Discurso durante a 141ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcurso do Dia da Criança no último domingo. Reflexão sobre a situação das crianças.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.:
  • Transcurso do Dia da Criança no último domingo. Reflexão sobre a situação das crianças.
Publicação
Publicação no DSF de 15/10/2003 - Página 31398
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, CRIANÇA, OPORTUNIDADE, ANALISE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, INFANCIA, BRASIL, VITIMA, DESIGUALDADE SOCIAL, FOME, MORTALIDADE INFANTIL.

O SR. AMIR LANDO (PMDB - RO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, neste último fim de semana, o País comemorou mais um Dia da Criança. Parabéns para todos nós. Afinal, pelo menos como lenda ou ditado, permanece sempre uma criança dentro de cada um. É aquela pitada de inocência que tempera a mistura dos tantos ingredientes amargos das receitas do dia-a-dia. O medo do desemprego, a insegurança das ruas e das casas, a guerra, a dor do amigo que parte, para sempre ou para o nada, a fome, a miséria e a exclusão de muitos. A criança que persiste embalada em nossos corações e mentes mantém, em nós, a esperança de mudança, porque, pelas leis naturais, ela inspira o levantar e o caminhar, o crescer e o amadurecer, o ser. É essa criança que, ainda, apesar dos pesares, inspira a nossa consciência coletiva, como se pudéssemos participar, durante toda a vida, de uma cantiga de roda.

O mundo precisa, urgentemente, resgatar esse resquício de criança e reaprender a conjugar os verbos na primeira pessoa do plural, quaisquer que sejam os seus significados; se alegria, dividida; se tristeza, compartilhada. É que a nossa porção adulta tem uma forte tendência individualista, de primeira pessoa do singular. A tecnologia dos computadores nos coloca em contato direto com o mundo, ao mesmo tempo em que nos prende entre quatro paredes, solitários, privados de calor humano.

Cada vez mais, perdemos a visão e a noção do todo, do universo. Tornamo-nos especialistas, com visões verticalizadas. Desde cedo, concorremos por vagas, cada vez mais disputadas. No emprego, no vestibular, no concurso público, na fila do hospital, no banco, no ônibus lotado, na eleição, na maternidade e no jazigo. A concorrência ocupou o lugar da solidariedade. O mundo parece virtual, aquele que desaparece a um simples toque, no controle remoto ou no computador. É fácil, hoje, deletar as mazelas do mundo. A grande questão é que elas desaparecem das telas e se reproduzem na realidade.

Há um mundo real fora das telas do computador. E, para comprová-lo, não há que se buscar o mais longínquo bolsão de pobreza. Ele já perambula sob as nossas janelas, do lado de fora das grades e das cercas elétricas que nos separam. São esses os nossos mundos de hoje: o virtual, aproximado e deletado; o real, distanciado e esquecido. O pior é que, virtual e aproximado, ou real e distanciado, eles são um único; portanto, pela lógica, deletar é sinônimo de esquecer. E, pela gramática, esquecer é sinônimo de omitir.

Não é difícil projetar o mundo do amanhã. Ele terá a fisionomia envelhecida das crianças e dos jovens de hoje. Mas, ele manterá o vigor da porção criança dos meninos de então. Esse mundo, em eterna renovação, é povoado por coletores e semeadores. Coletores das sementes lançadas pelas gerações que se vão. Semeadores para as gerações que se renovam.

As mazelas do mundo de hoje estão a exigir, no seu melhor sentido, sementes modificadas. É que a miséria já atinge mais de l,5 bilhão de crianças, na sua porção infantil, ou na sua porção adulta. Uma, em cada quatro pessoas, padece do martírio da fome. O mundo de hoje está projetando, para o amanhã, o aparecimento de uma verdadeira sub-raça, produto da subnutrição arrasadora de físicos e de intelectos, o que permite, desde já, vislumbrar as mazelas sucessivas do mundo do depois de amanhã e, mesmo, se haverá mundo depois do depois de amanhã.

Ao invés de modificar as sementes, para uma colheita de inclusão, o mundo de hoje prefere uma grande cerca, eletrificada pela tecnologia, e uma maiúscula grade, soldada pela omissão. Ao invés de juntarmos a nossa porção criança, para a colheita do amanhã, preferimos isolar a nossa porção adulta, velha, ultrapassada e ranzinza, para a melhor colheita de hoje, não importa se ela se distribui entre poucos e, se toda consumida, não restarão sementes para o futuro.

O programa de televisão do domingo das crianças chamou a atenção para o fato de que a quase totalidade das cantigas infantis, embora melodiosas, carregam nas tintas do medo. Ousamos chamar de acalanto o “boi da cara preta”, que “pega esse menino, que tem medo de careta”. Ou, o “dorme, nenê, que a cuca vem pegar”. Ou, ainda, mesmo quando se deseja que “meu bem venha cá”, ele não vem, “porque tem medo de apanhar”. Isso, quando não se incute, desde o berço, mesmo que subliminarmente, a violência, como no “atirei o pau no gato”, quando uma tal de “Dona Chica” se admira “do grito (de dor) que o gato deu”, ou o autoritarismo com o soldado que, se não marchar, “vai preso pro quartel”, ou os desencantos do “cravo, (que) brigou com a rosa”, ele, “ferido”, ela, “despedaçada” . As crianças crescem divididas em dois grupos: de um lado, as “pobre, pobre, pobre”. De outro, as “rica, rica, rica”. Não deixa de ser um retrato do mundo “de marré, marré, marré”.

O mundo se dividiu em dois grupos. A tal cantiga “de marré, de si” se consolidou num verdadeiro apartheid social. Há um muro da vergonha entre a porção “rica, rica, rica” e a porção “pobre, pobre, pobre”. De um lado, os 20% mais abastados, com mais de 80% de toda a renda gerada no planeta. De outro, os 20% menos favorecidos, que mal chegam ao primeiro dígito inteiro.

É por tudo isso que o dia da criança não pode deixar de ser comemorado. Caso contrário, nós, crianças do nosso tempo, não perdoaríamos. Mas, é também um dia e um tempo de reflexão. E, de mudança de atitudes. As nossas ações podem não ser suficientes para resolver os problemas do mundo. O nosso exemplo, sim. Há de se começar, portanto, pelos nossos próprios quintais. No Brasil, a metade do que se produz, vai para as mãos de apenas 10% da população, cinqüenta vezes mais do que cabe aos 10% mais pobres. Ou, ainda, nesta virada de século, o 1% mais rico dos brasileiros ganha o mesmo que os 50% que não possuem o necessário à vida. O país tem hoje mais de 53 milhões de pobres.

As crianças do Brasil merecem presente. Mas, muito mais do que isso, elas têm direito ao futuro. Para que o presente seja embalado nos melhores laços, o da solidariedade, o da justiça e o da cidadania, ele precisa estar envolto, necessariamente, numa certidão de nascimento. É que milhões de crianças brasileiras, de todas as idades, não possuem, nem mesmo, o registro civil. Oficialmente, não existem. Outras milhões que morreram, principalmente de causas decorrentes da desnutrição, não tiveram o direito, ao menos, à certidão de óbito. Legalmente, não existiram. Não têm, mais, direito ao presente. Nem ao passado. Tampouco ao futuro.

Dos pouco mais de 3 milhões de novos brasileirinhos de cada ano, que ainda vêm à luz nos hospitais e postos de saúde, algo como 700 mil ganham nome e sobrenome, mas, fora os meses da placenta mal nutrida, terão idade presumida, correta somente se a memória corroída pela fome gravar o aniversário que, raramente, será comemorado. Isso, sem contar outros 370 mil que nascem nas choças, nas ocas, nos casebres, nos barracos, manjedouras dos nossos dias, muito longe da visita de reis, que poderiam, no lugar do ouro, do incenso e da mirra, levar o arroz, o feijão e o pão.

Saudades dos meus tempos de guri. Eu era feliz e sabia. O meu mundo virtual, na minha pequena Piratuba, entre montanhas, no Vale do Rio Uruguai, era acessado através das linhas do trem e pelas ondas do rádio. Eu construía a minha abstração do mundo além daquelas montanhas e sonhava, um dia, ultrapassá-las. Levaria comigo, além do pouco material que aquela dura realidade me impunha, o aprendizado do meu mundo real, construído nas relações de parentesco e de vizinhança. Dos meus pais, o sopro da ética. Dos vizinhos, os ventos da solidariedade. Era, assim, uma sociedade da partilha. Não se tinha muito, mas éramos um povo feliz, porque sabíamos que todos tinham. Eu queria reproduzir e amplificar, além das montanhas, o exemplo de vida real daquela gente. Ali, não havia reis, mas não faltava arroz, nem feijão, nem pão.

Não é esse o mundo que restou para a minha porção adulta. Mas é com esse mundo que ainda sonha a minha porção criança. Um mundo onde a opulência de poucos não signifique a miséria dos outros. Um mundo onde a dor dos outros não seja a contrapartida do júbilo de poucos. Um mundo, enfim, onde os poucos e os outros possam partilhar. Para isso, é preciso inspirar-se na inocência das crianças. Um olhar para fora, para os nossos filhos e os filhos dos outros. Um olhar para dentro, para olhar a nós mesmos.

Era o que eu tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/10/2003 - Página 31398