Discurso durante a 160ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre a reunião do General Agreement on Trade and Tariffs - GATT, que resultou no Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights - TRIPS, acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio.

Autor
Romero Jucá (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RR)
Nome completo: Romero Jucá Filho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PROPRIEDADE INDUSTRIAL.:
  • Considerações sobre a reunião do General Agreement on Trade and Tariffs - GATT, que resultou no Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights - TRIPS, acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio.
Publicação
Publicação no DSF de 12/11/2003 - Página 36196
Assunto
Outros > PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
Indexação
  • REGISTRO, HISTORIA, PATENTE DE REGISTRO, LEGISLAÇÃO, PROTEÇÃO, PROPRIEDADE INTELECTUAL, GARANTIA, DESENVOLVIMENTO TECNOLOGICO, INCENTIVO, ATIVIDADE ECONOMICA, CONVENÇÃO INTERNACIONAL, LIBERDADE, DECISÃO, PAIS.
  • ANALISE, ENTENDIMENTO, GOVERNO BRASILEIRO, AUSENCIA, CONCESSÃO, PATENTE DE REGISTRO, ALIMENTOS, MEDICAMENTOS, EXISTENCIA, CONFLITO, EXPANSÃO, GLOBALIZAÇÃO, PREJUIZO, BRASIL, TRANSFERENCIA, ASSUNTO, ACORDO GERAL SOBRE TARIFAS E COMERCIO (GATT), POSTERIORIDADE, ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMERCIO (OMC), HEGEMONIA, PAIS INDUSTRIALIZADO, ACORDO, PROTEÇÃO, MONOPOLIO, PROPRIEDADE, TECNOLOGIA, IMPOSIÇÃO, ATRASO, TERCEIRO MUNDO, ESPECIFICAÇÃO, SETOR, INDUSTRIA FARMACEUTICA, INFORMATICA, COMUNICAÇÃO DE DADOS, BIOTECNOLOGIA.
  • DEFESA, POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA, REFORÇO, INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL (INPI), BENEFICIO, POLITICA INDUSTRIAL, REDUÇÃO, DEFICIT, DESPESA, TECNOLOGIA, DENUNCIA, ILEGALIDADE, REMESSA DE LUCROS, EXTERIOR, SONEGAÇÃO, EMPRESA MULTINACIONAL, ELOGIO, LIDERANÇA, BRASIL, PRODUÇÃO, MEDICAMENTOS, COMBATE, SINDROME DE IMUNODEFICIENCIA ADQUIRIDA (AIDS), AUSENCIA, PAGAMENTO, PATENTE DE REGISTRO.

O SR. ROMERO JUCÁ (PMDB - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, os mais argutos analistas da realidade contemporânea são unânimes em identificar o período histórico em que estamos ingressando como a “Era do Conhecimento”.

De fato, já está bastante claro que, no mundo de hoje e daqui para o futuro, nenhum outro fator será tão determinante para o acesso à riqueza e ao poder quanto o domínio do conhecimento e, especialmente, do conhecimento científico e tecnológico. Com o avanço da globalização e a hegemonia em nível mundial das concepções liberais - ainda que mitigadas ou disfarçadas -, os fatores da produção tradicionalmente identificados pela teoria econômica - terra, capital e trabalho - deixaram de ser os elementos mais importantes para a construção da riqueza e a conquista de poder. Nada é mais valioso, hoje, do que o conhecimento técnico.

Nesse contexto, a propriedade intelectual de inventos e inovações é um recurso fundamental na disputa por mercados, imprescindível para o desenvolvimento tecnológico, e um dos elementos definidores da posição relativa de cada país na hierarquia internacional.

Já faz cerca de dois séculos que alguns governantes começaram a perceber a conveniência de se estimular a atividade inventiva. O período da Revolução Industrial, entre 1740 e 1830, foi uma época de intensa criatividade e profundas inovações tecnológicas. Aqueles anos viram o surgimento da maior quantidade de invenções, de produtos novos até então observado na história da humanidade. Tendo em vista o alto custo de inventar algo e o interesse coletivo de que isso ocorra, o governo inglês criou o instituto da patente, um monopólio concedido pelo Estado ao inventor, por um período previsto em lei, para explorar com exclusividade sua invenção.

Evidentemente, os inventores e aqueles que financiam seu trabalho não teriam qualquer estímulo para despender os recursos e os esforços necessários para chegar a uma inovação caso, tão logo consumassem o processo, sua invenção passasse a ser indiscriminadamente copiada. E o trabalho dos inventores, a criação de novos produtos e novos processos produtivos, é de vital interesse para o desenvolvimento econômico das nações.

Foi a partir da compreensão dessa realidade que surgiu o instituto da patente, que começou a tomar forma a legislação de proteção à propriedade intelectual.

Desde os primórdios do instituto, a concessão de uma patente dependia de duas condições, voltadas para a defesa do interesse coletivo. Exigia-se que o inventor desvendasse inteiramente sua invenção e que fabricasse o novo produto no país de concessão da patente.

Com a primeira exigência, assegurava-se que outros inventores que estivessem trabalhando na mesma idéia ou na mesma área não perdessem seu tempo perseguindo um resultado que o dono da patente já havia logrado; em vez disso, poderiam dar um salto tecnológico qualitativo a partir do que fora patenteado, poderiam usar aquele conhecimento para ir além. A segunda exigência - de exploração local do monopólio representado pela patente - tinha a óbvia finalidade de fazer com que o titular do monopólio, em troca do privilégio de possuí-lo, ajudasse a desenvolver a economia local, usando, na fabricação de seu produto, matérias-primas e recursos humanos do país concedente.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, desde o surgimento da legislação protetora da propriedade industrial, a concessão de patentes era feita de acordo com os interesses da política industrial de cada país. O tratado internacional que regulava a matéria, denominado “Convenção de Paris”, permitia que as diferentes nações adotassem a lei de propriedade industrial que melhor lhes conviesse, exigindo apenas que elas garantissem aos inventores estrangeiros os mesmos direitos assegurados aos nacionais.

À sombra desse princípio, chamado de “tratamento nacional”, alguns países podiam decidir não conceder patentes para produto algum, ou só concedê-las para alguns setores. Assim, a Espanha, por exemplo, não dava patentes para medicamentos, e o Japão, durante muito tempo, não as deu para processos químicos. O Brasil não concedia patentes para processos químicos, nem para medicamentos ou alimentos.

O entendimento do Governo brasileiro sempre foi que, dada a grande importância social desse tipo de produto, nem mesmo o desejo de estimular a inovação industrial poderia justificar a concessão de monopólios - fossem nacionais ou estrangeiros - que passariam a produzir o quanto quisessem e a vender ao preço que desejassem, na condição de únicos produtores. Além disso, caso alguém detenha o monopólio, se o Governo for forçado, por algum motivo, a impedi-lo de produzir - por uma decisão da Vigilância Sanitária, por exemplo -, não poderá permitir que outro fabricante o substitua, em virtude da existência do monopólio. Nessa situação, o País poderia ver-se totalmente privado de algum produto essencial, caso, por alguma razão, o dono da patente viesse a sofrer um impedimento.

Na verdade, esse entendimento brasileiro era bastante generalizado. Nada menos que 50 países do mundo adotavam legislação de propriedade industrial que vedava a concessão de patentes para alimentos e medicamentos.

Conforme a Convenção de Paris, portanto, desde que observado o tratamento nacional, os países tinham total liberdade, cada um podendo fazer suas leis de acordo com sua política industrial. Se um país quisesse, por exemplo, estimular o setor eletroeletrônico, e se houvesse um conjunto de fábricas desenvolvendo tecnologias para vídeo, para máquinas fotográficas etc., o governo poderia decidir pela concessão de patentes para todos, mas patentes de curto prazo, para estimular um desenvolvimento tecnológico mais rápido. O único requisito era que nacionais e estrangeiros tivessem o mesmo tratamento.

Infelizmente, contudo, Srªs e Srs. Senadores, essa situação já não mais perdura.

A forte expansão experimentada pelas empresas norte-americanas na década de 80 do século passado levou o governo daquele país a questionar o sistema de patentes, tal como estava formulado na Convenção de Paris, a partir do entendimento de que ele não dava proteção suficiente aos proprietários das patentes. Evidenciou-se, a partir daí, um conflito estrutural entre os países produtores de patentes e os países que as consomem.

O peso das patentes tem uma distribuição extremamente desigual: Europa, Estados Unidos e Japão são donos de 85% das patentes do mundo. Os outros países, todos juntos, detêm apenas os 15% restantes. É óbvio, portanto, que existe um confronto de interesses entre esses dois grupos. No Brasil, do total de patentes registradas no País, 95% são de estrangeiros. Estamos, na verdade, com nossa legislação, dando proteção, poder e remuneração a pessoas que não são das nossas empresas, a empresas que não são nacionais.

Os países de origem das grandes empresas, com maciços investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, querem, evidentemente, que as patentes tenham a maior proteção possível, porque isso é benéfico para eles. Os países que produzem poucos produtos patenteados são, em geral, consumidores, como o Brasil, e querem, ao contrário, que as patentes, se existirem, tenham a maior flexibilidade possível. Para estes, estava perfeito o sistema da Convenção de Paris, cada país podendo definir prazos diferenciados, distinguir setores, etc.

Os países ricos não conseguiam, porém, reunir maioria de votos no interior da Convenção de Paris para modificar os seus dispositivos. Adotaram, então, uma estratégia inteligente: resolveram que o tema da propriedade industrial não deveria ser tratado no âmbito da Convenção de Paris, mas, sim, na área comercial, na grande organização que, até 1994, tratava do comércio internacional.

A partir do argumento objetivo de que patentes têm influência sobre o comércio internacional, passaram a pressionar para que a questão fosse transferida para o antigo GATT - General Agreement on Trade and Tariffs, pois, no GATT, o poder de imposição desses países passaria a ser total. Afinal, no âmbito das negociações comerciais, os países ricos conseguem, geralmente, impor tudo o que desejam, pois, caso os países em desenvolvimento não aceitem essas imposições, não conseguem exportar suas mercadorias.

Durante muitos anos, os países emergentes - como Brasil, Índia, México, Rússia, Argentina e Indonésia - resistiram, mas, afinal, as pressões tornaram-se tão fortes que eles se viram forçados a ceder, e o tema da propriedade industrial acabou levado para a rodada Uruguai do GATT. Foi então que ocorreu a negociação comercial mais importante, de mais amplas e profundas conseqüências dos últimos anos, a negociação que resultou no TRIPS - Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, ou seja, o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, ou, simplesmente, Acordo de Propriedade Intelectual.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ao levar para o âmbito do GATT a negociação sobre o tema da propriedade industrial, o alvo dos países desenvolvidos era ampliar a proteção das patentes a um limite máximo, padronizado internacionalmente. Os países menos desenvolvidos tinham outra perspectiva e outro argumento: poderiam até admitir dar mais poderes aos titulares das patentes, mas queriam que fossem ampliados os recursos para transferência de tecnologia. Tinham a preocupação de garantir que o Terceiro Mundo não ficasse com tecnologia de quinta categoria. O ponto central era: precisavam de transferência de tecnologia, e não, de proteção para patentes.

Em janeiro de 1995, o GATT foi extinto para dar lugar à atual e poderosa Organização Mundial do Comércio - OMC. A entidade recém-criada recebeu do seu predecessor dezessete novos acordos sobre comércio e tarifas, que haviam sido negociados durante a rodada Uruguai. Havia acordos sobre os mais variados temas: tecidos, multifibras, seguros, investimentos, produtos metalúrgicos. Entre eles, porém, estava o malfadado acordo sobre propriedade industrial, o TRIPS.

A negociação mais difícil foi a do TRIPS. Os outros dezesseis acordos dispunham no sentido da abertura de mercado, redução de tarifas, redução de barreiras alfandegárias. Eram todos voltados para a redução de garantias e direitos, visavam a um mundo que funcionasse como um comércio único. O TRIPS ia na contramão: criava barreiras e, num sentido muito específico, criava barreiras para proteger ainda mais quem já tinha tecnologia, já tinha patente, já estava pesquisando. Com o TRIPS, esses países ganhavam o maior poder possível, pois ele transformava esses fatores em produtos ainda mais valiosos no mercado internacional.

Na verdade, Sr. Presidente, o TRIPS congela o sistema internacional de conhecimento científico e tecnológico: quem já dispõe de um acervo considerável de conhecimentos vai continuar produzindo, mas quem não os tem não vai produzir, porque não tem como começar. Quanto mais privilégios são concedidos para o monopólio de um invento inicial, menor é a possibilidade de outros agentes participarem do comércio internacional de novos produtos e processos.

Com a superproteção dada pelo TRIPS à propriedade industrial, as patentes tornaram-se extremamente valiosas. Atualmente, o preço que se cobra por um remédio não tem qualquer relação com os custos envolvidos na produção desse medicamento. Ganha-se muito mais dinheiro investindo no conhecimento técnico, na inovação tecnológica, do que produzindo mercadorias, que se reduziram a meras conseqüências.

É exatamente pelo fato de o conhecimento técnico ser o bem de maior valor na atualidade que os países mais poderosos não quiseram partilhar seu conhecimento, não quiseram derrubar as barreiras. Se quisessem, de fato, caminhar no sentido da globalização e do liberalismo, teriam acabado com as patentes, teriam permitido que se copiassem livremente novos produtos e novas técnicas de produção. Mas as barreiras foram derrubadas apenas no que se refere aos produtos industriais, não para os produtos intelectuais, exatamente os mais valiosos e cuja propriedade é mais concentrada.

O espírito do TRIPS é diametralmente oposto ao da Convenção de Paris. O novo acordo traz medidas de aplicação obrigatória, que têm de ser previamente aceitas pelos países, sob pena de não se permitir seu ingresso na OMC - Organização Mundial do Comércio. Ele exige que os países modifiquem suas legislações internas, para dar maior proteção aos donos das patentes, numa agressão às soberanias nacionais. O TRIPS promove, também, uma padronização, uma homogeneização das leis de propriedade intelectual: em todos os países do mundo, a validade das patentes passa a ser, obrigatoriamente, de 20 anos, a partir do pedido, em todos os setores.

As implicações dessa padronização são muito sérias. Como todos os setores de produção industrial estão submetidos a patentes, os países não podem mais escolher os setores que desejam deixar de fora do sistema. O Brasil não pode mais decidir se vai ou não patentear medicamentos ou alimentos. Eliminou-se, com isso, a liberdade que tinham os países de utilizar o sistema de patentes segundo as características e os interesses de sua política industrial.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a instituição do TRIPS resultou da pressão de três grandes grupos empresariais: o farmacêutico, o de software e o de semicondutores.

Antes do TRIPS, como já mencionamos, havia cinqüenta países que não concediam patentes para produtos farmacêuticos e alimentos. Por isso mesmo, as grandes empresas farmacêuticas juntaram suas forças, gastaram fortunas com lobby e conseguiram impor que o mundo todo terá que dar patente para medicamentos, e que essa patente terá a duração de vinte anos. Como o processo de autorização de um medicamento, principalmente num país como os Estados Unidos, leva cerca de oito anos, o setor farmacêutico precisava de um prazo maior para garantir seu lucro pelo maior tempo possível.

Nesse campo, em particular, o TRIPS veio criar uma situação dramática. Afinal, o direito à saúde é um direito fundamental do ser humano, um direito que está muito acima do direito ao lucro. No entanto, à luz do TRIPS, os medicamentos estão sendo tratados como um negócio qualquer. E, pior ainda, um negócio no qual só um dos contratantes tem voz. O fabricante cobra o que quiser, e o comprador não tem alternativa a não ser pagar - ou, em muitos casos, morrer. Era exatamente para evitar esse quadro que o Brasil e outros quarenta e nove países não permitiam o patenteamento de medicamentos.

Com o TRIPS, as empresas do setor farmacêutico passaram a ganhar uma fortuna incalculável. E o consumidor - que pode tanto ser um indivíduo quanto um governo - está comprando algo que não sabe quanto custa. Quem detém uma patente pode decidir que um remédio cujo custo de produção é de dois reais deve ser vendido por cem reais, dependendo apenas de como avalie a capacidade de compra do mercado. O preço de venda não tem qualquer relação com o custo de fabricação.

As empresas de software conseguiram incluir seus produtos na área de direitos de autor, não de propriedade industrial, e também investiram todo o seu esforço para conseguir o máximo possível de proteção. Protegidos pelos direitos autorais, os produtos de software podem ser copiados, mas o usuário tem que pagar, e a duração do monopólio é de 50 anos, tal como já era no caso de direitos de autor sobre obras literárias ou musicais.

            As empresas de semicondutores são aquelas que fabricam produtos usados para transmitir eletricidade e informações. Vários países desenvolvidos têm leis específicas regulando o campo dos semicondutores e, no Brasil, já existe um projeto tramitando no Congresso Nacional.

Esse tipo de produção legislativa que vem sendo “estimulada” pelos países desenvolvidos não se limita às leis referentes à propriedade industrial. Hoje, está praticamente tudo regulamentado segundo os moldes exigidos pelo TRIPS. No Brasil, logo depois do TRIPS, que foi aprovado em dezembro de 1994, aprovou-se a lei de propriedade industrial, em 1996, e, em 1997, a lei de cultivares, que trata de plantas e é simétrica às leis de propriedade industrial e intelectual. Em 1998, o Brasil reviu sua lei de direitos de autor e criou a lei de software, fechando, com isso, o cerco, para não deixar nenhuma liberalidade em qualquer área que possa ter alguma relação com a propriedade intelectual.

Um outro campo, da maior importância, também trazido pelo TRIPS para o universo das patentes é o da biotecnologia. À medida que se esgotam as possibilidades de criar remédios a partir de misturas químicas, abrem-se vastas perspectivas na área da biotecnologia. Não é por outro motivo que nesta Casa tanto se fala em lei de acesso, em proteção às plantas que podem servir para produção de medicamentos, que tanto se denuncia a biopirataria na Amazônia.

O patenteamento de produtos biotecnológicos é mais absurdo que o patenteamento dos remédios. Na biotecnologia, alguém utiliza uma planta tirada da natureza, altera seu DNA no laboratório, retira o DNA sensível às principais pragas, por exemplo, insere um DNA imune, e ganha vinte anos de monopólio. Em vinte anos, uma empresa quebra a lavoura de um país, ou torna rico um país que era pobre naquela cultura. O patenteamento na área da biotecnologia, com os padrões que foram impostos pelo TRIPS, é uma agressão a um país como o Brasil.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, num passado recente, o Brasil contava com o seu INPI - Instituto Nacional de Propriedade Industrial forte e prestigiado. O órgão fiscalizava cuidadosamente todos os contratos de transferência de tecnologia, verificando se os seus termos não contrariavam nossa política de desenvolvimento tecnológico, se os seus custos não eram excessivos para o comprador nacional.

Empresas estatais, como a Petrobras, não podiam comprar diretamente de empresas estrangeiras. Assim, quando a Petrobras precisava de um equipamento que ainda não era produzido no Brasil, a empresa estrangeira interessada em vender para a Petrobras tinha como única alternativa firmar uma parceria com uma empresa nacional e transferir-lhe a tecnologia, para que o equipamento fosse fabricado em solo brasileiro. O INPI fiscalizava as cláusulas desse contrato de parceria, limitava seu custo para qualquer empresa nacional compradora da tecnologia, assim facilitando a negociação, induzindo a empresa estrangeira a não impor condições tão leoninas.

Essas empresas brasileiras que adquiriam tecnologia sob a proteção do INPI acabavam, elas próprias, por se tornar produtoras de tecnologia, porque, cada vez que compravam algo, havia muitos pequenos itens que não podiam ser exatamente como no país de origem e tinham que ser adequados, fosse uma parte do processo ou a forma final do produto. Com isso, o Brasil avançava no campo do conhecimento tecnológico.

Hoje, podemos ver com clareza que a abertura do mercado brasileiro às empresas estrangeiras não foi cercado de todos os cuidados necessários. Os poderes do INPI foram drasticamente reduzidos pela lei de propriedade industrial de 1996. Os contratos de transferência de tecnologia passaram a ter um caráter eminentemente privado. As empresas estatais podem contratar aquisições diretamente de outro país. As tarifas de importação tiveram seus valores reduzidos, sem qualquer compensação para as empresas nacionais, que passaram a enfrentar a concorrência direta daquelas que, até então, vendiam tecnologia para elas.

Nesse contexto, diversas grandes empresas brasileiras de bens de capital não resistiram à brusca abertura do mercado e foram à falência. A título exemplificativo, podemos mencionar a Villares, a Bardella, a Metal Leve, a Confab e a Zanini.

Com efeito, num país em desenvolvimento como o Brasil, é indispensável que o Governo dê uma ajuda clara, decisiva para as negociações de tecnologia. O empresariado nacional está, hoje, carente dessa ajuda governamental. O País está desprovido de uma política de produção de tecnologia. Essa é, indiscutivelmente, uma das explicações para o fato de o Brasil estar pagando, anualmente, 3 bilhões de dólares na conta de tecnologia, em vez dos 300 milhões de dólares que pagava até antes de o TRIPS entrar em vigência.

Essa é, Srªs e Srs. Senadores, uma medida bem clara e objetiva - embora incompleta - dos imensos prejuízos acarretados pelo TRIPS à economia nacional: nosso déficit na conta de tecnologia foi, simplesmente, multiplicado por dez! E, isso, num período de apenas cinco anos, entre 1995 e 1999.

Numa análise mais superficial, esses números poderiam sugerir que o Brasil está engajado num processo de desenvolvimento tecnológico, pois estaria absorvendo três bilhões de dólares ao ano de tecnologia. A verdade, contudo, é bem outra: o País teria condições muito mais favoráveis para se desenvolver com a adoção de uma política de incentivo à produção de tecnologia, em vez de se comprar cada vez mais. Além disso, sabe-se que boa parte desses recursos exportados não tem qualquer relação com tecnologia. Uma pesquisa detalhada mostraria que a metade desses três bilhões de dólares não é despesa com tecnologia, mas uma forma disfarçada de remeter lucros para o exterior, sonegando o pagamento de imposto de renda.

Esse mascaramento da remessa de lucros como despesa com tecnologia tornou-se possível com o enfraquecimento do INPI, pois, até 1990, enquanto conservava seus plenos poderes, esse órgão tinha completo controle dos gastos com transferência de tecnologia. É fundamental, portanto, que se fortaleça o INPI. O Brasil precisa ter uma política de desenvolvimento tecnológico e um órgão especializado que participe da análise de todos os contratos, com meios de impedir, legalmente, qualquer transferência que contrarie os princípios dessa política.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, as ambigüidades que estão presentes tanto em certas passagens da lei brasileira de propriedade intelectual quanto no acordo TRIPS propiciaram, poucos anos atrás, o surgimento da disputa sobre a quebra das patentes dos remédios contra a AIDS.

A questão resultou da decisão do Governo brasileiro de usar o instrumento da licença compulsória para produzir os remédios no Brasil, a preços mais baixos que os das multinacionais, e acabou se transformando na maior bandeira dos países em desenvolvimento contra o TRIPS, demonstrando que esse acordo precisa ser modificado.

A criação, no Brasil, de um programa sério e competente de prevenção e combate à AIDS teve como conseqüência indireta tornar claro, para o Governo e para todos os que acompanham o tema, o absurdo da aprovação de uma lei de propriedade industrial, induzida pelo TRIPS, que permite ao dono de uma tecnologia patenteada oferecer seu produto, mesmo que seja um remédio, pelo preço que bem entender. Tendo a obrigação legal de pagar os tratamentos, o Governo sentiu no próprio bolso o abuso dos preços: o Brasil tem 100 mil pacientes com AIDS com direito a consultas, remédios e hospitalização. Há remédios que custam mil reais por mês, e o Governo é obrigado a fornecê-los de graça.

O economista norte-americano Jeffrey Sachs fez um levantamento e descobriu que, nos Estados Unidos, o coquetel anti-AIDS, que aqui é fornecido gratuitamente pelo Governo, custa 10 mil dólares por pessoa/ano, embora seu custo de produção seja por volta de apenas 500 dólares por pessoa/ano.

O Governo brasileiro, com apoio da África, passou, então, a apresentar ao mundo um argumento consistente: dentro de seu país, cada governo pode produzir os remédios contra a AIDS, para evitar a morte de seus cidadãos, pagando ao titular da patente o dobro do que ele gasta para produzir. As ONGs que atuam no combate à pandemia na África, muitas delas ligadas a grupos religiosos e sociais, colocaram a questão dentro do marco “direito de patente ou direito à vida”. Elas usam como argumento o programa brasileiro, que oferece, hoje, uma grande chance para se abrir uma brecha no TRIPS.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a superproteção garantida pelo TRIPS às patentes é um ótimo negócio para os países hegemônicos, que detêm a tecnologia, e péssimo para os países em desenvolvimento. Após o TRIPS, e no contexto da globalização, tornou-se extremamente difícil para qualquer país em desenvolvimento, implementar uma política nacional de desenvolvimento tecnológico. Sob as regras do TRIPS, praticamente não há como competir com os preços de tecnologias, produtos e serviços dos países desenvolvidos.

À luz desse acordo, o interesse que prevalece é o privado, não o público. O que está em jogo, portanto, é uma questão ética de escala mundial: ou o conhecimento ficará no domínio público, para ser usado no combate às mazelas sociais, ou estará a serviço do lucro, monopolizado pelas grandes corporações.

É hora, portanto, de cada um assumir sua posição.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/11/2003 - Página 36196