Discurso durante a 136ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Transcurso dos 30 anos da morte de Josué de Castro.

Autor
Efraim Morais (PFL - Partido da Frente Liberal/PB)
Nome completo: Efraim de Araújo Morais
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Transcurso dos 30 anos da morte de Josué de Castro.
Publicação
Publicação no DSF de 07/10/2003 - Página 30570
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JOSUE DE CASTRO, DIPLOMATA, ELOGIO, VIDA PUBLICA, EMPENHO, COMBATE, FOME.

O SR. EFRAIM MORAIS (PFL - PB. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores: um país que não cultua sua memória está fadado a repetir erros do passado e a perder sua identidade e referências fundamentais. O preâmbulo vem a propósito dos trinta anos da morte de um grande brasileiro, Josué de Castro, cuja contribuição ¾ cultural e humanística ¾ não se circunscreve às fronteiras de nosso país.

Muitos são os que pretendem reclamar herança exclusiva do pensamento deste grande cientista, acadêmico, pensador, diplomata e tribuno. Todavia, a elevada estatura de sua vida pública e de seu pensamento não se permite amesquinhar. Josué de Castro era homem ditoso e de largo espírito. Dizia-se interessado no espetáculo do mundo, e logo tornou esse mundo a sua única fronteira.

Há exatos trinta anos, perdíamos esse bravo filho de sertanejos fugidos da seca.

O nordestino Josué Apolônio de Castro nasceu no dia 5 de setembro de 1907. Ousou desafiar o próprio destino: formou-se médico. 

De professor de Fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife, Josué de Castro passou ao ministério da Geografia Humana e da Antropologia Física. O casamento desses temas com o pendor às causas humanitárias resultou no desenvolvimento de visão crítica, de profundidade social e política imensurável. Fez do tema da fome mais do que mero objeto de estudo acadêmico, bandeira de combate ao que chamava de pacto macabro de perpetuação das injustiças sociais que grassavam àquela época, e que ainda se multiplicam nos dias de hoje.

Sua já comentada sensibilidade às causas humanitárias, particularmente ao fenômeno da fome endêmica, nasceu da sua condição de cidadão nordestino. Dizia não ter sido na Sorbonne que travou conhecimento com o fenômeno da fome, porque ela já se havia relevado espontaneamente aos seus olhos desde a mais tenra idade. Os bairros pobres de Recife, segundo registrou, foram sua verdadeira Sorbonne.

A intensa e inquieta vida acadêmica e pública projetaram Josué de Castro internacionalmente e o fizeram permanecer, por toda a eternidade, no firmamento dos grandes pensadores do século XX.

O reconhecimento de sua obra rendeu-lhe diversas condecorações, como o Prêmio Pandiá Calógeras; o Prêmio José Veríssimo da Academia Brasileira de Letras; o título de Professor Honoris Causa nas Universidades de Santo Domingos e San Marcos; o Prêmio Roosevelt da Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos da América; a Grande Medalha da Cidade de Paris; o Prêmio Internacional da Paz.

Josué de Castro fez história na Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO). De destacado delegado brasileiro em conferência da Organização, tornou-se, pouco depois, membro eleito do Comitê Consultivo Permanente de Nutrição, em 1947, e Presidente do Conselho da FAO, em 1952 e 1956.

Ressentia-se do fato de que a FAO não possuía poderes decisivos para controlar a economia alimentar do mundo, para tornar o comércio agrícola menos vulnerável à especulação, ao protecionismo e ao dumping competitivo.

Lembrava que o nacionalismo agrícola podia ser mais nocivo que qualquer outra forma de protecionismo econômico. Esses assuntos são, ainda em nossos dias, candentes e tristemente atuais. É justamente do protecionismo escamoteado e do dumping competitivo de que se ressentem as exportações brasileiras e dos países em desenvolvimento. São precisamente esses assuntos que travam as pautas de negociação da ALCA e da Organização Mundial do Comércio.

Foi, ainda, Josué de Castro Presidente da Associação Mundial de Luta Contra a Fome, Presidente eleito do Comitê Governamental da Campanha de Luta Contra a Fome das Nações Unidas e Fundador do Centro Internacional para o Desenvolvimento.

Darcy Ribeiro conta, em documentário, que na década de 50 e 60, quando a ONU se reunia para debater ou decidir sobre algum assunto de relevância para o gênero humano, imprescindíveis eram as presenças de três personalidades da época, uma das quais era Josué de Castro.

Sua projeção nas Nações Unidas elevou-o à condição de Embaixador brasileiro na ONU, cargo que desempenhou com grande brilhantismo. Exerceu reconhecida liderança na formação do consenso acerca da necessidade da proscrição de armas nucleares na América Latina e do uso da energia nuclear para fins pacíficos, em total consonância com a consagração, em nosso território, da solução pacífica dos litígios internacionais.

Seus mais de 20 livros escritos e inúmeros artigos sobre a temática da fome são componentes de um pensamento considerado pioneiro, paradigmático e, sobretudo, de atualidade desconcertante. Aponto, tão-somente, as lapidares obras “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”, nas quais Josué de Castro analisa os motivos políticos por detrás da tragédia humana.

Cito aqui palavras suas: “A fome é um fenômeno geograficamente universal (...) Na América Latina sofre-se de toda espécie de fome (...) a fome é a mais generalizada e a mais destrutiva de todas as doenças endêmicas que grassam no continente (...). À fome estão certamente ligados estranhos fenômenos sociais da América Latina, como o banditismo, o messianismo e a instabilidade política”.

Quão atuais são essas palavras! Quanto messianismo e demagogia são praticados em nome do combate à fome! Quanto banditismo dissimulado! Quantas tentativas de se emprestar o invólucro de virtude ao vício!

Para Josué de Castro a fome é, a um só tempo, causa e conseqüência do subdesenvolvimento. O rompimento desse ciclo, segundo ele, dependia do fim da conspiração do silêncio em torno do tema, silêncio que tinha fulcro no temor moral da sociedade do século passado em abordá-lo. Mas não apenas: o rompimento desse ciclo exigia ¾ e ainda exige ¾ o compromisso da sociedade. Compromisso de resultados, não mero compromisso retórico, que unicamente serve para escamotear a inépcia e alimentar a demagogia.

O clamor de Josué de Castro está impresso de forma indelével na consciência dos brasileiros. Os homens famintos do Nordeste e de todo o país, em muito assemelhados aos homens-carangueijo dos mangues, querem humanizar-se total e definitivamente. Não mais pretendem se arrastar para sobreviver. Não mais querem ver suas carnes e seus espíritos corroídos e sua personalidade desestruturada.

Esses homens têm nome. São os Severinos de Maria a que se referiu João Cabral de Melo Neto, conterrâneo de Josué de Castro. São os homens cujo sangue têm “pouca tinta” e que morrem “de fome um pouco por dia”.

Josué de Castro, também ele um severino, rejeitava o determinismo inexorável e derrotista e insistia no resgate do campo. Propôs uma “Geografia da Abundância”. Sua fórmula consistia, entre outras coisas, na revisão da política de tributação da terra, na expansão do crédito agrícola, na diversificação racional das culturas, no aumento da produtividade agrícola e, naturalmente, na reforma agrária.

É preciso, no entanto, estudo aprofundado do pensamento de Josué de Castro para chegar-se a sua essência e não mera leitura transversal.

Josué de Castro atacava tanto o latifúndio improdutivo como o minifúndio improdutivo, porque significavam, ambos, a exploração antieconômica da terra. Cito-o, uma vez mais, tamanha é a sabedoria que exara a cada página de seus livros: “Traduz (...) a reforma agrária uma aspiração de que se realizem, através de um estatuto legal (enfatizo: através de um estatuto legal), as necessárias limitações à exploração da propriedade agrária”.

Queria Josué de Castro uma reforma agrária ordeira, balizada nas leis, e racional.

Não poderia esquecer-me de mencionar outro tema que lhe era caro: a proteção do meio-ambiente. Josué de Castro, enquanto parlamentar, lançou o tema dos transgênicos e da poluição, antecipando-se em décadas a um debate que só agora chega ao conhecimento do público.

Sr. Presidente, neste momento em que o Brasil vem se destacando pela infeliz estatística de decréscimo de seus índices de desenvolvimento humano, esperamos que a memória e as lições de Josué de Castro sirvam não como substrato para exercício de diletantismo intelectual ou para invocações descomprometidas com os resultados.

Josué de Castro era notável por traduzir em atos sua cólera justa. Prestar-lhe homenagem significa reconhecer a coerência que imprimiu ao seu pensamento e à sua vida. E significa sobretudo trazer para este momento de tantos desafios e dificuldades idéias de profunda atualidade e consistência, capazes de orientar o país no bom combate que tem a travar para superar as desigualdades sociais.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 07/10/2003 - Página 30570