Discurso durante a 138ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre o equilíbrio entre defesa social e a defesa pessoal.

Autor
Marco Maciel (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JUDICIARIO. ESTADO DEMOCRATICO.:
  • Considerações sobre o equilíbrio entre defesa social e a defesa pessoal.
Publicação
Publicação no DSF de 09/10/2003 - Página 30829
Assunto
Outros > JUDICIARIO. ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • COMENTARIO, DIFICULDADE, ESTADO DEMOCRATICO, CONCILIAÇÃO, DIREITOS, SOCIEDADE CIVIL, DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS, INFRATOR, FUNDAMENTAÇÃO, PUNIÇÃO, COMBATE, IMPUNIDADE, REFERENCIA, MODELO, DESCENTRALIZAÇÃO, JUSTIÇA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA).
  • ANALISE, EVOLUÇÃO, JUDICIARIO, BRASIL, AMPLIAÇÃO, ESTRUTURAÇÃO, COMPETENCIA, SERVIÇOS JUDICIARIOS, CRIAÇÃO, TRIBUNAIS SUPERIORES.
  • QUESTIONAMENTO, EFICACIA, COMPLEXIDADE, ORGANIZAÇÃO JUDICIARIA, LEGISLAÇÃO PROCESSUAL, BRASIL, PROTEÇÃO, DIREITOS, SOCIEDADE CIVIL, DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS, ABUSO, PODER PUBLICO, INFRATOR, LEGISLAÇÃO PENAL.
  • CRITICA, ISOLAMENTO, DEBATE, ORGANIZAÇÃO JUDICIARIA, CONGRESSO NACIONAL, UNIVERSIDADE, ENTIDADE, DEFESA, AMPLIAÇÃO, DISCUSSÃO, MATERIA, SOCIEDADE.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, tratei, em discurso anterior, da indispensável separação entre segurança nacional e segurança pública. É um debate cuja atualidade exige amplas reflexões.

Trato, hoje, de uma questão igualmente essencial e em evidência em outras democracias: qual o equilíbrio necessário, também indispensável entre a defesa social e a defesa pessoal? Como assegurar os direitos coletivos dos cidadãos, sem violar o direito individual dos transgressores, que são também cidadãos? A questão transcende as formas de organização do Estado e de Governo, para se situar no âmbito da organização da sociedade. Seus fundamentos remontam a uma questão imemorial, a da evolução dos sistemas penais, em que, como ainda hoje, dois interesses se chocam - a defesa individual e a defesa social. Desses choques surgiram três sucessivos sistemas. O primeiro poderíamos chamar de acusatório, predominantemente nas civilizações clássicas em que o individual prevaleceu sobre o social. O segundo é conhecido como inquisitório, predominante na Idade Média e durante o absolutismo, em que o social prevaleceu sobre o pessoal. O terceiro, por fim, seria o que hoje adotamos e pode ser chamado de contraditório, vigente depois da Revolução Francesa, que busca o equilíbrio entre o pessoal e o social.

Em qualquer das alternativas, há dois princípios envolvidos na busca desse equilíbrio, imprescindível à coesão e à estabilidade social. O ideal de uma punição justa para o transgressor das leis é o primeiro. O segundo é que todo o sistema punitivo, qualquer que seja o seu fundamento moral, tem por fim evitar a impunidade, a pior das ameaças para um sistema penal equilibrado, eficiente e válido para todos, sem exceção.

Aqui entram as distinções entre os modelos de organização do Estado, o unitário e o federativo. No primeiro, temos que convir que a unidade legal, a unidade processual e da justiça, a unidade dos sistemas de prevenção, de repressão, de punição e de reabilitação do transgressor tornam mais ágil, mais eficiente e até mais transparente, os instrumentos com que conta o Estado para garantir o justo equilíbrio entre o crime e a punição, entre a delinqüência e a repressão, entre a reparação do dano e a reabilitação.

Os modelos de descentralização da justiça, da diversidade processual, e de variedades dos aparelhos repressivos, punitivos e de reabilitação das federações clássicas como a dos Estados Unidos da América, tendem a interferir na eficiência dos sistemas penais e terminam, mais cedo ou mais tarde, gerando, como no exemplo invocado, a necessidade de uma dupla jurisdição - a tradicional limitada aos Estados e a especial, de natureza federal, para crimes que exigem repressão centralizada e, por sua repercussão, jurisdição nacional. No caso dos Estados Unidos da América, esse sistema teve início quando se tornou necessário materializar restrições da chamada “lei seca” que proibiu a comercialização de bebidas alcoólicas e, mais tarde, quando começou a “federalizar” crimes como seqüestro.

No federalismo brasileiro, o sistema evoluiu, como todos sabemos, em sentido diverso. Desde o início, assegurou-se a pluralidade da justiça e a unidade processual, com a separação de atribuições entre a Justiça Federal e as Estaduais. Salvo no caso do artigo 81 da nossa primeira Constituição Republicana, que trata do recurso ao Supremo Tribunal Federal, em matéria penal, “para reformar ou confirmar a sentença” dos tribunais estaduais, todas as demais decisões “dos juízes ou tribunais dos Estados, nas matérias de sua competência” punham termo aos processos de questões que lhes fossem afetos. Esse mesmo dispositivo admitia duas exceções: os habeas-corpus e as decisões relativas aos espólios de estrangeiros, quando a espécie não estivesse prevista em convenção ou tratado.

Dessa forma, embora tivéssemos maior ou menor grau de eficiência em nosso sistema penal, atribuição dos Estados, não tivemos conflitos e dificuldades que opunham, nos Estados Unidos da América, a tipificação de crimes em alguns estados que não constituam delitos em outros. Também nunca tivemos, em razão da unidade processual, reserva de mercado para o exercício da advocacia, nesta ou naquela unidade da Federação, em função de peculiaridades locais.

Esse sistema permaneceu fundamentalmente o mesmo, durante toda a República Velha. A Reforma Constitucional de 1926 alterou, relativamente ao Judiciário, apenas a redação dos itens 2 e 3 do artigo 59, que tratavam da competência do Supremo Tribunal Federal, sem no entanto tocar na substância. As mudanças iniciais ocorreram com a efêmera Constituição de 1934. A primeira foi a constitucionalização da Justiça Militar, que existia no Brasil desde 1808, com o caráter castrense, regulado, por conseqüência, pela legislação específica, sem qualquer alusão nos textos constitucionais de 1824 e 1891. Em segundo lugar, substituímos o modelo de pluralidade do sistema judicial e de unidade do sistema processual pelo de pluralidade e especialização do sistema judicial e, por conseguinte, de pluralismo processual, o que tornou o Judiciário bem mais complexo do que os demais sistemas, tanto dos países unitários, quanto das federações.

Essa inovação, iniciada em 1934, ampliou-se ainda mais com a Constituição de 1946, que incorporou às Justiças Militar e Eleitoral, a Trabalhista que, à semelhança da Militar, em sua origem, era de natureza administrativa. Em compensação restringiu a Justiça Federal à segunda instância, através do Tribunal Federal de Recursos, dotado de competência limitada para julgar em grau de recursos as causas decididas em primeira instância, em que a União fosse interessada, como autora, ré, assistente ou oponente, exceto as de falências ou quando se tratasse de crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ressalvada a competência das justiças especializadas, isto é, Militar e Eleitoral. A Justiça Federal de primeira instância, contudo, foi recriada pelo Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, e regulamentada pelo Ato Complementar nº 2, de 1º de novembro do mesmo ano.

O texto constitucional em vigor ampliou ainda mais a organização, a estrutura, a competência e os instrumentos do Poder Judiciário. Em primeiro lugar, instituindo os Tribunais Regionais Federais. Em segundo lugar, instalando em todos os Estados pelo menos um Tribunal do Trabalho, antes de caráter regional, e em terceiro lugar, instituindo os tribunais especiais, cíveis e criminais, tanto na Justiça Estadual quanto na Justiça Federal. Em decorrência da aprovação do Código de Defesa do Consumidor, foi criada uma instância administrativa própria para dirimir, pelo processo de conciliação e o estabelecimento de sanções pecuniárias, as relações de consumo. Da mesma forma, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ampliou a jurisdição e a competência das varas da infância e da adolescência, mas manteve sob jurisdição administrativa os estabelecimentos correcionais, hoje um dos mais graves problemas do sistema penal brasileiro.

Um exame da perspectiva histórica da evolução do Judiciário em nosso País mostra uma ampliação da estrutura e da interferência federal no sistema judicial. Em sentido contrário, na medida em que se ampliou a esfera da prestação jurisdicional do Supremo Tribunal Federal, se diminuiu o número de seus integrantes. Na Constituição republicana de 1891 eram 15 ministros, e a partir da Constituição de 1934, passou a 11, número que se mantém até hoje, com a única exceção do período em que contou com 16 membros, em decorrência do Ato Institucional nº 2, já referido, para cumprir desígnio meramente político.

Hoje possuímos um dos mais complexos sistemas judiciais existentes em todo o mundo. Caberia aqui uma referência à nova concepção dada pelo texto constitucional em vigor ao Ministério Público, efetivamente um poder autônomo como os demais. Em muitos sentidos, essa configuração restaura o modelo da Carta Imperial de 1824, com a única diferença de que o seu titular é distinto, enquanto na Constituição do Império, tanto o Executivo quanto o Moderador estavam investidos numa só autoridade. Exatamente por isso, deixo esse tema e o exame de suas conseqüências para outra oportunidade.

Minha indagação principal, depois dessa sumaríssima e incompleta síntese, é a de sabermos se estamos satisfeitos com o sistema judicial e processual que temos. Se a Justiça de que dispomos garante ao mesmo tempo os direitos individuais e coletivos dos cidadãos contra os abusos do poder público em todas as suas esferas, e contra os que perpetuam atentados, violando o sistema penal e as liberdades fundamentais do cidadão, de caráter universal, tal como definiu Roosevelt, quando se referiu à liberdade contra o medo e o direito a ela inerentes, o da vida e o da incolumidade.

Essa pergunta dispensa resposta. Sabemos que a complexidade da organização coletiva nas sociedades de massa transformou o próprio conceito de democracia, adotando-o generalizadamente aquele criado por Robert Dahl, o de poliarquia, mais adequado para exprimir os vários centros de poder que atuam nos regimes democráticos e, mais intensamente ainda, se eles se organizam sob a forma federativa. É preciso lembrar a advertência desse grande humanista mais que economista que é John Kenneth Galbraith, quando chamou a atenção para o poder paralelo ao do Estado, exercido pelas corporações e organizações da iniciativa privada num sistema capitalista de livre mercado.

Seu alerta, dado no final da década de 60, no livro “O novo estado industrial”, uma das suas principais obras, não só não perdeu o sentido, como se tornou premonitório, com o fenômeno da globalização, da era da informação, da internacionalização de delitos como o tráfico e o consumo de produtos que geram dependência química e psíquica e, mais recentemente, o terrorismo que não respeita fronteiras, conveniências e ideologias.

            Há práticas socialmente permitidas cujo grau de periculosidade potencial é visível e evidente. Refiro-me às que exploram a ingenuidade, a boa-fé, a credulidade, a ignorância e a ambição das pessoas por melhores condições de vida através de jogos de azar e outras que têm o mesmo potencial de gerar desagregação social.

            Tudo isso justifica repensarmos o Estado, suas formas de organização, a adequação dos sistemas políticos, das práticas econômicas e das formas de organização social que nós mesmos criamos, instituímos e mantemos, por ação ou omissão, e pela crença naquilo que Alberto Torres chamou de “o fetiche da lei”. O ordenamento jurídico do País tem sido encarado entre nós como um fim, quando na realidade não deveria passar de um meio para atingirmos os mais nobres propósitos a que pode aspirar qualquer civilização.

            Sistemas políticos, sistemas econômicos e sistemas jurídicos como qualquer recurso civilizatório e de progresso necessitam de constante, permanente e adequado “aggiornamento”, de exame, discussão e debate que não podem se cingir aos ambientes fechados das instituições, como o Congresso Nacional, a Universidade, os cenáculos de contemplação. Ultrapassamos um grau perigoso de propostas fechadas, de unanimidades indesejáveis e de projetos salvacionistas. Daí a insistência com que me apego ao tema que, podendo parecer monocórdico, na realidade pede reflexão profunda e, não cabendo nos limites de um só pronunciamento, tem se multiplicado até mesmo contra o meu desejo. 

            Agradeço a generosidade com que me ouvem, pedindo desculpas por tomar o tempo de V. Exªs. com matéria que sei de interesse muito restrito, mas que sempre me preocupou e continua a ocupar-me por estar convencido de suas muitas e complexas implicações.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/10/2003 - Página 30829