certeza de que o Supremo Tribunal Federal saberá manter -- e manterá --, essa nova função que lhe é entregue pelos tempos modernos, de responsável pelo equilíbrio nacional, como o poder da moderação, o poder do equilíbrio, dirimindo todos os conflitos de uma sociedade democrática.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/09/2003 - Página 28035