Discurso durante a 133ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Enaltecimento do novo programa de transferência de renda coordenado pela Presidência da República chamado Bolsa Família reunindo todos os outros programas já executados por Estados e Municípios.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIO ECONOMICA.:
  • Enaltecimento do novo programa de transferência de renda coordenado pela Presidência da República chamado Bolsa Família reunindo todos os outros programas já executados por Estados e Municípios.
Publicação
Publicação no DSF de 02/10/2003 - Página 29818
Assunto
Outros > POLITICA SOCIO ECONOMICA.
Indexação
  • IMPORTANCIA, INICIATIVA, GOVERNO FEDERAL, UNIFICAÇÃO, PROGRAMA ASSISTENCIAL, PROGRAMA, TRANSFERENCIA, RENDA, COORDENAÇÃO, MINISTRO DE ESTADO, CHEFE, CASA CIVIL.
  • COMENTARIO, LEITURA, TRECHO, ESTUDO, COMPROVAÇÃO, EFICACIA, UNIFICAÇÃO, PROGRAMA ASSISTENCIAL, POSSIBILIDADE, INICIATIVA, GOVERNO FEDERAL, FAVORECIMENTO, PROGRAMA, RENDA MINIMA.
  • SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, PARECER, DEPUTADO FEDERAL, RELATOR, PROJETO DE LEI, CRIAÇÃO, RENDA MINIMA.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente Mão Santa, Srªs e Srs. Senadores, quero registrar o avanço, que considero extremamente importante, nos programas de transferência de renda anunciados pelo Presidente da República na reunião realizada ontem com todos os Governadores de Estado, com o fim de coordenar as ações tanto da União quanto dos Governos do Estado e dos Municípios brasileiros.

Esse novo programa de transferência de renda abrangerá os programas até agora vigentes, como os de renda mínima associados à educação (Bolsa Escola), à saúde (Bolsa-Alimentação), o Programa Cartão Alimentação, relativo ao Fome Zero, o Programa Auxílio-Gás e, proximamente, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Esses programas estavam sendo coordenados por diversos Ministérios, como o da Educação, da Saúde, de Minas e Energia, do Trabalho, e pela Secretaria da Assistência e Promoção Social, mas todos passarão a ser coordenados por uma Secretaria Executiva, composta pela Srª Ana Maria Medeiros da Fonseca e pelo economista Ricardo Henriques. Ela foi a coordenadora do Programa de Garantia de Renda Mínima em São Paulo, e ele é o Secretário Executivo da Ministra da Assistência e Promoção Social, Srª Benedita da Silva. Enfim, todos esses programas estarão sob a responsabilidade do Presidente da República e serão coordenados pelo Ministro da Casa Civil, José Dirceu, conforme consta do decreto que está por enquanto em minuta, que regulamentará o denominado Programa Bolsa-Família. Será instituído um Conselho Gestor Interministerial, presidido pelo Ministro da Casa Civil, que terá como Secretária Executiva a Srª Ana Fonseca.

            Sr. Presidente, trata-se de um passo na direção correta do que venho defendendo: a implantação no Brasil, de forma gradual, de uma renda básica de cidadania.

            Gostaria de assinalar ainda que recente estudo realizado em cooperação por várias universidades - Universidade Federal do Maranhão, sob a responsabilidade da Prof. Maria Ozanira da Silva e Silva; Pontifícia Universidade Católica, sob a responsabilidade da Prof. Maria Carmelita Yasbek; Universidade Estadual de Campinas, sob a responsabilidade do Prof. Geraldo di Giovanni - sobre a realidade dos programas de transferência de renda no Brasil, os programas de renda mínima Bolsa-Escola, de iniciativa dos Estados e Municípios, depois de bem analisar a experiência de 45 programas municipais e 12 programas estaduais, chegou à conclusão de que seria, sim, um bom passo caminhar na direção da coordenação, racionalização e unificação dos diversos programas de renda mínima e bolsa-escola. Nesse mesmo estudo, também está a seguinte conclusão, no seu parágrafo final:

Por outro lado, há que se reconhecer que os programas em estudo, mesmo com todos os limites e dificuldades apresentadas, parecem conter um potencial para a ultrapassagem de uma marca meramente compensatória, por não se limitarem uma transferência monetária e pela perspectiva de ampliação de direitos sociais que representam. Todavia, essa potencialidade impõe limites profundos para sua efetivação, limites superáveis com a ultrapassagem do desafio que coloca a necessidade de construção de uma política nacional articuladora dos programas de transferência de renda, capaz de ultrapassar os limites de uma renda mínima, mais mantenedora do que superadora da situação de pobreza das famílias brasileiras, direcionando-se para a adoção de uma renda de cidadania, com vistas à inclusão social de todas as famílias brasileiras, com sua participação na distribuição da riqueza socialmente produzida, situação essa só possível com a articulação de uma política nacional de transferência de renda, com uma política macroeconômica de distribuição de renda, de geração de emprego e de valorização da renda do trabalho, além do desenvolvimento de ações sociais intersetoriais conforme já previsto nos desenhos dos programas.

Esse estudo está a mostrar que o passo ora dado pelo Governo Lula é na direção correta e que melhor ainda será se caminharmos e nos prepararmos para a instituição de uma renda básica de cidadania, a exemplo daquilo que o Senado Federal aprovou em dezembro último, quando o Senador Francelino Pereira deu o parecer favorável na Comissão de Assuntos Econômicos, onde, em duas votações terminativas, por unanimidade, votou-se o projeto de lei que institui a renda de cidadania.

Informo ao Senado Federal que esse projeto enviado para a Câmara dos Deputados foi para a Comissão de Finanças e Tributação, onde foi destinado o Relator o Deputado Paulo Bernardo do PT do Paraná, que, na data de hoje, está dando entrada ao seu parecer favorável ao Projeto de Lei nº 254, de 2003, que instituiu a renda de cidadania e dá outras providências.

Quero assinalar alguns trechos do voto do Relator Paulo Bernardo, que informa que:

(...) sob a ótica social, a proposição é incontestável e a renda de cidadania defendida por pensadores como Philippe Van Parijs e Guy Standing, que têm em comum a busca de uma sociedade mais justa, é uma potente política que inova o status quo, que redistribui a renda e que emancipa o ser humano. Ela está pautada nos históricos princípios de justiça social e da liberdade e dignidade humanas, que são de aceitação universal. Além de contribuir para o aumento da dignidade humana, para a diminuição da vulnerabilidade das pessoas às adversidades naturais e econômicas e para a concretização da plenitude da liberdade individual, ela ataca um dos principais determinantes da histórica pobreza brasileira: a desigualdade distributiva da renda.

Nesse contexto, a renda básica apresenta-se totalmente consistente com os valores jurídicos fundamentais para a configuração do Estado brasileiro, conforme está expresso no seu art. 3º, que estabelece como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais.

            Prossegue em outro trecho o Deputado Paulo Bernardo, afirmando que inúmeros países têm considerado, hoje, a instituição da garantia de uma renda, por meio de uma renda básica de cidadania. Refere-se às inúmeras experiências de garantias de renda mínima, de programas de bolsa-escola, no Brasil, para, em sua conclusão, explicar exatamente o que vem a ser a renda básica de cidadania, uma renda paga por uma comunidade política.

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa) - Senador Eduardo Suplicy, lamento lembrar que acordamos em dez minutos. Mas quero também ter o prazer de dizer que V. Exª é um Senador nota 10.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Muito obrigado. Sr. Presidente.

Requeiro, portanto, que seja transcrito na íntegra o parecer do Deputado Paulo Bernardo como uma contribuição ao Senado Federal, inclusive ao Senador Antonio Carlos Valadares, que teve a gentileza de permitir que eu esteja agora falando a fim de que possa rapidamente me deslocar para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

Desejo apenas, ao concluir, informar como será importante a esse conselho que se forma, o chamado Conselho Gestor Interministerial, presidido pelo Ministro José Dirceu, de que farão parte todos os ministros das áreas sociais, que venha a estudar o melhor desenho de um programa de transferência de renda. O desenho presente - de se prover às famílias que não ganham até R$100 por mês um complemento de renda equivalente a R$50 mais R$15, R$30 ou R$45, portanto, de R$65 a R$95, que será o teto máximo - constitui um avanço em relação aos desenhos anteriores. Mas creio que poderá ser aperfeiçoado. E um dos caminhos é exatamente o que está apresentado pelo projeto da renda de cidadania.

Agradeço, Sr. Presidente, a gentileza de ter-me chamado a atenção para aquilo que havíamos combinado.

Requeiro, portanto, que seja transcrito na íntegra o parecer do Deputado Paulo Bernardo sobre a renda de cidadania.

 

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR EDUARDO SUPLICY EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido de acordo com o art. 210, II, do Regimento Interno.)

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            COMISSÃO DE FINANÇAS E TRIBUTAÇÃO

            PROJETO DE LEI Nº 254, DE 2003

      Institui a renda de cidadania e dá outras providências.

Autor: SENADO FEDERAL

Relator: Deputado PAULO BERNARDO

            I - RELATÓRIO

                   Trata-se de projeto de lei de autoria do Senador Eduardo Suplicy. A proposição visa a instituir, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que consistirá em um benefício monetário, pago anualmente, a todos os brasileiros residentes no País e a estrangeiros residentes no Brasil há pelo menos cinco anos, independentemente das condições socioeconômicas dos beneficiários. 

                   Inicialmente, a renda básica não será concedida a todos. A abrangência total do benefício será alcançada gradualmente. Segundo a proposta, o Poder Executivo determinará os segmentos da população que se beneficiarão a cada nova etapa, dando prioridade para os mais necessitados.

                   O valor da renda básica deverá ser suficiente para atender as despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, habitação, educação e saúde. Para a definição do montante do benefício, o Executivo considerará o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias e observará, estritamente, o disposto nos arts. 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) -- Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.

                   Nos termos da proposição, a partir de 2005, as normas orçamentárias tratarão da renda básica. No orçamento para esse exercício, a União consignará a dotação orçamentária suficiente para implementar a primeira etapa do projeto. Além disso, os projetos de lei relativos aos planos plurianuais e às diretrizes orçamentárias especificarão os cancelamentos e as transferências de despesas e outras medidas necessárias à execução do programa.

                   A proposição foi aprovada no Senado Federal e, nos termos da Constituição, veio para a Câmara dos Deputados para revisão.

                   No prazo regimental, não foram apresentadas emendas à proposição.

                   É o relatório.

            II - VOTO DO RELATOR

                   O projeto de lei em análise está sujeito à apreciação conclusiva pelas Comissões da Câmara dos Deputados. Conforme o despacho inicial, cabe à Comissão de Finanças e Tributação (CFT) emitir parecer terminativo sobre a compatibilidade e adequação orçamentária e financeira da proposição. Como o projeto foi distribuído apenas para esta Comissão e para a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, que se pronunciará quanto à constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa da matéria, o parecer deve, também, tratar do mérito da proposição.

                   Comecemos pelas questões financeiras e orçamentárias.

                   A CFT dispõe de Norma Interna que estabelece os parâmetros do exame da compatibilidade ou adequação financeira e orçamentária das proposições a ela distribuídas. Tal exame, consoante a referida norma, consiste na análise da conformidade da proposição com o plano plurianual, com a lei de diretrizes orçamentárias, com o orçamento anual e com as normas relativas a essas três peças orçamentárias e relativas à receita e à despesa públicas.

                   Nos termos do projeto, a renda básica afetará as finanças públicas apenas a partir de 2005, ano em que será implementada. No entanto, o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual, atualmente em vigor, não vigerão naquele ano. Logo, não há como analisar, neste momento, o projeto de lei à luz dos instrumentos citados.

                   Além disso, não vemos óbices na LRF que impeçam a instituição da renda básica, tal qual proposta pelo Senado Federal. A LRF, que se constituiu em uma norma de finanças públicas da maior relevância, é uma lei eminentemente instrumental. Ela visa a impedir o descontrole dos gastos públicos e a garantir o equilíbrio fiscal e a não-ocorrência de déficits orçamentários, o que é fundamental para a estabilidade macroeconômica.

                   A proposição tem uma nítida preocupação com a responsabilidade fiscal. Ela prevê que, a partir do exercício financeiro de 2005, os projetos de lei relativos aos planos plurianuais e as diretrizes orçamentárias especificarão os cancelamentos e as transferências de despesas, bem como outras medidas julgadas necessárias à execução do programa. É verdade que será criada nova despesa para a União, mas isso se dará de forma gradual e em estrita obediência às disposições da LRF. Segundo o projeto, o próprio Poder Executivo, discricionariamente, estenderá o programa aos ainda não-contemplados, quando as condições financeiras forem favoráveis. Com essas medidas, as despesas geradas pela renda básica estarão em harmonia com a capacidade de arrecadação do governo.

                   Entendemos, também, que os requisitos para a criação de ações governamentais que aumentam a despesa pública são respeitados pela proposição. Essas condições estão previstas nos arts. 16 e 17 da LRF, que estão assim redigidos:

    Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:

    I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes;

    .......................................................................................

    § 2º A estimativa de que trata o inciso I do caput será acompanhada das premissas e metodologia de cálculo utilizadas.

    .......................................................................................

    Art. 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.

    § 1º Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio.

    § 2º Para efeito do atendimento do § 1º, o ato será acompanhado de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo referido no § 1º do art. 4º, devendo seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa.

    § 3º Para efeito do § 2º, considera-se aumento permanente de receita o proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

    § 4º A comprovação referida no § 2º, apresentada pelo proponente, conterá as premissas e metodologia de cálculo utilizadas, sem prejuízo do exame de compatibilidade da despesa com as demais normas do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias.

    § 5º A despesa de que trata este artigo não será executada antes da implementação das medidas referidas no § 2º, as quais integrarão o instrumento que a criar ou aumentar.

    § 6º O disposto no § 1º não se aplica às despesas destinadas ao serviço da dívida nem ao reajustamento de remuneração de pessoal de que trata o inciso X do art. 37 da Constituição.

    § 7º Considera-se aumento de despesa a prorrogação daquela criada por prazo determinado.

    .......................................................................................

    ......................................................................................”

                   Como dissemos, a lei que instituir a renda básica produzirá efeitos apenas em 2005. Por isso, não é necessário que os estudos, relatórios e demonstrativos previstos nos dispositivos legais sobreditos sejam elaborados e apresentados desde logo. Caberá ao Executivo, ao implementar e expandir o programa e definir o valor do benefício, instruir os atos editados para esses fins com os documentos listados nos arts. 16 e 17 da LRF.

                   A proposição, portanto, não apresenta inadequações ou incompatibilidades de ordem financeira ou orçamentária.

                   Enfrentadas as questões iniciais, passemos ao mérito do projeto.

                   Sob a ótica social, o mérito da proposição é incontestável. A renda de cidadania, defendida por pensadores como Philipe Van Parijs e Guy Standing, que têm em comum a busca de uma sociedade mais justa, é uma potente política que inova o status quo, que redistribui a renda e que emancipa o ser humano. Ela está pautada nos históricos princípios da justiça social e da liberdade e dignidade humanas, que são de aceitação universal. Além de contribuir para o aumento da dignidade humana, para a diminuição da vulnerabilidade das pessoas às adversidades naturais e econômicas e para a concretização da plenitude da liberdade individual, ela ataca um dos principais determinantes da histórica pobreza brasileira: a desigualdade distributiva da renda.

                   Nesse contexto, a renda básica se apresenta totalmente consistente com valores jurídicos fundamentais para a configuração do Estado brasileiro. De fato, a Constituição, em seu art. 3º, estabelece como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais.

                   Em outros pontos, percebemos a clara preocupação do Constituinte de 1988 com as questões sociais. A Carta Magna, ampliando sua dimensão social, inclui no art. 6º, entre os direitos fundamentais, a educação, a saúde, a moradia, o trabalho, o lazer, a segurança e a proteção à maternidade e à infância. Mais adiante, ao tratar da ordem social, estabelece normas programáticas que asseguram aos trabalhadores proteção contra a perda da capacidade para trabalhar e que garantem aos desvalidos em geral direitos assistenciais básicos.

                   Entretanto, existe um imenso fosso que separa as intenções do Texto Constitucional da realidade social. Perto de 22 milhões de brasileiros vivem em condições de indigência. Quase 34% da população vivem em condições de pobreza. Esses números podem variar, de acordo com o critério e metodologia utilizados, mas, em todos os casos, eles revelam uma realidade preocupante e vergonhosa.

                   No Relatório de Desenvolvimento Humano, divulgado em julho deste ano, pela Organização das Nações Unidas, nosso País ocupa uma posição incômoda. No ranking do Índice de Desenvolvimento Humano -- um indicador baseado na média aritmética simples de três indicadores fundamentais da condição de vida, a esperança de vida ao nascer, o nível educacional e produto interno bruto per capita --, o Brasil ocupa a 65ª posição. Estamos em pior colocação do que vários países latino-amercanos, como, por exemplo, a Argentina, que vive uma grave crise econômica, e a Colômbia, que, há anos, sofre com os efeitos negativos de violentos distúrbios internos.

                   Em termos de distribuição de renda, em várias passagens ao longo do Relatório de Desenvolvimento Humano de 2003, o Brasil é citado como paradigma de iniquidade. Especialmente no que se refere ao Índice de Gini, que é uma medida da desigualdade de renda, estamos na 6ª pior colocação, ganhando apenas da Namíbia, de Botswana, de Serra Leoa, da República Centro-Africana e da Suazilândia -- todos países da África sub-saariana.

                   Os especialistas afirmam que o Brasil contemporâneo não é um país pobre. O Brasil é, isto sim, um país com muitos pobres e extremamente injusto e desigual. Na origem da pobreza brasileira, dizem os estudiosos, encontra-se a desigualdade, cujo combate se torna um imperativo de uma sociedade que almeje combinar democracia com eficiência econômica e justiça social.

                   Em um artigo publicado em 2001 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Barros, Henriques e Mendonça concluem que, no Brasil atual, a pobreza é mais sensível à desigualdade do que ao crescimento econômico. Segundo eles, malgrado seja o crescimento da economia uma importante via de enfrentamento da pobreza, ela é lenta. Para cada 3% de incremento anual da renda per capita, os níveis de pobreza demoram 2 anos para decrescerem em apenas 1%. De acordo com os autores, se fosse alterado o perfil de desigualdade brasileiro para um padrão condizente com nosso desenvolvimento econômico, haveria uma redução da ordem de 36% na pobreza brasileira, ainda que inexistisse crescimento da economia.

                   No âmago dessa questão, há muito mais fatores políticos do que estritamente econômicos. Marilia Pastuk -- uma brilhante estudiosa da renda de cidadania --, apoiada em farta e respeitada literatura sobre o tema, em seu projeto de tese de doutorado, lembra que limitações na democracia brasileira são a principal causa da persistente desigualdade, pobreza e exclusão social no País. Destaca, também, a percepção de que é a falta de cidadania, muito mais do que o mercado, que gera a exclusão social no Brasil. Defende que, devido a isso, é preciso repolitizar o social, trazendo à tona a questão social.

                   Talvez por isso, os modelos de combate à pobreza unicamente baseados no crescimento econômico, bastante difundidos entre os especialistas e organismos internacionais, não tenham alcançado os resultados desejáveis. Sonia Rocha, no recente livro Pobreza no Brasil -- Afinal, de que se trata? ensina que o início dos anos 1970 marca o reconhecimento, por parte dos acadêmicos e das instituições financiadoras do desenvolvimento, de que o crescimento econômico não estava equacionando as questões básicas relativas às desigualdades sociais e à pobreza.

                   No decorrer da história e em diversas localidades do mundo, várias alternativas de combate aos problemas sociais foram sugeridas e experimentadas. Dentre as que não estavam necessariamente ligadas ao crescimento da economia, destacamos as propostas e as experiências que, simplificadamente, consistem em uma transferência monetária direta do governo para as pessoas ou para as famílias, ora condicionadas a certas contraprestações dos beneficiários, ora incondicionadas, cujo propósito geral é combater situações de exclusão e desintegração sociais.

                   Como bem lembrou o nobre Senador Eduardo Suplicy, no recente e profundo livro intitulado Renda de Cidadania - A saída é pela porta, em que sintetiza a origem, os desdobramentos e o desenvolvimento do conceito da renda básica e dos programas de garantia de renda mínima no Brasil e em alguns países, a idéia de uma renda básica há muito povoa a mente de alguns do maiores pensadores da humanidade. Thomas More, em 1516, Thomas Paine, em 1795, e Bertrand Russel, em 1918, foram pensadores que indicaram, em suas obras, a possibilidade de que as pessoas que não obtivessem determinada renda devessem ter recursos suficientes para garantir suas necessidades básicas. Essa renda mínima estaria determinada pela capacidade geral do Estado em termos de seus bens produzidos.

                   Aduz, ainda, o ilustre Senador da República que esses pensadores assumiam conceitualmente que as referidas pessoas nasciam com direito legítimo à satisfação das suas necessidades e que todos que fossem privados dessa herança natural deveriam ser recompensados por dividendos iguais que garantissem sua sobrevivência, gerando possibilidade na evolução dos conceitos de liberdade e igualdade.

                   Muito tempo depois, nos últimos cinqüenta anos do século passado, o debate sobre as propostas de renda mínima ganhou vitalidade, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. Segundo Pastuk, as experiências européias, que inicialmente eram localizadas, passam a nacionais e, a partir dos anos 1970, espalham-se por diversos países membros da União Européia. Nos Estados Unidos, onde foi criado um programa de distribuição de cupons alimentares e instituída uma forma parcial de imposto de renda negativo, o debate ganha contornos bem distintos do europeu, com uma cisão cada vez mais profunda entre defensores e críticos dos programas de Welfare State. Em todos esses casos, entretanto, os programas se caracterizam por instituir uma renda complementar.

                   Em 1992, o Conselho das Comunidades Européias, ampliando as dimensões do debate, deu um importante passo na direção da renda de cidadania. Ele recomendou aos Estados-membros que reconhecessem o direito fundamental dos indivíduos a recursos que lhes garantam uma vida digna. Naturalmente, as propostas de transferência direta de renda implantadas ex ante -- como a renda básica ou cidadã, de cobertura universal e incondicional --, por assumirem um caráter preventivo, são as mais apropriadas para garantir esse direito fundamental. As propostas implantadas ex post, já que se traduzem em uma medida reparadora, são um remédio contra as violações do referido direito fundamental.

                   Não podemos deixar de mencionar, neste breve retrospecto, as negociações que vêm sendo feitas na África do Sul. Nesse país, as propostas avançam na direção da implantação de uma renda básica universal e incondicional. Espera-se que isso possa contribuir para a eqüidade e para a promoção de maior estabilidade para os sul-africanos, imprimindo-lhes uma vida mais digna.

                   No que toca às experiências já implementadas, a do estado americano do Alasca é a mais bem sucedida. Há 22 anos, o Alasca vem distribuindo, anualmente, cerca de 6% do produto interno bruto aos ali residentes há pelo menos um ano. Isso o tornou o estado com maior igualdade de renda entre todos os cinqüenta estados dos Estados Unidos da América (EUA). Além disso, de acordo com os dados levantados pelo Economic Policy Institute dos EUA, a distribuição de igual benefício para todos os beneficiários do programa fez que, de 1990 a 2000, a renda familiar dos 20% mais pobres crescesse 28%, sendo que, no mesmo intervalo de tempo, a renda familiar dos 20% mais ricos também cresceu, só que apenas 7%. Em contraste, para todo os EUA, no mesmo período, a renda familiar dos 20% mais pobres cresceu 12%, e renda familiar dos 20% mais ricos cresceu 26%.

                   No Brasil, embora as discussões não sejam novas e estejam mais voltadas para programas de garantia de renda mínima tradicionais, apenas nas últimas duas décadas elas passaram a compor a nossa agenda de políticas públicas de forma mais intensa. Para apresentar os pontos principais desse debate e para retratar as principais experiências brasileiras com esses programas, vamos nos socorrer, mais uma vez, do texto de Marilia Pastuk e do livro do Senador Eduardo Suplicy, já citados.

                   Como vimos, a discussão sobre a renda mínima surgiu nos países desenvolvidos. Obviamente, ela pressupõem uma realidade muito diferente da nossa. Por isso, a introdução de programas dessa natureza em sociedades como a brasileira, marcadas por um grande déficit social, envolve uma série de questões complexas, que ou não estão presentes nos países ricos ou estão presentes em dimensões diferenciadas.

                   Em nosso País, assim como em outros, a pobreza é histórica e estrutural. Ela é resultado de uma longa trajetória de exclusão social de segmentos populacionais determinados. Para a sua configuração, fatores como a indigência econômica, a falta de acesso a serviços sociais básicos -- como educação e saúde --, o desconhecimento de princípios básicos de cidadania, a desestruturação familiar e pessoal associam-se e reforçam-se mutuamente. O fenômeno da exclusão social no Brasil, onde sequer conformou-se um Estado de Bem-Estar Social nos moldes dos países desenvolvidos, além de significar falta de cidadania, é fortemente agravado pela alta concentração de renda e de riquezas, como já assinalamos.

                   Malgrado a Constituição tenha concebido um sistema de proteção social que prima pela eqüidade e pela universalidade, grupos sociais específicos são sistematicamente dele excluídos. A fragilidade das instituições da área social brasileira, que contam com parcos recursos técnicos e sofrem a influência de interesses privados, agrava o quadro.

                   Tais particularidades brasileiras não permitem que os modelos europeu e americano sejam aqui implantados sem modificações. É preciso não só aprofundar o debate teórico mas também desenvolver um processo social, que seja amplamente discutido, consensual e genuinamente brasileiro.

                   O debate público sobre o modelo brasileiro ganhou maior notoriedade em 1991. Nesse ano, o Senado Federal aprovou projeto de autoria do Senador Eduardo Suplicy, que institui o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM). Nos termos da proposição, todas as pessoas residentes no País, maiores de 25 anos, que auferissem rendimentos brutos mensais inferiores a cerca de R$ 500 (em valores de 2002), passariam a ter o direito de receber um complemento equivalente a 30% da diferença entre aquela quantia e a renda respectiva. Com apenas quatro abstenções, o referido projeto foi unanimemente aprovado pelo Senado Federal, em 16 de dezembro de 1991. Atualmente, o Projeto de Lei se encontra nesta Casa, onde tomou o registro de nº 2.561, de 1992. Depois de receber parecer favorável do então Deputado Germano Rigotto, hoje governador do Rio Grande do Sul, ele está em condições de ser votado na Comissão de Finanças e Tributação, agora sob a relatoria do Deputado Onix Dornelles Lorenzoni do Partido da Frente Liberal gaúcho.

                   Durante a discussão do projeto, propostas de alterações significativas foram apresentadas. Dentre elas, destacou-se a do economista José Márcio Camargo, que, embora concordando com a essência da proposta do Senador Suplicy, propunha que o PGRM fosse concedido para famílias que tivessem crianças em idade escolar, por acreditar que há associações entre as desigualdades sociais e o sistema educacional. A proposta de Camargo inspirou as primeiras experiências brasileiras de renda mínima.

                   O Município de Campinas foi o pioneiro. Em 1994, o Prefeito de Campinas, José Roberto Magalhães Teixeira, sugeriu à Câmara Municipal a criação do Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima (PGRFM), que beneficiaria todas as famílias, residentes na referida localidade, com renda inferior a meio salário-mínimo mensal e com crianças de zero até quatorze anos. O programa foi aprovado em janeiro de 1995 e condicionava o recebimento do benefício à freqüência escolar das crianças, transferindo às famílias renda suficiente para completar meio salário-mínimo per capita.

                   Na primeira semana de 1995, Cristovam Buarque, na época Governador do Distrito Federal, anunciou o início do programa Bolsa-Escola. Segundo esse programa, toda família que auferisse renda mensal inferior a meio salário mínimo per capita, com crianças de sete a quatorze anos e com residência no Distrito Federal há pelo menos cinco anos, teria direito a receber um salário mínimo por mês, desde que as crianças sob sua responsabilidade demonstrassem 90% de freqüência escolar.

                   A implantação desses programas, que foram logo repetidos em Ribeirão Preto, por iniciativa de Antônio Palocci, mostrou resultados positivos imediatos. De acordo com diversos estudos que os acompanharam, os programas contribuíram para a redução da evasão escolar e do grau de repetência e para a modificação da qualidade de vida das famílias e da auto-estima das pessoas, melhorando a atividade econômica das respectivas regiões. Em razão disso, inúmeros outros municípios, grande parte deles governados pelo Partido dos Trabalhadores e outra parte por diversos partidos, e alguns estados instituíram programas de renda mínima associados à educação ou Bolsa-Escola, com ligeiras variações em seus desenhos.

                   A viabilidade e o sucesso das experiências de Campinas e do Distrito Federal impulsionaram o debate no âmbito do Congresso Nacional. Diversos projetos foram apresentados, propondo estendê-las para todo o território nacional. Entre eles, é digno de nota o projeto de autoria do Deputado Nelson Marchezan, o qual, na forma do substitutivo apresentado pelo Senador Lúcio Alcântara, foi aprovado em dezembro de 1997. Por meio dessa nova lei, a União foi autorizada a financiar metade dos custos de programas municipais de renda mínima vinculados à educação. Aos municípios, cabia financiar a outra metade. Foi assim que nasceu o programa Bolsa-Escola do governo federal.

                   Em 2001, o Bolsa-Escola federal foi reestruturado. Isso porque percebeu-se que os municípios não detinham capacidade financeira para arcar com 50% dos custos do programa, conforme previsto no ordenamento anterior. A nova sistemática legal, instituída pela Lei nº 10.219, de 11 de abril de 2001, deixa a cargo dos municípios a administração dos programas, responsabilizando a União pela totalidade das transferências monetárias para as famílias beneficiárias.

                   As linhas gerais do programa federal são semelhantes às das experiências subnacionais. São beneficiárias as famílias com crianças de seis a quinze anos de idade, com as condições de que essas crianças estejam freqüentando a escola e de que as famílias contem com uma renda per capita de até meio salário mínimo mensal. O valor do benefício pode ser de R$ 15,00, R$ 30,00 ou R$ 45,00, dependendo de a família ter uma, duas, três ou mais crianças sob sua responsabilidade.

                   Os especialistas têm feito avaliações positivas desses programas. Entre os avaliadores, há quem defenda que os programas de renda mínima fortalecem a cidadania, são distributivos, estimulam o controle social das políticas públicas e impulsionam a atividade econômica, podendo, ainda, constituir-se em fonte de informação para a formulação de políticas sociais. Ao evitar o trabalho infantil e aumentar o grau de instrução dos mais pobres, os programas tendem a quebrar o ciclo de transferência da pobreza para gerações futuras. Nessa última característica, reside uma diferença fundamental entre os programas brasileiro e europeu, pois, neste, o eixo central da proposta é o resgate de vínculos com a atividade econômica. 

                   No entanto, a existência de programas de renda mínima convencionais não exauriu o debate. Nos países desenvolvidos, várias críticas e ponderações sobre os programas têm sido feitas. Elas dizem respeito tanto à limitação deles como instrumentos para a erradicação da pobreza quanto ao risco da aceitação dócil da exclusão de trabalhadores desqualificados para o mundo do trabalho. Os críticos enfatizam, ainda, a dependência do beneficiário -- o que gera resistências à busca de alternativas de renda e emprego --, o acesso restrito aos programas de renda mínima e o caráter compensatório deles.

                   Em nosso País, as objeções não se restringem à chamada armadilha do desemprego. Uma ressalva que se faz reside na dificuldade de definir e implementar critérios para o desligamento dos beneficiários no momento oportuno. Outro ponto criticado é a complexidade do monitoramento e da avaliação dos programas brasileiras, a qual, em grande medida, é atribuída à dificuldade de integração das instituições envolvidas.

                   As principais ressalvas, contudo, são relativas à dificuldade de focalização dos beneficiários. Vale dizer, os críticos evidenciam o problema da criação de mecanismos justos para seleção do público-alvo, o que envolve um grande cuidado para evitar o clientelismo e o apadrinhamento político.

                   Não é difícil perceber, a partir do que expusemos, que há diferenças fundamentais entre os programas de garantia de renda mínima tradicionais e o sistema da renda básica proposto pelo Senador Eduardo Suplicy. Na verdade, o sistema da renda básica constitui uma evolução dos programas de renda mínima, o qual trás em seu bojo maior racionalidade e eficiência. Para deixar bem nítidas essas diferenças, apresentaremos as principais características da renda básica ou renda de cidadania, baseando-nos, para tanto, em um texto de Philipe Van Parijs, publicado em 2000, pela revista Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, e na justificação do projeto de lei ora em apreciação.

                   Renda básica, segundo Van Parijs, é “uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus membros individualmente, independentemente de sua situação financeira ou exigência de trabalho”. A definição não abrange benefícios cujo valor é afetado pela situação econômica das pessoas ou benefícios que são administrados sob a forma de créditos, não se restringindo à renda que satisfaça apenas as necessidades básicas ou que substitua as demais transferências.

                   A renda básica é, essencialmente, um benefício monetário. Por isso, ela é paga em dinheiro e não na forma de bens ou serviços. Não se trata de um direito de consumo, a ser exercido dentro de um certo período de tempo, sem possibilidade de acumulação, como acontece em sistemas convencionais. Dessa forma, ela complementa -- e não substitui -- transferências na forma de bens ou serviços. A renda básica, portanto, consiste em poder de compra que deve ser fornecido a intervalos de tempo regulares, que podem ser semanais, mensais, semestrais ou anuais, não se caracterizando com uma indenização básica ou uma doação única.

                   Embora seja paga por uma comunidade política, a renda básica não precisa ser necessária ou unicamente financiada por um Estado-nação. Naturalmente, cabe aos governos custeá-la com recursos públicos, mas nada impede que esses recursos provenham de entidades subnacionais ou supranacionais. Nesse contexto, o ideal é que ela seja financiada mediante a coordenação entre os vários níveis de governo. O financiamento, entretanto, não precisa ser específico e vinculado. Ele pode se dar por meio da tributação do valor adicionado de uma, de algumas ou de todas as atividades produtivas. O benefício pode, ainda, ser incluído nos demais gastos governamentais.

                   O benefício engendrado por Van Parijs é universal no âmbito da comunidade política. Admitido que a renda básica é uma política geral contra a exclusão, ela pode ser paga tanto aos cidadãos quanto aos não-cidadãos, sendo que, para estes, usualmente se estabelece um prazo mínimo de residência como requisito. A filiação à comunidade política não se restringe, pois, aos cidadãos em um sentido jurídico. Também são beneficiárias as crianças, que, mesmo nos programas mais restritivos, são sempre contempladas. A renda básica não é um benefício previdenciário, motivo pelo qual prescinde de contribuição prévia e não se limita aos não-aposentados. Enfim, ela é para todos.

                   Diferentemente de outros sistemas, a renda básica é individual. Ela é paga a cada um dos membros da comunidade e não a unidades familiares. Destinada ao indivíduo, não considera, para fins de diminuição do valor do benefício, variações no custo de vida unitário provocadas pela estrutura familiar. Se as considerasse, a exemplo do que ocorre nos outros programas, seria mais dispendiosa, porque pressuporia a existência de mecanismos de verificação das condições socioeconômicas dos beneficiários. A natureza individualista da renda básica revela-se, também, no fato de que o valor pago é sempre igual, independentemente da família a que pertença o beneficiário.

                   Na renda básica, a qualificação do beneficiário independe de sua situação financeira. Este é o aspecto mais notável da renda de cidadania: beneficiar pobres e ricos, sem levar em consideração os níveis de renda. Os programas de renda mínima existentes operam ex post, com base em uma avaliação prévia da renda do beneficiário. Um sistema de renda básica, ao contrário, opera ex ante, sem qualquer verificação de renda não só daqueles cuja renda ultrapassa o patamar estipulado como daqueles cuja renda é inferior a ele. Em suma, não é levada em consideração a renda do beneficiário.

                   Conquanto paga a todos, a introdução da renda básica não torna os não-pobres mais ricos. A renda básica tem de ser financiada. Quer esse financiamento seja feito com base em um imposto progressivo sobre a renda, quer em um imposto fixo, ou até mesmo em um imposto regressivo sobre o consumo, será válido que os comparativamente mais ricos pagarão tanto pela sua própria renda básica quanto para a maior parte da renda básica dos comparativamente mais pobres.

                   Por mais paradoxal que pareça, no sistema da renda de cidadania, é melhor para os pobres que também se dê aos não-pobres. Pagar a todos não objetiva tornar as coisas melhores para os ricos. Comparada aos programas de garantia de renda mínima tradicionais, a renda básica é melhor para os pobres por, pelo menos, três motivos inter-relacionados. Primeiro, na renda básica, é maior a quantidade de pessoas informadas sobre seus direitos, as quais farão maior uso dos benefícios. Segundo, ela não é humilhante, porque é concedida a todos por uma questão de cidadania. Benefícios reservados apenas aos desvalidos tendem a identificá-los com uma certa incapacidade de prover o seu próprio sustento. Terceiro, a renda básica remove um importante aspecto da armadilha do desemprego, pois o seu pagamento não é interrompido quando o beneficiário consegue um emprego -- o que abre perspectivas reais para que as pessoas procurem aumentar suas rendas.

                   Nesse sentido, a renda básica faz o trabalho valer a pena. Segundo Van Parijs “uma vez que uma pessoa pode manter o valor integral de sua renda básica, quer esteja trabalhando ou não, quer seja rica ou pobre, ela com certeza estará numa situação melhor quando estiver trabalhando do que quando estiver desempregada”. Em outras palavras, as pessoas procurarão trabalho, porque isso representará um incremento de seu bem-estar. E, como ressalta o nobre Senador Eduardo Suplicy na justificação do projeto, quando estiverem procurando emprego, não precisarão se submeter a condições degradantes, humilhantes, subumanas ou próximas da escravidão.

                   Por fim, o pagamento da renda básica não está associado a exigências relativas ao trabalho. Ela não se restringe aos trabalhadores que já se aposentaram, aos que contribuíram para um sistema de seguridade social ou aos que estão desempregados. Ela é paga por um questão de direito, não se restringindo, pois, a grupos específicos de pessoas delimitados com base em critérios ligados ao mercado de trabalho. Ela é, reafirme-se, para todos.

                   Dado o contexto social brasileiro, a renda básica de cidadania proposta pelo eminente Senador Eduardo Suplicy parece-nos uma medida extremamente adequada. Simultaneamente, reunindo as qualidades que foram observadas nos programas de renda mínima tradicionais e respondendo às críticas que foram levantadas em relação a eles, a renda básica de cidadania significará, em última instância, que a sociedade brasileira resolveu que toda pessoa, desde o seu nascimento, passa a ser sócia da Nação, recebendo um modesto rendimento, não como uma caridade, mas como um direito de cidadania.

                   Dois dos principais problemas dos sistemas convencionais são, definitivamente, resolvidos pela universalidade da renda básica de cidadania. Primeiro, não são necessários mecanismos de aferição do cumprimento dos critérios de idade estabelecidos para concessão, pois ela é paga independentemente da idade do beneficiário. Segundo, não são necessários critérios de focalização, porque ela é paga a pobres e não-pobres. A universalidade da renda de cidadania pode ter o efeito de acabar com o clientelismo e o apadrinhamento político, que há muito marcam a história das políticas sociais brasileiras.

                   É importante entender que a renda básica de cidadania é uma reforma radical na sociedade, porque ela transforma a relação existente entre uma pessoa e qualquer empregador em potencial. Tendo uma renda garantida, os beneficiários podem aceitar, ou não, uma oferta de trabalho que eventualmente poderia ser ofensiva, depreciativa, humilhante, ou que poderia colocar as suas vidas em risco, na medida em que, ao aceitá-la, não terão o benefício cortado. Isso permitirá que eles sejam mais valorizados no mercado e que eles se qualifiquem melhor para nele se reposicionarem, o que ajudará, também, a erradicar o trabalho infantil e combater o envolvimento de crianças, jovens e adultos com a prostituição e o narcotráfico.

                   Saberão os empregadores que, em nosso País, as pessoas, incluindo cada familiar daqueles que serão contratados pelas empresas, já têm direito a um rendimento assegurado. O que lhes for pago a mais será por sua contribuição ao valor de produção da empresa. Os trabalhadores terão maior poder de barganha, já que saberão que não precisarão necessariamente aceitar qualquer atividade econômica que lhes seja oferecida, especialmente quando essa lhes parecer humilhante ou representar risco para a sua saúde e vida.

                   Há, ainda, um outro aspecto inovador da renda de cidadania. O seu caráter libertário, que rompe com o assistencialismo praticado no passado, associado ao fato de que a sociedade brasileira torna-se cada vez mais restritiva em termos de acesso ao mercado do trabalho convencional, abre espaço para a valorização de trabalhos de cunho comunitário, os quais, por sua vez, implicam no resgate de valores como a cooperação e a solidariedade, como já vem acontecendo com o tremendo desenvolvimento do chamado terceiro setor.

                   A incondicionalidade da renda básica de cidadania é duplamente positiva. Por um lado, como são prescindíveis sistemas administrativos de controle, o grau de liberdade dos indivíduos é muito maior. O Estado não invadirá a vida das pessoas para saber quanto elas ganham. Por outro lado, como não há restrições quanto ao emprego do benefício, o poder de decisão dos indivíduos é muito maior. Caberá a cada pessoa, norteada pelo seu nível de consciência, decidir como usar seu benefício, pois o Estado nisso não intervirá. A renda de cidadania é um importante passo na direção da plenitude da liberdade individual.

                   Isso não significa, contudo, que as condicionalidades, hoje existentes nos diversos programas, não tenham características positivas. Na esteira dos argumentos expendidos por grandes educadores como Jean Piaget, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Maria Montessori e outros, lembramos que elas constituem um importante instrumento de promoção da liberdade e da conscientização das pessoas, aspectos compatíveis com a incondicionalidade prevista na proposição em análise e/ou aspectos preparatórios para sua implementação.

                   Como a renda básica de cidadania será implantada de forma gradual, a critério do Poder Executivo, não haverá riscos de sobreposição. É de se notar, nesse ponto, que a implantação da renda básica de cidadania está em consonância com a decisão do Governo Federal de unificar, racionalizar e coordenar os principais programas de transferências de renda hoje existentes (o Bolsa-Escola ou Programa de Garantia de Renda Mínima Vinculada à Educação, o Bolsa-Alimentação ou Programa de Garantia de Renda Mínima Vinculada à Saúde, o Bolsa-Renda, o Programa de Erradicação de Trabalho Infantil (PETI), o Cartão Alimentação, relacionado ao programa Fome Zero e o Auxílio-Gás).

                   O desenho de um programa unificado, que envolva uma coordenação de todos os ministérios, é de interesse amplo dentro do governo. Tal programa facilitará o trabalho dos órgãos de segurança, porque a garantia de renda e suas conseqüências sobre o emprego contribuirão sobremodo para a diminuição da violência e da criminalidade. Ajudará, igualmente, o Ministério da Educação a desempenhar a sua missão, pois contribuirá para que todos possam ter a oportunidade de estudar.

                   Ademais, um programa unificado será, ainda, proveitoso para as ações dos órgãos da área econômica. Ele contribuirá para que as condições sobreditas proporcionem ao Brasil a melhor competitividade possível e para que a transferência de renda efetuada seja, também, um estímulo às atividades produtivas, sobretudo as voltadas para a produção de alimentos e de bens de primeira necessidade. É de interesse do Ministério do Trabalho, pois contribuíra para que haja muito mais opções de emprego.

                   Além do mais, a renda básica de cidadania redistribuirá a renda. Ela não torna os não-pobres mais ricos, mas constitui uma importante fonte de renda para os pobres. Na medida em que a renda nacional é, atualmente, distribuída desigualmente, a repartição igualitária dos recursos destinados ao programa poderá gerar importante efeito de diminuição da iniqüidade. Por isso, não será nenhuma surpresa, se, dentro de alguns anos, verificarmos no Brasil resultados distributivos semelhantes aos alcançados pelo estado americano do Alasca com seu programa de renda básica.

                   Com a implantação da renda básica de cidadania, os custos administrativos dos programas sociais tendem a ser menores. Com efeito, esses custos serão diminuídos substancialmente, na medida em que é desnecessária uma burocracia envolvida em ter de se perguntar às pessoas, para propiciar o recebimento de uma renda básica, quanto elas estão ganhando no mercado formal e no mercado informal de trabalho. Aliado a isso, o uso de instrumentos tecnológicos da era da informação, tais como os cartões magnéticos, poderá reduzir ainda mais as despesas com a gestão do programa, porque, como a renda básica será concedida a todos os membros da sociedade, não precisaremos nos preocupar com os custos relativos aos controles administrativos.

                   É provável, ademais, que a abrangência da renda básica seja maior entre os pobres. Se tivermos um sistema simples para explicar que todos têm o direito a receber uma renda básica, independentemente de sua posição ou atributos, condições que, por exemplo, existem nos atuais programas de transferência de renda, muito mais pessoas se prontificarão a receber o benefício.

                   O aspecto mais importante da renda de cidadania diz respeito à dignidade e liberdade das pessoas. Elas se sentirão muito melhor, sabendo que, ao longo de suas vidas, terão o direito a receber uma renda modesta, mas suficiente para atender as suas necessidades básicas, a qual aumentará com o progresso da economia do País nos anos seguintes. Com o novo programa, eliminaremos qualquer estigma ou sentimento de vergonha presentes nos sistemas convencionais, porque as pessoas não terão de dizer que elas ganham apenas uma certa quantia de dinheiro, que nada ganham, e que, por causa dessa situação de penúria econômica, merecem uma renda complementar.

                   Apesar disso tudo, a implantação da renda básica não exime o poder público do esforço de melhorar a qualidade dos serviços públicos prestados na área social, como na educação e na saúde. A universalização do acesso aos serviços públicos não é condição suficiente para tirar as pessoas do estado de privação. O aumento do número de crianças matriculadas na rede formal de ensino no País é um exemplo concreto nesse sentido. É verdade que isso ajudou a melhorar nossos indicadores na área, mas de forma alguma está contribuindo para a formação dos alunos ou para a melhoria de sua qualidade de vida. Desse modo, toda uma política social deve ser pensada para o País e a renda de cidadania pode funcionar como um grande catalisador para isso, ensejando uma reflexão profunda sobre o que já existe e está dando certo e mantendo uma unidade na diversidade, ou seja, respeitando as especificidades locais e/ou regionais identificadas.

                   Pelo exposto, o voto é pela adequação e compatibilidade orçamentária e financeira e, quanto ao mérito, pela aprovação do Projeto de Lei nº 254, de 2003.

                   Sala da Comissão, em de de 2003.

           Deputado PAULO BERNARDO

Relator


Este texto não substitui o publicado no DSF de 02/10/2003 - Página 29818