Discurso durante a 155ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcrição nos anais do Senado do discurso do presidente Lula proferido em sua viagem a Angola.

Autor
Duciomar Costa (PTB - Partido Trabalhista Brasileiro/PA)
Nome completo: Duciomar Gomes da Costa
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA EXTERNA.:
  • Transcrição nos anais do Senado do discurso do presidente Lula proferido em sua viagem a Angola.
Publicação
Publicação no DSF de 05/11/2003 - Página 35261
Assunto
Outros > POLITICA EXTERNA.
Indexação
  • COMENTARIO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, DISCURSO, AUTORIA, LUIZ INACIO LULA DA SILVA, PRESIDENTE DA REPUBLICA, PERIODO, VIAGEM, PAIS ESTRANGEIRO, ANGOLA, DISPOSIÇÃO, GOVERNO BRASILEIRO, BRASIL, CONTRIBUIÇÃO, RECONSTRUÇÃO, PAIS EM DESENVOLVIMENTO.

O SR. DUCIOMAR COSTA (Bloco/PTB - PA. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em viagem a Angola o Excelentíssimo Presidente da República, LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, proferiu discurso o qual gostaria que constasse dos Anais do Senado Federal segundo o artigo 203 do Regimento Interno. Com tal intento transcrevo abaixo, na integra, o discurso.

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DOCUMENTO A QUE SE REFERE O SR. SENADOR DUCIOMAR COSTA EM SEU PRONUNCIAMENTO.

(Inserido nos termos do art. 210 do Regimento Interno.)

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Minhas primeiras palavras são de agradecimento a esta Casa, pelo convite que tanto me emocionou, e ao povo que ela representa, pela acolhida carinhosa com que me distinguiu.

Esta é a primeira vez que venho a Angola. Mas me sinto em casa, dadas as semelhanças de nossas culturas.

Senhor Presidente,

Senhores e Senhoras Parlamentares,

O Atlântico nos une. Suas poderosas correntes tornam mais fácil navegar entre a África e o Brasil.

Durante três séculos e meio, houve mais naus viajando de Luanda ou Benguela ao Rio de Janeiro, Salvador ou Recife do que em qualquer outra rota.

Essas naus, no entanto, carregavam tristeza, violência e medo. O primeiro elo entre meu país e este continente não foi a liberdade, mas a escravidão. Esse fato deixou cicatrizes profundas em nossas sociedades.

Para obter o reconhecimento de sua independência, o Brasil aceitou desfazer todos os vínculos políticos que o ligavam à África portuguesa. Décadas mais tarde, com o fim do tráfico de escravos, desfizeram-se também os laços econômicos.

No século que se seguiu, posso dizer que o Brasil voltou as costas para a África. Não apenas para o continente, mas também para o que há de africano no País.

Somente em décadas mais recentes, quando a África dava seu frito de independência é que o Brasil voltou a despertar para esse continente irmão.

Meu país soube reconhecer os anseios de liberdade e autodeterminação dos povos africanos, sua enorme riqueza humana e seu potencial político e econômico.

Apoiamos a descolonização e o fim do Apartheid. Tornamo-nos importantes parceiros da África nos organismos multilaterais, na luta pelo desenvolvimento e no comércio internacional.

Contudo, manchamos esse capítulo ao mantermos, por tantos anos, o apoio ao indefensável regime salazarista e sua política nas então colônias ultramarinas.

Mas, de todos os episódios que marcaram aquele período, um, em especial, é motivo de profunda alegria e orgulho para todos nós brasileiros: o reconhecimento da independência de Angola.

Talvez seja essa a mais feliz das ironias de nossa história comum: ligados inicialmente pela opressão, distantes um do outro durante um século, reencontramo-nos naquele heróico 11 de novembro de 1975.

Ter sido o primeiro país a reconhecer a independência angolana é, sem dúvida, a mais bela página da diplomacia brasileira em nossas relações com o continente africano.

Gostaria de fazer um reconhecimento público ao nosso representante em Luanda à época, Ovídio de Andrade Melo, que, naqueles tempos de dificuldades e incertezas, de guerra em Angola e ditadura no Brasil, soube aliar com sabedoria os valores e os interesses de ambos os países. O Centro de Estudos, cuja sede provisória inaugurarei amanhã aqui em Luanda, levará seu nome.

Também o nome de Ítazo Zappa, então chefe do Departamento da África no Itamaraty, merece ser lembrado nesse contexto.

Senhores e senhoras,

Ainda hoje sentimos os benefícios da aproximação com a África nos primeiros anos de independência. Mas precisamos avançar mais.

Ao tomar posse como Presidente do Brasil, no início deste ano, determinei fosse dada prioridade ao aprofundamento de nossas relações com o continente africano e, em particular, com os países de expressão portuguesa. Essa firmeza de convicção decorre de moral e de uma necessidade estratégica.

Normalmente, a diplomacia é vista como o exercício de um cálculo racional e frio. Mas, no meu modo de ver a política externa também se faz com o coração. E o coração nos une profundamente à África.

O Brasil é o país com a segunda maior população negra no mundo.

Meu Governo tem plena consciência da obrigação que tem o Brasil de resgatar a dívida histórica e moral para com os grupos sociais que mais sofreram - e sofrem ainda - com a violência, a injustiça e a humilhação. Entre eles, estão os afro-descendentes.

Por isso, pela primeira vez na nossa história, temos uma Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial, com atuação nas mais diversas áreas. Também pela primeira vez, estamos incorporando aos currículos escolares o ensino da história da África e da história e cultura afro-brasileiras.

Estamos, assim, incorporando a África e a cultura afro-brasileira à realidade e à vivencia de milhões de crianças brasileiras para que, desde os bancos escolares, possam conhecer e orgulhar-se destes elementos essenciais da formação de nosso país.

Muitos têm dito que o Brasil precisa encontrar a África para encontrar-se consigo mesmo. Esta é também minha convicção. E, por meio de Angola, estamos encontrando a África.

Esse grande encontro não deve limitar-se aos governos. Deve aproximar as sociedades.

Estou seguro de que, no que depender do Brasil, nada poderá dar mais solidez a nossas relações com a África e Angola, em particular, do que o reconhecimento do legado africano - e angolano - na nossa cultura, no nosso modo de ser.

Mas na minha visão, ter uma parceria privilegiada com Angola é um interesse estratégico do Brasil. O imenso desafio de promover a inclusão social nos aproxima. Podemos compartilhar experiências e desenvolver soluções para problemas comuns.

O combate à fome e à pobreza é tarefa inadiável, que passa pela construção de uma nova aliança mundial contra a exclusão social.

Nossos países e nossos continentes deverão desempenhar papel de protagonistas nesta luta.

Tenho levado aos líderes dos países em desenvolvimento a mensagem de que precisamos melhor coordenar nossa atuação internacional, inclusive nos foros mundiais. Devemos lutar para revigorar o multilateralismo, pois ele é o garantidor último do convívio pacífico entre nações e do respeito e tolerância mútua entre povos.

Não tenho dúvidas de que o comércio internacional tem grande potencial para gerar a riqueza de que nossas nações necessitam para se desenvolver econômica e socialmente.

Mas é inadmissível que os setores em que os países em desenvolvimento são mais competitivos sofram o protecionismo dos países industrializados ou também tenham de enfrentar a concorrência desleal dos subsídios milionários.

É mais do que evidente que o protecionismo agrícola, sob todas as suas formas, causa grande prejuízo a nossos países, dificultando o combate à pobreza rural, a promoção da segurança alimentar e a busca do desenvolvimento sustentável.

A verdadeira incorporação dos países em desenvolvimento à economia global passa, necessariamente, pelo acesso sem discriminação aos mercados dos países ricos.

Mas tenho reiterado, meus senhores e minhas senhoras, que não nos basta cobrar atitudes dos países desenvolvidos.

Os países em desenvolvimento devem assumir novo papel, mais afirmativo e realizador. Os que dispõem de maior capacidade podem, e devem, ter políticas solidárias em favor das nações mais necessitadas, explorando todas as possibilidades de cooperação.

Apesar de nossas dificuldades, no Brasil estamos preparados para oferecer a nossos parceiros africanos - e em especial a Angola - capacitação para formular e executar políticas públicas nas mais diversas áreas, assim como tecnologias compatíveis com suas necessidades específicas.

Estamos também dispostos a ampliar o acesso dos países africanos a nosso mercado.

Vamos estudar fórmulas compatíveis com as regras da OMC, que permitam aos produtos dos países mais pobres a entrada desimpedida no mercado brasileiro.

Creio que já dispomos de um arcabouço jurídico para tanto, no Sistema Geral de Preferências entre Países em Desenvolvimento. Temos que nos valer dele, com pleno reconhecimento das diferenças de nível de desenvolvimento.

Senhoras e Senhores,

Prezados amigos,

Em Angola, como no Brasil, a esperança venceu o medo. Em nome do povo brasileiro, congratulo-me com o povo angolano pela extraordinária paz alcançada.

Esta Casa é a melhor metáfora para a paz. Um parlamento multipartidário e pluralista simboliza a sociedade em busca da conciliação de interesses por meio do diálogo.

No Brasil, aprendemos essa lição ao longo de vinte anos de luta contra o arbítrio e a ditadura. Na minha carreira como líder sindical e, depois, ao fundar em 1980 o Partido dos Trabalhadores apostei, junto com meus companheiros, na democracia como o único método que realmente nos permitiria transformar o Brasil.

Foi com esse mesmo espírito que participei, como deputado constituinte, do grande espetáculo de democracia, que foi a elaboração da Constituição Federal de 1988. Compreendi, com aquela experiência, o papel e os desafios que se colocam ao Parlamento. Casa da democracia, o Parlamento é, por excelência, local de diálogo dos partidos entre si, destes com a sociedade, e dele, com o Governo.

É motivo de satisfação ver todas as forças políticas participando ativamente da vida institucional angolana. Isto é motivo de esperança para a democracia angolana e de confiança da comunidade Internacional no futuro desta nação.

Felicito todos os partidos angolanos, por estarem conduzindo este país grandioso no caminho da paz e da democracia.

Os angolanos, melhor que ninguém, sabem que não há desenvolvimento sem paz. Angola tem diante de si o grande desafio da reconstrução nacional, que exige a união de todo o país.

Volto a cumprimentar o povo angolano, que, mesmo nos momentos de maior dificuldade, mostrou notável otimismo e vitalidade. Sabemos que as qualidades do povo angolano, provadas nas horas de maior dificuldade e as riquezas com as quais o país é abençoado, proverão a energia necessária para a caminhada em direção à prosperidade e ao desenvolvimento.

Brasil e Angola manterão e aprofundarão sua parceria estratégica. Não economizarei esforços para apoiar nossos irmãos angolanos neste desafiante período de reconstrução. Incentivaremos os fluxos de cooperação, de comércio e de investimentos brasileiros.

A educação é um instrumento essencial para o progresso humano, social e econômico. Estamos colocando a experiência brasileira à disposição do governo angolano para a implementação do programa “Educação para Todos”.

Queremos fazê-lo no quadro de um profundo respeito pela identidade cultural e pelas tradições do povo angolano.

Senhores e senhoras,

Permitam-me uma referência especial ao nosso idioma comum, o português de Agostinho Neto e Amílcar Cabral, de Luandino Vieira e Machado de Assis, de Pepetela e Chico Buarque, entre tantos outros que admiramos.

Nós, brasileiros, sentimo-nos atraídos por outros povos que falam a mesma língua, quem sabe até por sermos o único país das Américas a falar o português. Hoje, graças ao novo espírito de cooperação que nos irmana, temos a grata experiência de descobrir a singularidade de cada país de língua portuguesa, ao mesmo tempo em que celebramos nossa identidade coletiva.

Esse sentido de família e unidade está na base da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, cuja Presidência tenho a honra de exercer, neste momento.

Assim como aqui temos importante colônia brasileira, há no Brasil numerosa comunidade angolana, que o povo brasileiro acolhe com muita alegria.

Está tramitando no Congresso brasileiro projeto de emenda à Constituição, no qual estou empenhado, que estenderá aos cidadãos dos demais países da CPLP as facilidades hoje garantidas aos cidadãos portugueses para a obtenção da nacionalidade brasileira.

Como sabem perfeitamente, o Parlamento tem também responsabilidades sobre a política externa, especialmente quando se trata da aprovação de tratados ou destinação de recursos a certos programas.

Nesse sentido, gostaria de registrar o grande apoio que tenho recebido do Parlamento brasileiro na política de fortalecimento das relações com a África e, em especial, com Angola e os demais países de língua portuguesa. Foi, para mim, motivo de grande satisfação o recente relançamento do Grupo Parlamentar Brasil-Angola.

O Brasil sediará, proximamente, o Fórum dos Parlamentos dos Países de Língua Portuguesa, no qual se discutirá, entre outros temas, uma proposta inovadora de criação de um Parlamento dos Países de Língua Portuguesa.

Senhoras e Senhores,

Queremos ser aliados dos africanos na construção de um mundo mais justo, seguro e solidário. Para tanto, estamos empenhados não só no diálogo no âmbito dos organismos multilaterais de caráter universal, mas também na aproximação com a União Africana.

A cooperação da CPLP com organismos regionais ou sub-regionais africanos, em situações de crise, demonstra a utilidade de estreitarmos este relacionamento.

Interessa-nos aumentar o comércio com a África, nos dois sentidos, e investir no continente, apoiando o esforço de recuperação continental que a NEPAD representa. Queria deixar aqui a semente de uma idéia que poderá prosperar. Gostaríamos de ampliar nosso intercâmbio também no plano regional, por meio de um diálogo e aproximação da América do Sul com o sul da África. O ponto de partida para essa iniciativa poderia ser um encontro de cúpula com o Mercosul, que conta com valiosa experiência no terreno da integração.

Nessa África ainda por vezes tão distante e pouco conhecida do Brasil, e, aliás, da América do Sul, Angola é o nosso pouso seguro, a casa do amigo, a referência do coração.

Cada vez mais, porém, este é o país de grandes potencialidades e dinamismo, das oportunidades de negócios, de investimentos, e também de novas parcerias sociais e culturais.

Estivemos juntos durante a guerra, juntos permaneceremos sob o signo da paz.

Essa é a minha expectativa, essa é a minha convicção e esse é o propósito de meu Governo.

Meus amigos e minhas amigas,

Nesta primeira visita que faço a Angola, e tenho reiterado em vários momentos da minha vida política - antes das eleições, durante as eleições e depois das eleições - que o nosso querido Brasil tem uma dívida histórica com o continente africano e, sobretudo, com Angola. Entre os sinais que quero passar nesta minha visita é que estamos dando os passos mais apressados para o pagamento desta dívida. Por isso, disse em meu discurso que não medirei nenhum esforço, em nenhum momento do meu mandato, para que possamos fazer tudo que for possível fazer para que a relação entre Brasil e Angola seja a mais perfeita relação entre dois países e duas sociedades.

E sinto mais emoção ainda, de estar neste Congresso. Este Congresso, para mim, simboliza muito. Eu perdi três eleições para presidente da República e já tinha perdido em 1982 uma eleição para o governo do Estado de São Paulo. Entretanto, em nenhum momento da minha trajetória política, eu deixei de acreditar que fora da democracia eu pudesse encontrar os meios para chegar ao poder no meu país.

A cada derrota tirávamos lição para que pudéssemos continuar crescendo e nos organizando. Por conta disso, criamos o mais importante partido político de esquerda da América do Sul. E quando estou numa Casa como esta, sabendo que aqui neste país tem 126 partidos políticos, sabendo que aqui neste país, esta Casa está representada por parlamentares de 12 partidos políticos, eu acho isso excepcional, porque é humanamente impossível a construção de uma sociedade justa e solidária que todos nós sonhamos em construir, se nós não aprendermos antes a conviver democraticamente na diversidade, se nós não aprendermos antes que a relação humana perfeita não é aquela em que o ser humano se subordina ou aquela em que o ser humano é obrigado a ser igual ao outro para poder ser entendido.

A verdadeira democracia passa por um comportamento humano que, ao invés de tentarmos querer que as pessoas sejam iguais a nós, a gente poderia ser muito mais simples e apenas entender a diferença entre dois seres humanos, deixar de lado aquilo que é divergente, trabalhar as convergências para que a gente construa, então, o consenso que a sociedade tanto espera de nós.

Eu penso que, no mundo, não existe nenhum país que tenha mais autoridade moral para falar em guerra do que Angola. Foram muitos anos, primeiro numa guerra contra Portugal, depois muitos anos numa guerra interna. Eu acho que qualquer historiador do mundo que quiser escrever alguma coisa sobre guerra terá que escrever sobre Angola.

Agora, um apelo de um presidente da República que, antes de ser presidente da República e amigo de Angola, tem um profundo respeito pelo povo deste país: se durante décadas vocês ensinaram ao mundo a guerra, eu queria pedir a vocês que ensinem agora, ao mundo, a paz.

Obrigado.”


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/11/2003 - Página 35261