Discurso durante a 139ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcurso dos 30 anos da morte de Ernesto Che Guevara.

Autor
Serys Slhessarenko (PT - Partido dos Trabalhadores/MT)
Nome completo: Serys Marly Slhessarenko
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Transcurso dos 30 anos da morte de Ernesto Che Guevara.
Publicação
Publicação no DSF de 10/10/2003 - Página 31061
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, ERNESTO CHE GUEVARA, LIDER, SOCIALISMO, MUNDO, AMERICA LATINA, ESPECIFICAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, CUBA, LEITURA, ESTUDO, BIOGRAFIA, LUTA, REVOLUÇÃO, GUERRILHA, COMBATE, MISERIA, EXPLORAÇÃO, HOMEM, CAPITALISMO.

A SRª SERYS SLHESSARENKO (Bloco/PT - MT. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, oito de outubro é uma data de reverência para todos os progressistas do mundo, para todos aqueles que sustentam sua vida na esperança de que este pode ser um mundo em que a convivência entre os humanos se faça sem a presença de explorados nem de exploradores.

Oito de outubro é a data em que se relembra, pelo mundo afora, o martírio de Ernesto Che Guevara, o mais emblemático militante de toda a história da utopia socialista, em nosso mundo moderno.

Não podemos, Sr. Presidente, ficar indiferentes à passagem desta data. Razão pela qual, fazemos questão de ocupar esta tribuna e recordar os fatos tão marcantes da história deste personagem, deste herói da América Latina, deste herói da causa do socialismo, a partir de um criterioso apanhado feito pelo professor Voltaire Schilling, um dos grandes estudiosos da História em nosso país, responsável por um brilhante espaço dedicado à história no site do Terra Educação.

O que vamos ler, a seguir, é um resumo do que tão bem escreveu o professor Voltaire. É um estudo que merece, mesmo, ser aqui reproduzido e ter a nossa mais atenta atenção.

Vejam, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, que parte do fascínio que Ernesto Guevara, o Che, exerceu sobre sua geração deve-se ao fato de ele pertencer à elite argentina.

Ao contrário de outras celebridades populares latino-americanas envolvidas com a política, como Emiliano Zapata, César Sandino ou Eva Perón, o Che descendia da oligarquia.

Os Guevara Lynch e os la Serna, seus pais, tinham vínculos com a aristocracia rural. Não eram ricos, mas tinham “berço”.

Isso tornou Guevara ainda mais atraente porque sua rebeldia não pode ser atribuída ao ressentimento social ou a algum complexo de inferioridade de quem desejava sublimar pela revolução. Essa rebeldia nasceu da indignação com a miséria latino-americana ; era de origem eminentemente moral e intelectual.

Ernesto Che Guevara foi um homem que tinha tudo para realizar-se numa vida normal: posição social, relações com a alta sociedade, uma profissão respeitada, e a possibilidade de viver magnificamente em Buenos Aires, a mais culta e rica cidade da América do Sul.

Pois abandonou tudo para tornar-se um peregrino da revolução, emprestando seu nome e sua liderança às causas que considerava justas. Andou por montanhas e selvas, na América do Sul e Central, no Caribe e na África, passou por incontáveis privações e todo tipo de males e doenças decorrentes da guerra de guerrilhas, sempre perseguido por ataques terríveis de asma.

De certa forma, seu grande inspirador foi Martín Fierro, um gaúcho, personagem de ficção de José Hernández (obra publicada em 1872), que passou a sua vida de gaudério envolvido em pelejas e incontáveis lutas.

“El gaucho Martín Fierro”, era um dos seus livros favoritos. A Guevara, como a Fierro, causava repulsa o fato de que “Está na lei, o de cima se faz o que lhe aproveite (...) Ao pobre, mal se descuide, o levantam de um sogaço..” Em várias ocasiões, Che usou o codinome de Martín Fierro, como que para anunciar-se como uma versão atualizada do andarilho brigão dos pampas.

Nascido em Rosário, cidade do interior da Argentina, em 15 de junho de 1928, Ernesto Guevara cursou o ginásio em Córdoba, mudando-se depois para Buenos Aires onde, em 1953, concluiu a Faculdade de Medicina.

Provavelmente, em razão do seu mal especializou-se em medicina alérgica sem no entanto exercê-la. Recém-graduado saiu com um amigo a viajar pela América do Sul, amparado no lema “pouca bagagem, pernas fortes e estômago de faquir.” Foi à Bolívia, Peru, e ao Equador. E, anteriormente, visitara o Chile e a Venezuela. Essa bela fase da vida do Che poderá ser vista brevemente, retratada nas telas de todo o mundo, no mais novo filme que o nosso premiado cineasta Walter Salles Jr. Acaba de concluir.

Data dessa época o hábito de escrever um diário e, simultaneamente, manter uma intensa correspondência com sua mãe Célia, a quem confessou sua “nova posição de aventureiro 100%”. Visitou leprosários e chegou a andar de balsa na Amazônia peruana. Consta que imaginou ir à ilha da Páscoa. Até essa época não manifestara uma inclinação maior pela política.

Estando no Equador, Guevara sentiu-se atraído pelo governo do presidente Jacobo Arbens, um general nacionalista guatemalteco que estava disposto a desafiar a grande empresa norte-americana a United Fruits Co., dona da maioria das terras produtivas da América Central e Caribe e principal produtora e exportadora de frutas de toda a região.

Essa corporação, apelidada de “el pulpo”, associava-se aos ditadores locais, formando aquilo que o poeta Pablo Neruda denunciou como o “o reino tirânico das moscas.”

Mas Arbenz era uma exceção e resolveu retirar-lhe uma séria de vantagens, ameaçando-a com uma reforma agrária.

Foi o que bastou para ser apontado pelos americanos como um “simpatizante do comunismo” ou que se deixava manipular por eles. Em pouco tempo, a Guatemala foi diplomaticamente isolada e a CIA instrumentalizou um golpe, o primeiro deles, que, depois, seria aplicado, com poucas alterações, nas outras deposições que ela organizou no Continente.

Guevara, enquanto isso, tratou de prestar serviços médicos, mas terminou rejeitado por motivos corporativos. Foi na cidade da Guatemala que conheceu Hilda Gadea, que se tornou sua primeira esposa. Freqüentando uma biblioteca de um partido de esquerda ele ampliou seus conhecimentos sobre o marxismo, lendo Marx e Lênin.

No dia 18 de junho, apoiado por aviões da CIA, o Cel. Castillo Armas e mais 400 combatentes, invadiram o país.

Mas tarde, Guevara registrou numa carta: “a América será o palco das minhas aventuras e com uma feição muito mais importante do que eu imaginara.” Ele percebia que a invasão da Guatemala pertencia a um cenário mais amplo de confronto mundial entre os Estados Unidos e os comunistas. Pouco tempo depois, decepcionado com o que vira e passara no pequeno país, rumou para o México.

Ao fazer plantão voluntário num hospital mexicano voltou a encontrar um cubano, amigo seu dos tempos da Guatemala. Nos dias seguintes foi apresentado a um grupo de exilados cubanos, militantes do “Movimento 26 de julho”, ou M-26, que haviam buscado abrigo no México.

Essa denominação decorria da data - 26 de julho de 1953 - em que Fidel Castro, um jovem advogado, combatente da ditadura Batista, instalada em Cuba, em 1952, resolveu atacar um quartel militar na Província do Oriente.O quartel de Moncada. O ataque foi desastroso para os rebeldes. A maioria deles foi capturada e fuzilada. Fidel Castro teve sorte, rendido vivo foi levado para a prisão da Ilha de los Pinos.

Para muitos cubanos, Guevara foi visto como um herói, enfrentando a ditadura de peito aberto. Cedendo à pressões, Batista permitiu que Fidel Castro fosse solto e deixasse o país. Ele partiu então para o México onde começou a organizar um grupo de exilados para voltar a ilha e derrubar, por meio de uma “guerra revolucionária”, o ditador.

Inspirava-se no mesmo modelo do herói nacional cubano, o poeta José Martí, que, em 1895, deu início à guerra de Independência de Cuba contra a Espanha. Como os expedicionários precisavam de um médico, apresentaram Guevara a Fidel Castro que o convidou a engajar-se na aventura. Ele participou e comandou os exercícios militares preliminares de treinamento.

Foi em seu convívio com os cubanos que passou a ser apelidado de “Che” pelo hábito, tipicamente platino, de recorrer a essa expressão.

A Cuba dos anos cinqüenta era uma semicolônia norte-americana. Sua luta pela Independência, iniciada em 1895, provocara a intervenção dos ianques que derrotaram a Espanha, na guerra de 1898, fazendo com que a ilha se tornasse um prolongamento dos seus interesses no Caribe.

A agricultura era quase que exclusivamente dedicada ao açúcar, que representava 50% da safra e 80% das exportações. Um em cada cinco cubanos dependia da cana-de-açúcar. Quase todas as usinas eram americanas e os Estados Unidos absorviam a metade da sua produção.

Quando Fidel Castro se insurgiu, ele reivindicava o retorno à constituição democrática de 1940 que havia sido aviltada pelo golpe militar de Batista. Não cogitava nenhum tipo de revolução social, muito menos converter a ilha num regime comunista.

O Granma, ao se aproximar do litoral cubano, em 2 de dezembro de 1956, encalhou. Os insurgentes perderam grande parte do material. O pior, porém, ainda estava por vir. Dias depois foram pegos numa emboscada pelo exército do ditador em Alegria del Pio. Quase foram dizimados. Menos de vinte homens sobreviveram para chegar ao alto da Sierra Maestra para juntar-se a Fidel Castro e dar início ao combate.

Foi nessa ocasião que Guevara, agora chamado definitivamente de Che, deixou de ser médico para tornar-se guerrilheiro. Em pouco tempo mostrou-se extremamente capaz de comandar homens e, apesar de ser estrangeiro, ganhou a admiração e respeito dos cubanos. Fidel Castro conseguiu não só sustentar-se no alto da Sierra como articular-se politicamente com a maioria das forças oposicionistas contra Batista.

Até a simpatia da opinião pública americana ele atraiu ao mostrar-se um jovem idealista lutando contra uma ditadura corrupta latino-americana. Depois do fracasso de várias tentativas de liquidá-lo, feitas pelo exército e pela aviação de Batista, feitas em 1957-8, Fidel deu ordem a que duas colunas de guerrilheiros se lançassem na ofensiva.

Uma era liderada por Camilo Cienfuegos e a outra por Che Guevara. O acontecimento mais espetacular se deu quando Che Guevara tomou Santa Clara, a penúltima cidade antes de chegar-se à capital. Ao saber da queda da capital provincial, Batista fugiu de Cuba no dia 1º de janeiro de 1959. Uma semana depois, após uma marcha triunfal, Fidel Castro entrou em Havana.

Aparentemente um milagre ocorrera. Um pequeno grupo de gente decidida havia derrotado um exército apoiado por Washington.

O comprometimento de Fidel Castro em favorecer os camponeses que aderiram à Revolução fez com que ele se lançasse na Reforma Agrária, que se tornou dali em diante a fonte dos atritos com os proprietários de terra e com as empresas norte-americanas, naturalmente, com as classes médias que começaram a exilar-se em Miami.

A primeira Lei da Reforma Agrária foi promulgada em maio de 1959, seguida de uma série de outras que culminaram em 1964, expropriando as grandes fazendas e usinas.

Em represália, os americanos cortaram o fornecimento de petróleo para a ilha de Cuba. Fidel Castro reagiu importando-o da URSS. As refinarias americanas negaram-se a refiná-lo. Fidel Castro expropriou-as. Em pouco tempo a guerra econômica transformou-se numa guerra de fato. O governo americano decidiu depor Fidel Castro. No dia 15 de abril de 1961, cubanos exilados, treinados pela CIA, desembarcaram na Praia Girón, vindos da Nicarágua. Foi um fracasso. Fidel Castro conseguiu cercá-los, levando 1.180 invasores à rendição. Che Guevara, que tornara-se comandante da fortaleza La Cabaña, onde seguramente mais de 500 seguidores da ditadura de Batista haviam sido fuzilados, não tomou parte diretamente nos acontecimentos da Praia Girón. Um ano antes, em 1960, ele aprontara um pequeno livro que iria ter largas e desastrosas conseqüências políticas na vida futura latino-americana: A Guerra de Guerrilhas (La guerra de guerrillas).

            Baseado na experiência cubana, afirmava que um grupo decidido, representando “as forças populares”, poderia vencer um exército convencional. Não seria necessário esperar que ocorressem “as condições gerais objetivas” para isso. Se uma vanguarda armada se instalasse na zona rural e recebesse apoio dos camponeses, ela seria a faísca que incendiaria o país.

Era uma espécie de maoísmo adaptado à América Latina. Guevara caiu numa ilusão voluntarista na qual o exemplo cubano, que, na verdade revelou-se uma exceção, poderia ser aplicado universalmente, pelo menos entre as nações do Terceiro Mundo. Tinha certeza de que o que ocorrera em Cuba era o surgimento de uma vanguarda que iluminava o caminho da revolução para todo o resto.

Para ele “a revolução pode ser feita, no momento certo, em qualquer lugar do mundo.... Até em Córdoba pode-se fazer uma guerrilha”. Dessa forma lançou a chamada teoria do foco revolucionário, ou foquismo, que posteriormente foi desenvolvida, com maior acabamento teórico, num livro de Régis Debray A Revolução na revolução (La révolution dans la révolution), de 1967.

            Che foi nomeado presidente do Banco Nacional de Cuba e depois Ministro da Indústria. Sua mentalidade econômica, inspirada no modelo soviético da época de Stalin, era extremamente centralizadora, concretizada no seu Sistema Orçamentário, onde as atividades das empresas estatais seriam regidas por um controle único.

Isso tornou-se fonte de divergências com Raul Castro e outros técnicos soviéticos que começaram a chegar a Cuba, e que defendiam um sistema de maior independência empresarial, conjugada com estímulos materiais. Técnicos esses que cada vez tinham maior ascendência conforme a ilha se atritava com os E.U.A. Che imaginava possível escapar, com auxilio dos países do Bloco Socialista, da “maldição do açúcar”. De poder tornar Cuba industrialmente auto-suficiente. O que se revelou impraticável.

Em 1964 os cubanos assinaram um tratado com os soviéticos, atrelando a ilha de volta à produção de cana. Outro ponto de atrito foi a questão dos estímulos materiais. Che, como quase todo idealista, acreditava que as pessoas deveriam trabalhar apenas motivadas por estímulos morais.

A dedicação à causa, o amor ao coletivo e o espírito de solidariedade seriam os combustíveis básicos da nova sociedade. Expressou esse sentimento num ensaio chamado O socialismo e o homem novo em Cuba (El socialismo y el hombre nuevo en Cuba), publicado em 1965, onde defendia que o processo de transição para o socialismo deveria ser acompanho por uma mudança psicológica e moral: o surgimento de um homem novo desprendido do interesse material. Para tanto “a sociedade em seu conjunto deveria converter-se numa grande escola”.

Che decepcionou-se com os soviéticos em duas ocasiões. A primeira foi durante a gravíssima crise dos mísseis, de outubro de 1962, quando Krushev, o Primeiro Ministro da URSS, evitando um enfrentamento direto com o governo Kennedy, que poderia redundar numa guerra nuclear.

Sem consultar Fidel, o líder soviético aceitou retirar os mísseis que ele instalara secretamente em Cuba, a pretexto de defendê-la contra uma eventual ataque americano. E, a outra, quando discursou em Argel, em 1965, criticando o Bloco Socialista, liderado pelos soviéticos, de impor regras comerciais que não se diferenciavam dos países capitalistas. Além disso, o rumo interno cada vez mais liberalizante da sociedade soviética que se somava à política da “coexistência pacífica” com o capitalismo, proposta por Krushev, soava aos ouvidos de Guevara, como aos chineses de Mao Tse-tung, como o abandono da causa da revolução.

Ora, à medida que Cuba, cada vez mais, dependia para a sua subsistência das suas relações com a URSS, a posição de Che Guevara ficou insustentável.

Nos anos 60, Che tornou-se o símbolo vivo e itinerante da Revolução Cubana. Sua barba, seu uniforme e a boina, tornaram-no a materialização da insurreição. Conheceu os grandes personagens da política mundial da sua época: Krushev, Mao-Tse-tung, Tito, Nasser, Ben Bella, sendo inclusive condecorado pelo Presidente Jânio Quadros.

A vida estável, familiar, rotineira - Che casara a segunda vez com uma cubana, Aleida, com quem teve quatro filhos - não condizia com seu temperamento. O pó da pólvora havia entrado em seu sangue.

Como havia uma rebelião ainda não completamente sufocada no Congo (atual Zaire), ele concebeu um plano de “enfrentar o imperialismo em outro fronte”. Tratava-se, como ele escreveu para a revista Tricontinental, em 1965, de “criar dois, três Vietnãs”, afim de fazer com que os EUA dispersasse suas forças. O líder nacionalista do Congo, Patrice Lumumba, fora assassinado em 1961, durante a tentativa de secessão da rica província de Katanga.

O poder então caiu em mãos de Kasavubu e de Tshombé, que mantinham o país num situação neocolonial, onde as empresas mineradoras belgas e americanas continuavam dominantes. No Congo oriental, um agrupamento nacionalista, dirigido por Laurent Kabila, ainda esboçava uma resistência. Che resolveu aderir na esperança de poder reverter o quadro.

Foi seu “delírio africano”. Com um grupo de 100 cubanos “internacionalistas”, Che, com o codinome Tatu (do swahili), chegou à região em abril de 1965. Foi uma decepção. Os líderes africanos quase nunca vinham ao fronte, o despreparo das forças era total.

Não havia a mínima disciplina, e os congoleses, além de acreditarem no dawa (corpo-fechado) e na magia dos feiticeiros, não queriam nem transportar os equipamentos e alimentos. Os próprios cubanos começaram a pôr dúvidas no sentido daquela operação militar.

Afinal era uma guerra africana, cujas regras eles pouco entendiam. Além disso, o governo de Kasavubo havia contratado as eficientes tropas mercenárias de Mike Hoare que, em geral, punham os congoleses a correr.

Em novembro de 1965, Che, mesmo a contragosto, teve que concordar em abandonar a missão. Atravessou o Lago Tanganica de volta à Tanzânia, desanimado e abatido pelo fracasso. Um mês antes, Fidel Castro, para afastar os boatos de desentendimento entre ele e Che, obrigou-se a ler publicamente uma carta de despedida do amigo, onde ele renunciava a todos os postos e cargos que ocupara no governo cubano, como abdicava da própria nacionalidade cubana.

Em segredo, escondeu-se na embaixada cubana em Dar es Salam, na Tanzânia, recuperando-se das várias doenças que adquirira na selva africana e cogitando qual seria o próximo passo a dar.

Em novembro de 1966, o economista uruguaio Adolfo Mena Gonzáles, registrou-se num hotel em La Paz, capital da Bolívia. Era Che disfarçado. Segundo o chefe do PC boliviano Mário Monje, a função deles, dos comunistas bolivianos, seria apenas servir de trampolim para que Guevara pudesse alcançar a Argentina.

Um seguidor de Che, o jornalista Jorge Masetti, já havia tentado, em 1963, sem sucesso, instalar um foco em Salta, na Argentina. Praticamente todos foram mortos ou desapareceram. Mas Che não perdia a esperança de que sua presença catalisaria as energias revolucionárias, o que, por si só, poderia fazer eclodir a revolução.

Foi olhando para a Argentina que Monje comprou uma propriedade ao sul, em Ñacahuazú, mais próxima da fronteira de Salta do que de La Paz. Lá o grupo de Che Guevara se instalou. Comunicaram então a Monje que o objetivo primeiro era dar início a uma guerra na Bolívia e, depois, dependendo da evolução dos acontecimentos, expandi-la para outros países vizinhos.

Monje então exigiu que a chefia do movimento fosse entregue a um boliviano. Che Guevara rejeitou. Para um “internacionalista” como ele, um revolucionário itinerante, essas questões nacionais tinham menor significado. Erro de avaliação que ele pagou com a própria vida.

Não demorou para que problemas de toda a ordem acometessem o grupo de guerrilheiros. Os contatos com Havana tornaram-se raros, as confusões com os bolivianos só aumentaram e o pior é que não havia adesão nenhuma da população local.

Eram recebidos, quando adentravam nas aldeias e vilas, por olhares pétreos ou assustados. E, ao invés de angariar simpatia, eram vistos como intrusos que trariam problemas para as comunidades. Os chefes políticos, os corregidores, não demoravam em relatar às autoridades militares o roteiro da guerrilha, apontada como invasora apátrida. E, assim, Che Guevara, exausto e adoentado, marchou, nos primeiros dias de outubro de 1967, definitivamente para o cerco e para a morte. No remoto vilarejo de La Higuera, só, terminou seus dias de peregrino da revolução.

Desde que dois bolivianos, integrantes da guerrilha comandada por Che Guevara instalada na região do Ñacahuazú, a uns 250 quilômetros ao sul de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, desertaram, os militares tiveram quase certeza que aquele a quem denominavam “Ramón”, era de fato o Che. Há dois anos, desde sua carta de despedida, lida publicamente por Fidel Castro, em outubro de 1965, que ninguém, a não ser o alto comando cubano, sabia do seu paradeiro.

Em pouco tempo, assessores militares norte-americanos desembarcaram em La Paz, capital da Bolívia, para instruir o mais rápido possível um batalhão de Rangers, adestrados na contra-insurgência, capazes de sair à caça dos guerrilheiros. As certezas da CIA e das autoridades bolivianas da presença de Che aumentaram ainda mais quando capturaram, em Muyupampa, um vilarejo no sul do país, no dia 20 de abril de 1967, o intelectual francês Regis Debray, um agente de ligação de Fidel com Che, e o argentino Ciro Bustos. Tornou-se evidente que a presença dos dois estrangeiros se devia a razões de um plano mais vasto de operações militares. Debray, depois de torturado, confessou que “Ramón” era mesmo o Che.

Entrementes, Che havia dividido seus homens - formado, em sua maioria, por cubanos, alguns bolivianos, um par de peruanos e uma mulher, Tânia, uma teuto-argentina que integrara-se na luta - em duas colunas, a de Joaquim e a dele. O grupo de Joaquim foi exterminado em Vado del Yeso, quando tentava atravessar os rios Acero e Oro. O de Guevara, reduzido a 17 homens, foi cercado, no 11º mês de manobras, num canyon em La Higuera, pelas tropas do capitão Gary Prado, no dia 8 de outubro de 1967.

Depois de intenso tiroteio, com sua arma avariada e com a perna trespassada por uma bala, Che Guevara rendeu-se. Sua aparência era assustadora, parecia um mendigo, magro, sujo e esfarrapado. Levaram-no para um casebre em La Higuera que servia como escola rural. Lá, na tétrica companhia dos cadáveres de dois jovens guerrilheiros cubanos, ele passou sua última noite. Foi interrogado pelo ten-cel. Andrés Selich ao qual apenas confessou ter sido derrotado, lamentando que nenhum camponês boliviano tenha aderido aos seus propósitos.

No dia seguinte, 9 de outubro, por rádio, veio a ordem de La Paz para que o executassem. O agente cubano-americano da CIA, Félix Rodrigues, desejava levar Che como prisioneiro para o Panamá para interrogá-lo, mas o Gen. René Barrientos, presidente da Bolívia, fora muito claro.

Coube ao sargento Mário Terán, disparar-lhe uma rajada de balas quando Che ainda estava deitado no chão batido da escola. Morreu aos 39 anos. Removeram-no para Vallegrande onde foi exposto sobre umas pias da lavanderia de um pequeno hospital. Lá amputaram-lhe as mãos para conferir com suas digitais existentes na Argentina. Antes, tiram várias fotos.

Surpreendentemente ele, ferido e estirado, parecia-se com uma daquelas telas do Barroco que retratam o Cristo caído. Seu olhar fixo parecia tranqüilo, como se não fosse surpreendido pelo desastre. Consumava-se assim a sua idéia da morte como martírio. Ele, e mais sete outros, foram enterrados numa cova anônima nas proximidades do pequeno aeroporto de Vallegrande, sob o mais absoluto sigilo. Durante os 28 anos seguintes ninguém manifestou-se a respeito, até que o general reformado Mário Vargas Salinas informou ao jornalista Jon Lee Anderson onde jogaram o cadáver.

Depois de dois anos de escavações, peritos cubanos e argentinos, encontraram finalmente seus ossos. Foram transladados para Cuba, onde foram recebidos por Fidel e Raul Castro com honras de estado. Nesses trinta anos que se passaram, Che Guevara havia deixado a História para adentrar na Mitologia da América Latina.

Ao morrer, há trinta anos, Che Guevara descomprometeu seu nome, com a gradativa desilusão que a Revolução Cubana e o socialismo terminaram por provocar. Apesar da sua teoria do foco revolucionário ter redundado num desastre de gravíssimas proporções para a esquerda latino-americana (O MIR chileno, os Tupamaros uruguaios, o ERP e os Montoneros argentinos, o VAR-Palmares no Brasil, e tantos outros mais, foram dizimados pelas Forças Armadas), Che saiu-se preservado.

Seu retrato foi estampado por todos os lados como um ícone rebelde, do homem-motim, do inconformado, daquele que encarna o anti-sistema, seja ele qual for.

Com o ocaso e a decepção das grandes causas que acometeram os anos 90, sua figura parece um tanto estranha, senão anacrônica, quase a de um quixote moderno: um homem capaz de morrer por idéias, num fim-de-século sem idéias. Che, porém, como tanto outros personagens da história, deve ser entendido sob o prisma da sua época.

Os anos 60 foram revolucionários por excelência: a Revolução Cubana, a Guerra do Vietña, o Movimento Hippie e a revolta dos campi norte-americanos, o Concílio do Vaticano II, a descolonização da África, a Revolta estudantil de Maio de 1968 na França, a Rebelião estudantil na América Latina, a Primavera de Praga, sufocada pelos soviéticos em 1968, o Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, liderado por Martin Luther King, a Revolução Cultural na China de Mao, etc... serviram como pano de fundo para sua atuação.

Essa época, ideologicamente confusa, caótica e multifacetada, revolucionou a política, as ideologias, a religião, as universidades, a música, as leis e os costumes, e ainda estamos longe de entendê-la na sua merecida profundidade. Che, paira, portanto, como um símbolo-síntese daqueles anos turbulentos e inquietantes, e, ao mesmo tempo, como um daqueles mitológicos titãs que perpetuamente se insurgem contra os deuses.

Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, encerramos esta hoje homenagem ao Che, parabenizando o professor Voltaire Schilling pelo seu belo trabalho, que aqui procuramos colocar em destaque, e recordando o ideário que Guevara deixou gravado em um de seus livros:

"O caminho é largo e, em parte, desconhecido; conhecemos nossas limitações. Faremos o homem do século XXI: nós mesmos. Nos forjaremos na ação quotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica."

Fazer o homem do século XXI, companheiros e companheiras, é nos mantermos fiel aos sonhos e á luta de Che para que sejam superados todos os regimes de exploração neste mundo.

Esta é a mensagem que a lembrança de Che Guevara deve fazer vibrar em nossos corações neste 8 de outubro.

A memória de Che Guevara, certamente, viverá para sempre!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/10/2003 - Página 31061