Discurso durante a 151ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Cobranças de uma política indigenista pela Fundação Nacional do Índio - Funai.

Autor
Mozarildo Cavalcanti (PPS - CIDADANIA/RR)
Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA.:
  • Cobranças de uma política indigenista pela Fundação Nacional do Índio - Funai.
Aparteantes
João Capiberibe, Ramez Tebet.
Publicação
Publicação no DSF de 30/10/2003 - Página 34140
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • COMENTARIO, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, COMUNIDADE INDIGENA, BRASIL, APREENSÃO, INEFICACIA, POLITICA INDIGENISTA, CENTRALIZAÇÃO, DEMARCAÇÃO, RESERVA INDIGENA, TRANSFERENCIA, RESPONSABILIDADE, FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO (FUNAI), DESTINAÇÃO, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG).
  • LEITURA, COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, JORNAL DE BRASILIA, DISTRITO FEDERAL (DF), REFERENCIA, AUTONOMIA, INDIO.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, tenho, reiteradamente, ocupado esta tribuna para abordar um tema que reputo da maior importância para o trato das minorias étnicas, que é a questão dos nossos irmãos indígenas. E o faço por uma razão muito lógica: 80% da população indígena do País está na Amazônia Legal. O meu Estado, Roraima, é o terceiro em população indígena, embora seja o primeiro em tamanho de reservas indígenas...

O SR. PRESIDENTE (Eduardo Siqueira Campos. Fazendo soar a campainha.) - Permita-me interromper o pronunciamento de V. Exª para informar às Srªs e aos Srs. Senadores que o Prodasen está tentando consertar o painel eletrônico e solicita a V. Exªs que não registrem sua presença neste momento, deixando para fazê-lo posteriormente, a fim de que possam proceder aos ajustes.

A Presidência pede desculpas a V. Exª e lhe garante a palavra.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR) - Como disse, Sr. Presidente, o meu Estado tem a terceira maior população indígena do País, embora seja de longe o que tem a maior área de reservas indígenas do País.

Por isso, obviamente, e por conhecer de perto os índios de Roraima, suas diversas etnias, das diversas regiões, preocupa-me a situação do ser humano índio, já que o viés da política indigenista no Brasil tem sido apenas a preocupação com a demarcação de terras indígenas e a criação de reservas. Chegou-se ao ponto de a população indígena brasileira, se comparada com outros países, ter a maior área de reserva, 12% do território, quando representa apenas 0,2% da população do Brasil.

Como vinha dizendo, a minha preocupação é com o homem e com a mulher índio, com o cidadão índio. Tenho louvado a nomeação e a postura do atual Presidente da Funai, que tem dado um enfoque mais abrangente, mais realista à situação, especialmente quando diz que de nada adianta apenas a demarcação das terras indígenas - a propósito, segundo levantamento da Funai, ainda faltam 30% do que se imagina ser o total de áreas indígenas no País para serem demarcadas.

Vemos, assim, que há realmente um trabalho de desmonte da Funai, uma vez que a política indigenista do País hoje está entregue a organizações não-governamentais, por intermédio de organismos do Governo, como a Funasa, que fazem convênios com essas organizações e repassam dinheiro público para que essas ONGs tratem da saúde indígena nas diversas comunidades indígenas do Brasil. Por outro lado, missões religiosas, católicas e evangélicas, também atuam nessas comunidades indígenas.

Queria fazer o registro de um artigo, da lavra do atual Presidente da Funai, Sr. Mércio Pereira Gomes, publicado no Jornal de Brasília com o seguinte título: “Autonomia para povos indígenas”. Espero que o Sr. Mércio seja o último Presidente da Funai não-índio e que o próximo seja um índio.

A questão indígena no Brasil muitas vezes não é muito bem compreendida em razão do conhecimento ainda superficial que a sociedade envolvente tem sobre suas verdadeiras condições de produção econômica. Como vivem os nossos índios na atualidade? O que produzem, como produzem, para que produzem? Essas são as indagações mais freqüentes. Suas culturas se modificaram para enfrentar os desafios do relacionamento com a sociedade brasileira; alguns a ela se adaptaram, sempre com dificuldades, há mais de 200 anos; outros, há pouco mais de 50 anos.

Entre as mudanças verificadas no dia-a-dia dos indígenas estão aquelas de ordem econômica, a que os antropólogos denominam economia de subsistência. Mesmo assim, eles continuam a ser índios, partilhando sentimentos coletivos, socializando-se por uma ideologia de igualitarismo social e com uma visão de mundo própria, em que novas sínteses do passado com o presente são estabelecidas.

Nessa perspectiva, antevejo a necessidade de se buscar a viabilização da auto-sustentabilidade dos índios, ressalvando que a condução desse processo deve contemplar também a preservação do modo de funcionamento de suas respectivas economias tradicionais, ou seja, produzir excedentes sem criar desigualdades nem desarticular o seu sistema de valores e crenças.

Autonomia econômica significa compatibilizar a produção com as demandas de suas culturas. Essas demandas não são mais exclusivamente aquelas ditadas por suas culturas tradicionais, e sim aquelas decorrentes do contato com a sociedade abrangente. Não é precisamente isso o que ocorre com todas as sociedades indígenas, exceto com aquelas fora do relacionamento interétnico? Não produzem os índios do Alto Xingu artesanato para venda? Por acaso, várias etnias não comercializam os direitos de uso de suas imagens para a produção de filmes e até anúncios publicitários? Parte dessas atividades é apropriada individualmente, mas uma boa porção é consumida coletivamente. Hoje, os parcos benefícios da aposentadoria [Aqui desejo abrir um parêntese no artigo do Presidente para dizer que se trata da aposentadoria do Funrural, do INSS] compõem grande parte da renda coletiva de muitos povos indígenas.

Os que trabalham com os índios sabem disso e sabem também que a política indigenista brasileira não está mais sob a responsabilidade exclusiva da Funai. A educação indígena está no MEC; a saúde, com a Funasa; o desenvolvimento etnoecológico, com o Ministério do Meio Ambiente; e a defesa de seus direitos é compartilhada com o Ministério Público. Estados e municípios atuam diretamente junto aos indígenas em vários setores, especialmente na educação, por meio do Fundef, e em relacionamentos clientelistas tradicionais. Muitos povos indígenas são assistidos por igrejas - católicas e evangélicas - e por ONGs, com ou sem auxílio de recursos externos. Em muitos casos, a Funai pouco intervém.

O processo de relacionamento interétnico no Brasil ficou por demais complexo e diversificado. É provável que menos de 30% das funções de uma política indigenista estejam sob a égide da Funai. Cada órgão estatal faz sua própria política indigenista, cada ONG e cada confissão religiosa atuam com seus próprios métodos, com a aceitação parcial ou total dos povos indígenas. Entretanto, quando falha qualquer um desses responsáveis diretos pelos demais 70% das funções indigenistas existentes, o ônus recai, injusta e pesadamente, sobre a Funai.

O Estado brasileiro não quer transformar o índio em não índio; quer que ele seja autônomo cultural e politicamente e que angarie o respeito próprio de sua participação no sentimento da nacionalidade brasileira. Como obter essa autonomia sem também ser autônomo economicamente é uma impossibilidade sociológica e política reconhecida desde os gregos antigos.

O desafio está lançado para o Brasil. É um desafio específico para os antropólogos brasileiros e do mundo inteiro: como compatibilizar uma economia igualitária diante do desafio da modernidade? A política indigenista do Governo Lula encara esse desafio de frente, mesmo sabendo das suas dificuldades, e conclama a todos os de boa vontade a se unirem nesse esforço intelectual e político de grande importância para a continuidade da diversidade étnica e cultural em nosso País.

Sr. Presidente, o artigo do antropólogo Mércio Pereira Gomes, atual Presidente da Funai, realmente demonstra o novo enfoque da política indigenista atual brasileira, um enfoque que leva em conta o índio como ser humano, o índio e seu direito à autonomia econômica e financeira, enfim, um desafio. E, ao apresentar seu diagnóstico, demonstra que hoje a Funai tem apenas 30% de parcela de responsabilidade sobre a política indigenista do Brasil; os outros 70%, segundo o Presidente, estão com o MEC, na educação indígena; com a Funasa, na Ação de Saúde Indígena, terceirizada para as ONGs; e com os governos estaduais e municipais por sua ação direta nessas comunidades.

Assim, trata-se de uma reflexão importante que se deve fazer para realmente adequar a política indigenista do Brasil ao momento em que vivemos e não apenas querer reescrever a história do Brasil, ficando sempre atado ao fato de que nosso País foi invadido e de que os índios sofreram atrocidades.

Temos que cuidar bem de nossos 320 mil índios, dar-lhes dignidade e condição de aumentar sua população - que, aliás, tem aumentado. O Brasil talvez seja um dos poucos países onde a população indígena tem aumentado significativamente.

Por isso, o artigo do Presidente da Funai merece uma reflexão e um debate, porque mostra algo que vem sendo denunciado há muito tempo: a desestruturação da condução da política indigenista no País.

Concedo um aparte ao Senador João Capiberibe, com muito prazer.

O Sr. João Capiberibe (Bloco/PSB - AP) - Senador Mozarildo Cavalcanti, congratulo-me com o discurso de V. Exª, em função do reconhecimento do direito às diferenças. A grande característica da democracia é estabelecermos uma sã convivência com as diferenças. No que diz respeito à questão indígena, houve um avanço considerável depois da Constituinte de 1988, quando a sociedade brasileira garantiu os direitos originários dos povos indígenas e reconheceu sua presença aqui 500 anos depois. Foi exatamente a partir da inscrição desses direitos na Constituição Federal que tivemos o reconhecimento das diferenças e estabelecemos políticas que respeitam essas diferenças, entre elas todas as que V. Exª citou. A nossa região amazônica ainda preserva fortemente as culturas indígenas, e as populações ainda vivem muito próxima à natureza. Desgraçadamente, no resto do País, essas grandes comunidades foram dissolvidas. Calcula-se que antes da presença européia no Brasil, havia entre cinco a sete milhões de ameríndios. Portanto, reconhecer o direito desses povos, estabelecer políticas públicas capaz de atendê-los é uma necessidade do processo democrático, assim como também reconhecer o direito das populações afro-descendentes trazidas para o País e aqui escravizadas. Portanto, quero parabenizá-lo pelo discurso. Creio que estamos conseguindo conjugar os interesses dos que chegaram depois, as populações euro-descendentes, em relação aos povos indígenas. Era isso que queria colocar.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR) - Sou eu que agradeço a V. Exª pelo aparte. V. Exª, por ter sido Governador do Amapá, conhece, pelo outro lado do balcão, a realidade das comunidades indígenas. O que tenho defendido aqui é a tese de que precisamos dar essa dimensão de respeito ao cidadão, ao homem índio, para que ele possa decidir pelos próprios meios, como diz aqui o Presidente da Funai, a forma como cada comunidade vai buscar a sua autonomia econômica e financeira. Senão, estaremos fazendo o trabalho pela metade, pois demarcar terras indígenas, mas deixá-los como estão os ianomâmis, cuja maioria esmagadora das suas crianças está desnutrida, segundo informação da ONG que cuida da saúde desse povo, é um contra-senso. O que se apregoa de um modo geral é que os índios vivem fartamente bem no meio da floresta, porque lá tem de tudo para eles. E se os ianomâmis - que são, talvez, os mais primitivos do Brasil e que vivem lá no meio da floresta do meu Estado de Roraima, do Amazonas e na Venezuela - estão desnutridos, alguma coisa está errada. Se, mesmo com a atuação da Funai e da Funasa, esses índios encontram-se nessa situação, é porque não se está levando em consideração o aspecto humano do cidadão e sim apenas a questão da divulgação na mídia.

Sabemos que há pessoas que estão dando aulas sobre índio, sem nunca ter visto um e sem nunca ter ido a uma aldeia. Ou seja, há muita gente falando em nome do índio, sem ter procuração para tanto. Trago esse debate ao Senado, a fim de que possamos realmente nacionalizar a política indigenista.

O Sr. Ramez Tebet (PMDB - MS) - Permite V. Exª um aparte?

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR) - Ouço, com prazer, o Senador Ramez Tebet. 

O Sr. Ramez Tebet (PMDB - MS) - Senador Mozarildo, V. Exª aborda, com muita serenidade, desta tribuna, uma tema realmente importante para o nosso País: a ausência de uma política que venha realmente resolver o problema dos nossos índios. Segundo V. Exª, eles são aproximadamente trezentos e cinqüenta mil. Digo eu, a maior população indígena do Brasil é a do Estado do Mato Grosso do Sul. Eu sou daqueles que falam, portanto, com algum conhecimento de causa, embora não com o conhecimento de V. Exª, que representa o seu Estado de Roraima. É verdade o que V. Exª fala: que muitos abordam esse assunto sem conhecê-lo, só mesmo para aparecer. Eles fazem disso um motivo de aparição, mas não contribuem em nada para resolver o problema. Não sei como ainda não resolvemos o problema dos índios no Brasil. Não consigo entender. Tivéssemos nós uma política adequada, não haveria os conflitos que verifico em meu Estado. Eu defendo os índios, conheço a situação deles, mas, quando vejo que eles invadem propriedades altamente produtivas, que possuem título de propriedade há mais de cinqüenta anos; que há terras para serem entregues a eles para o cultivo, para o trabalho deles; que uma parte deles até já se aculturaram, estão em universidades, prestaram o vestibular, candidataram-se a cargo eletivo - em alguns Municípios do Estado do Mato Grosso do Sul há índios vereadores -, penso que a política indigenista tem que apreciar todos esses aspectos. Porque, veja bem, já iniciamos um novo século e ainda estamos discutindo os conflitos indígenas no País. Quer dizer, desculpe-me falar, estou nesta Casa há oito anos, atualmente não tenho ido a Funai, mas todas as vezes em que eu fui lá nunca presenciei uma política indigenista, mas sim disputas políticas internas. E isso não ajuda a resolver o problema daqueles que merecem a nossa atenção, que são os índios. Afinal de contas, eles também não querem desrespeitar os proprietários, eles querem ter um abrigo. Acontece que, na ânsia de ter essa morada, na ânsia de ter um lugar ao sol, eles, às vezes, cometem também os seus desatinos, invadindo propriedades onde nunca existiu nenhum deles. Essa é que a verdade. Então, fico satisfeito quando presencio V. Exª clamar com tanta serenidade em prol desse problema, porque, com a visão de V. Exª, com a serenidade com que está tratando esse assunto e, sobretudo, se nos anteciparmos às circunstâncias, poderemos sar solução a esses conflitos. É aí que eu queria chegar, porque só se aborda essa questão quando existe conflito. Quando não existe conflito, esquece-se a questão, ninguém fala mais nisso. Agora, que está havendo um conflito lá em Dourados, em Mato Grosso Sul, a Bancada se reúne aqui, todos nós nos reunimos, vamos lá na Funai, conversamos com o Ministro da Justiça, clamamos por paz, e etc. Desculpe-me, não quero transformar a minha fala num discurso, mas é que o assunto é verdadeiramente apaixonante. Quero cumprimentar V. Exª e dizer o seguinte: vamos nos antecipar para evitar, e há tempo para isso.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR) - Agradeço a V. Exª pelo aparte, Senador Ramez Tebet. Como disse, Mato Grosso do Sul é o Estado que tem a maior população indígena, seguido do Estado do Amazonas e, em terceiro lugar, do meu Estado. Portanto, entendo que devemos, aqui no Senado, buscar, não de maneira ideológica, não sectária, não por facções, efetivamente conduzir esta discussão que o Presidente atual da Funai traz de maneira muito sensata para reflexão. Refiro-me a esses dados, a essas informações de que, por exemplo, apenas 30% do que tange à política indigenista estão sendo tocados pela Funai. Isso merece uma atenção, já que o Poder Executivo criou um grupo de trabalho para reestruturar a Funai e o Ministro da Justiça, ao empossar o atual presidente da Funai, deu-lhe carta branca para renovar e reconstruir a Funai. Acredito que, a partir daí, os índios possam efetivamente falar por si só e não por meio de procuradores sem procuração.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/10/2003 - Página 34140