Discurso durante a 165ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem pelo centenário do sertanejo pernambucano Dom Severino Mariano de Aguiar, emérito bispo da Diocese de Pesqueira, na zona central do Estado de Pernambuco.

Autor
José Jorge (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: José Jorge de Vasconcelos Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem pelo centenário do sertanejo pernambucano Dom Severino Mariano de Aguiar, emérito bispo da Diocese de Pesqueira, na zona central do Estado de Pernambuco.
Publicação
Publicação no DSF de 19/11/2003 - Página 37816
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, SEVERINO MARIANO DE AGUIAR, BISPO, MUNICIPIO, PESQUEIRA (PE), ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), ELOGIO, ATUAÇÃO, IGREJA CATOLICA, DEFESA, JUSTIÇA SOCIAL.

O SR. JOSÉ JORGE (PFL - PE. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, cultivamos nesta Casa a louvável tradição de homenagear brasileiros ilustres de todos os recantos do País, preservando-lhes a memória e simultaneamente registrando para a história, os seus exemplos de vida, de luta e de conquistas. São homenagens feitas a pessoas cujas vidas marcaram as comunidades onde viveram, pelo saber, pelo valor moral, pela liderança, por suas obras e muitas vezes por gestos de coragem e pioneirismo, tornando-se assim atores diferenciados da construção humana da sociedade brasileira.

E todos nós podemos testemunhar, que estas homenagens provêm do olhar mais profundo da sensatez, do equilíbrio, da sabedoria e do respeito que nossos Senadores dedicam ao pluralismo político, que nossa Carta Magna erigiu, entre outros, como um dos fundamentos de nossa República (CF - art. 1º).

É na esteira desta nobre tradição do Senado brasileiro que, neste momento, assumo esta tribuna, com subida honra, para homenagear o ilustre sertanejo pernambucano Dom Severino Mariano de Aguiar, emérito bispo da Diocese de Pesqueira, na zona central do Estado de Pernambuco, por ocasião das festividades do seu centenário, efeméride que está sendo celebrada em Pesqueira e nas cidades que compõem aquela diocese católica. O Conselho Estadual de Educação de Pernambuco, através de decisão unânime do seu Pleno, quis ampliar a dimensão das homenagens, associando-se aos professores, alunos e a lideranças engajadas na educação comunitária daquela região, conferindo àquele bispo, in memoriam, em sessão solene realizada no dia 18 de setembro próximo passado, a sua comanda maior, a Medalha do Mérito Educacional Professor Paulo Freire.

Não poderia falar daquele antístite sem antes me referir à cidade de Pesqueira, uma das mais belas de nosso Estado, fazendo o registro de que no atual Município de Pesqueira, no dia três de abril de 1762, por decreto régio, foi criada a Real Vila de Cimbres, onde foi instalada a primeira Comarca do interior do Nordeste Setentrional. Em Cimbres funcionou também, em prédio ainda hoje conservado, o primeiro Senado daquela região, como naquele tempo eram chamadas as casas legislativas no interior das províncias. Cimbres é atualmente distrito de Pesqueira e está encravada no conjuntos das serras do Ororubá, área indígena da nação dos Xucurus, infelizmente ainda hoje palco de sangrenta luta pela posse da terra.

A cidade de Pesqueira foi por muito tempo o centro cultural, educacional e religioso de todo o agreste e sertão de Pernambuco e os seus renomados colégios Cristo Rei e Santa Dorotéia foram escolas de referência, para onde afluíam os jovens das mais tradicionais famílias sertanejas. No âmbito nacional tornou-se conhecida por ser a sede da indústria de doces da famosa marca “peixe”, que representava então um dos mais arrojados projetos industriais do Nordeste, fruto do pioneirismo e da competência do pesqueirense Moacir de Brito, que foi, como Delmiro Gouveia, um ardente defensor da industrialização do nordeste, a partir do interior dos estados.

Com o fenômeno moderno da rápida urbanização de nosso país, com a construção de estradas e a expansão dos meios de comunicação, cresceram com Pesqueira outros pólos urbanos, diversificando a oferta de bens e serviços na região. E apesar de sofrer, como todo o Nordeste, o aprofundamento das desigualdades regionais no país e a concentração do crescimento econômico no Centro-Sul, Pesqueira, cidade do doce e da renda, preserva intacta a sua vocação cultural, tendo agora maior dinamismo econômico no setor terciário, inclusive no turismo. Pesqueira, plantada aos pés da Serra do Ororubá, por seu casario artisticamente trabalhado, por suas igrejas e sobretudo por seu povo hospitaleiro e trabalhador, continua ostentando o brilho de uma cidade bonita e culta, que guarda com muito zelo sua história e suas tradições.

Foi em Pesqueira que viveu e trabalhou durante 23 anos o nosso homenageado.

Ousarei evitar, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, que esta homenagem se nos afigure como simplesmente mais um ato de reconhecimento dos méritos de um bispo da Igreja ou de um religioso de virtudes incontestáveis. Esta tarefa vislumbro-a fácil, porque tanto em Campina Grande, na Paraíba, como em Pesqueira, em Pernambuco, D. Mariano marcou sua passagem como profeta da melhor linhagem, pela visão que tinha do futuro e pela autenticidade com que impregnava sua atuação social junto às camadas mais pobres da população, inclusive em suas lutas pela reforma agrária em nosso país, ainda nos idos das décadas de 1950 e de 1960.

Nasceu D.Mariano no Município de Bom Jardim, em Pernambuco, no dia 14.08.1903, no então povoado de Queimadas, hoje Município de Orobó. Seus genitores, João Mariano de Aguiar e Ana Joaquina de Aguiar, viveram da agricultura de pequena monta, em terras inóspitas do agreste, mantendo com grande dificuldade sua prole de seis filhos, dos quais apenas dois puderam seguir estudos superiores, um deles sendo o futuro bispo Mariano e outro, o professor Antônio Mariano, um dos mais notáveis professores de matemática na cidade do Recife.

O jovem Severino Mariano de Aguiar iniciou seus estudos no Ginásio do Recife em 1919 e logo depois, no primeiro dia de agosto daquele ano, ingressou no famoso Seminário de Olinda, para seguir a sua vocação sacerdotal. Fez seu curso superior de Teologia na cidade de S. Leopoldo, no Rio Grande do Sul e no dia 23 de setembro de 1928 voltava à sua terra natal para ser consagrado como sacerdote, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Queimadas, pelo bispo da Nazaré da Mata, Dom Ricardo Vilela. Da cidade de Orobó e da mesma geração, a família Aguiar deu a Igreja três notáveis bispos, D. Mariano Aguiar, D.Otávio Aguiar e D.José Távora, todos eles integrantes do depois chamado pelos historiadores da recente história do Brasil como “grupo de nordestinos da CNBB”.

O Pe. Mariano começou a sua missão sacerdotal em Nazaré da Mata, em Pernambuco, fixando-se depois na cidade de Campina Grande, na Paraíba, onde foi professor do Colégio Pio XI, capelão do Colégio das Damas e coadjutor e depois vigário da paróquia durante 22 anos.

Naquele período revelou-se como grande articulador das lideranças locais, participando ativamente dos principais projetos de desenvolvimento que fizeram de Campina Grande a segunda maior cidade da Paraíba e uma das mais pujantes cidades do Nordeste brasileiro. No entanto, todo o seu trabalho estava direcionado para a finalidade que orientou toda a sua vida : a justiça social. A justiça social entendida como construção coletiva e solidária, de todos e para todos, dos ricos e dos pobres, inspirada na esperança de construir uma sociedade mais igual, mais fraterna e mais humana.

Assim é que aceita a convocação do Ministro José Américo de Almeida, um dos políticos mais importantes da era Vargas, para implantar um serviço de assistência a crianças pobres de Campina Grande, fundando, com o apoio e a colaboração da sociedade campinense, a “Casa do Menino”, exemplo pioneiro de serviço social que passou a ser imitado em várias outras cidades. Mas foi, sobretudo, no apoio e formação de lideranças cristãs, engajadas nas diversas modalidades de Ação Católica, que seu trabalho tomou dimensão. A história recente já registra a importância destes movimentos, sobretudo da Juventude Operária Católica (JOC) e da JUC, Juventude Universitária Católica, nos debates nacionais e na formação de lideranças políticas cristãs, prestando relevantes serviços às conquistas sociais em nossa pátria.

No entanto, como homem profético, D.Mariano usava sobretudo da palavra, para levar a todos a mensagem cristã, ficando famoso o seu Programa de Rádio “Pingos de Conversa”, em Campina Grande e depois em Pesqueira, onde diariamente falava do quotidiano das pessoas e principalmente da Doutrina Social da Igreja.

Do púlpito ou do microfone, estendia ele a sua visão cristã para toda a região. Entendia e vivenciava aquele ilustre prelado, a essência do evangelho pregado por Cristo, seguindo a melhor tradição bíblica, de que todo ser humano é imagem e semelhança do Criador e sendo todos filhos do mesmo Pai, tornava-se inconcebível um mundo com tantas e tão profundas desigualdades sociais, com a grande concentração de riquezas e de dominação política e econômica nas mãos das elites, deixando à pouca sorte a multidão de pobres espalhada em nosso país.

Em sua visão religiosa o homem é concebido em sua totalidade, como pessoa humana, ente racional dotado de espírito e de matéria, e por conseguinte sujeito construtor de sua história, que se torna coletivamente a história de toda a humanidade. Não se podia, portanto, ser pastor das almas, sem também ser irmão solidário de todos e cada um, no estabelecimento da igualdade, da justiça e da solidariedade entre as pessoas. Esta utopia cristã ainda hoje é insuperável e inspira todas as civilizações, do ocidente ao oriente, e todos os organismos internacionais tidos como conquistas humanistas inalienáveis e indiscutíveis.

Na História de nosso país, as décadas de 50 e 60 registram momentos de grandes tensões políticas, sendo aquela a época da mais importante encruzilhada social de nossa sociedade.

Foi naquela época que surgiu, a partir do Rio de Janeiro, capital da República, o chamado “grupo de bispos nordestinos”, geração liderada pela figura da incontestável grandeza de Dom Hélder Câmara, que com Dom José Távora eram bispos auxiliares do Cardeal Jaime Câmara na capital do país. Ao lado de outros ilustres prelados nordestinos, como Dom Fernando Gomes, de Goiana, D.Eugênio Sales, de Natal, D.José Delgado, de Fortaleza e depois outros bispos como D.Mariano em Pesqueira e D.Francisco em Afogados da Ingazeira, tinha início a grande caminhada da Igreja junto aos pobres e desvalidos do país, sem aquela visão piegas e romântica do predestinado e paciente Jó, para introduzir, sobretudo através da Ação Católica, a concepção do homem, como sujeito agente de sua história e da História, tendo a dignidade do ser humano como pedra angular na construção da sociedade. Dava-se para nós o renascimento da melhor filosofia humanista grega, aperfeiçoada pela revelação cristã, que passaria a impregnar todos as instituições do mundo contemporâneo.

Registra a escritora Marina Bandeira, em seu antológico livro “A Igreja Católica na Virada da Questão Social”, publicado pelo respeitado Centro Alceu de Amoroso Lima, do Rio de Janeiro, que os chamados “bispos nordestinos” assumiram a liderança do episcopado nacional com o beneplácito do então Núncio Apostólico Dom Armando Lombardi.

Já em 1952, era Dom Hélder Câmara eleito secretário geral da recém criada CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, entidade idealizada por ele mesmo, em comunhão com outros bispos da ala progressista da Igreja e que já houvera sido apreciada e aprovada pelo então Monsenhor Giovanni Baptista Montini, prestigiado cardeal-arcebispo de Milão e futuro Papa Paulo VI.

Começam a surgir tomadas de posição muito fortes do episcopado nacional em defesa dos mais pobres, ganhando força a idéia da necessidade de fazer a reforma agrária no Brasil, ao lado de outras reformas de base, como fórmula de levar com pressa a justiça aos campos, evitando o êxodo rural e os conflitos sociais.

Ocorre, então, um fato da maior relevância para a história do Nordeste. A CNBB promove na cidade de Campina Grande, onde era vigário o então Pe. Mariano, o 1º Encontro de Bispos do Nordeste, em maio de 1956, voltado para o debate sobre o compromisso cristão diante da questão social brasileira e, em especial, sobre a questão nordestina. Coube a D.Mariano a organização do encontro, em apoio à CNBB, sendo aquela cidade escolhida por ser um centro efervescente de debates sobre a temática social, à luz da doutrina social da Igreja.

A este encontro se fez presente, em seu encerramento, o então Presidente Juscelino Kubitschek, que já recebera dos bispos uma substancial colaboração para integrar o seu famoso Plano de Metas, e agora recebia das mãos dos “bispos nordestinos”, o documento histórico “Declaração dos Bispos do Nordeste”.

Poucos dias depois do encontro, o Presidente JK assinava 20 decretos, com base naquela reunião e recebia do economista Celso Furtado, o projeto “Operação Nordeste”, aprovado nas reuniões dos bispos com técnicos para debater os problemas nordestinos. Ali estava lançada a semente da futura SUDENE, criada para planejar e implementar o desenvolvimento do Nordeste Brasileiro.

Em 1957 foi o Pe. Mariano nomeado bispo diocesano de Pesqueira, em Pernambuco, tendo sido sagrado pelas mãos do próprio Núncio Apostólico Dom Armando Lombardi. Chegou a Pesqueira para assumir a Diocese no dia 1º de maio do mesmo ano, quando recrudescia a luta pela reforma agrária em todo o país, sendo Pernambuco um dos focos mais tensos do movimento, sob a liderança do fundador das Ligas Camponesas, o pernambucano Francisco Julião.

Em Pesqueira D.Mariano foi ardente defensor da reforma agrária, mas fazia contraponto aos extremistas, defendendo a necessidade de uma reforma como exigência evangélica da justiça e da solidariedade, sem violência e sem quebra do princípio básico da democracia, que é o estado de direito.

Pesqueira não foi para o novo bispo um início de trabalho pastoral, mas uma continuidade. Seguia com absoluta fidelidade os ensinamentos da Igreja, sem ceder a correntes ideológicas extremistas e nem fazer concessões aos mantenedores do poder econômico. Sabia distinguir os problemas, respeitar e acolher as pessoas, condenar os erros sem estigmatizar as pessoas, sempre em cumprimento de sua missão de pastor de todas as ovelhas. Por isso jamais interrompeu o diálogo com qualquer segmento social, mesmo discordando sem medo de posicionamentos ou práticas políticas que entendesse como estranhos ao evangelho, principalmente após o movimento militar de 1964.

É neste contexto que me permito lançar um olhar sobre o atual momento brasileiro, marcado pela premente necessidade de uma reforma agrária profunda para os agricultores sem terra, constatando, infelizmente, que muitos dos movimentos organizados estão permeados mais de interesses político-partidários, do que propriamente de interesse pelo bem-comum. Neste difícil momento da vida mundial, com uma gigantesca recessão econômica, com o desaquecimento das grandes economias e o alto índice de desemprego em escala mundial e também em nosso país, considero lamentável que aproveitadores políticos de diversos matizes, aproveitem-se das circunstâncias para disseminar o ódio entre as classes sociais, apregoar a violência e até a luta armada entre os proprietários de terra e os “sem terra” rurais ou urbanos, em flagrante desrespeito à lei e ao estado de direito duramente reconquistado em nossa pátria.

Lamentável também que líderes de movimentos radicais, digam-se cristãos e utilizem o nome da Igreja e do seu Magistério, para pregar soluções violentas na implantação dos conflitos sociais como o da posse da terra.

Mais lamentável ainda é que este cenário de conflito já deflagrado, conte com a complacência de altas autoridades do Governo Federal e de diversos governos estaduais, que sorrateiramente apóiam e acobertam invasores de propriedades produtivas levando o pânico e a insegurança à população e, inclusive, ao próprio Governo ao qual servem com duvidoso espírito público.

Por estas razões é válido lembrar neste momento, o exemplo de equilíbrio e de sabedoria do homenageado, que nos difíceis tempos das década de 50 e 60, soube defender intransigentemente a necessidade da reforma agrária, sem jamais apoiar processos revolucionários e antidemocráticos, de que se utilizavam intencionalmente os extremistas, tentando juntar o joio, da luta de classes, como motor da evolução econômica e social da humanidade, ao trigo da mensagem cristã da justiça e da solidariedade.

A doutrina social da igreja, Sr. Presidente, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, que o homenageado seguia com tanta fidelidade, surgiu como corpo doutrinário sistemático, através da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, lançada ao mundo em 15 de maio de 1891. Aquele que foi considerado o papa mais importante do século XIX, preparava a sua Igreja para os desafios do século XX, preocupado com o distanciamento que houvera no início da idade moderna entre a Igreja e a classe trabalhadora.

Considerava Sua Santidade o Papa Leão XIII que “das cousas novas” daquele tempo, surgia como sinal a necessidade de enfrentar a “imerecida miséria” do proletariado industrial, fruto do desenfreado egoísmo do capitalismo selvagem, em busca do lucro e da acumulação de bens. O capitalismo “sem lei e sem limites”, do laissez faire, laissez passer, gerava o confronto entre a classe operária explorada e faminta e os segmentos dos grandes industriais, prósperos e ricos, sendo esta a matéria prima de que se serviu Marx e Engels para já em 1848 lançar o seu Manifesto Comunista.

Ao tempo daquele manifesto, faz sentido lembrar, já existiam na Igreja bispos e leigos desenvolvendo uma releitura da bíblia, em busca de respostas para o problema da injustiça social no mundo do trabalho surgido com a Revolução Industrial. Entre estes líderes, sobressaiu-se o bispo de Mainz, na Alemanha, Emmanuel von Ketteler, que Marx escolheu como alvo dos seus mais ferozes ataques. E na França, retomando as teses corporativistas do início da idade moderna, sobressaiu-se De La Tour du Pin, que daria início também ao sindicalismo cristão.

Mas se pode dizer, numa perspectiva histórica, que as teses de Leão XIII na Rerum Novarum foram sendo aperfeiçoadas, ao longo do tempo, reconciliando a Igreja com a sociedade, sendo o Brasil um exemplo deste cuidado pastoral que nossos bispos tiveram, prestando uma inestimável colaboração para o aperfeiçoamento das instituições públicas de nosso país. E neste aspecto D. Mariano foi sempre um bispo de vanguarda no clero brasileiro.

O núcleo de ensinamentos básicos da primeira encíclica social da Igreja, a Rerum Novarum, após 112 anos do seu lançamento, teve a sua identidade doutrinária conservada e claramente expressa nas encíclicas comemorativas do seu aniversário. Para a Igreja, em síntese, existe uma justiça anterior e superior ao direito positivo, vinda da natureza do homem como ser social e solidário; o bem comum deve ser o princípio norteador da organização da sociedade; a propriedade privada deriva do direito natural, submissa, porém, às necessidades sociais; o trabalho provém da dimensão ontológica do homem e, portanto, tem seu valor acima da materialidade do capital.

Com base nestes princípios, em todas as encíclicas é renovada a condenação formal do capitalismo explorador e desumano e do socialismo ideológico de tendência totalitária, que subordina o homem aos interesses do Estado, da raça ou da classe.

Na encíclica Quadragesimo Anno, o Papa Pio XI condena o capitalismo, como depredador da dignidade humana e o comunismo, como intrinsecamente mau, por secundarizar completamente a liberdade humana. Reafirma Pio XI a necessidade da intervenção legítima do Estado como instrumento regulador das atividades dos cidadãos, necessário para uma justa distribuição dos bens e para o equilíbrio nas relações entre o capital e o trabalho. É aquele papa que introduz na doutrina social da Igreja a concepção do princípio da subsdiariedade, pelo qual o Estado entrega aos cidadãos tarefas sociais, sem renunciar à sua função de reitor da ordem social.

Diante dos massacres humanos ocorridos pelas ditaduras totalitárias do fascismo e do nazismo e do regime stalinista, será o Papa Pio XII em sua rádio-mensagem de 15 de maio de 1941 a levantar a bandeira dos “direitos humanos”, expressão cunhada por aquele pontífice romano, para designar a necessidade de fundamentar a convivência humana no direito natural e para pedir que se instalasse uma nova ordem jurídica internacional. À época surgiram das cinzas da guerra, a esperançosa criação da ONU, em 1945, e a Declaração dos Direitos Humanos em 1948.

Por ocasião dos 70 anos da Rerum Novarum, no dia 15 de maio de 1961, a Igreja já sob o comando do Papa João XXIII, publica a famosa encíclica Mater et Magistra, que traz uma profunda mudança na postura da Igreja em relação à sociedade. Reaproximada da sociedade, coloca-se a Igreja então numa perspectiva de serviço ao mundo, como “Mãe e Mestra de todos os povos, a fim de que no seu seio e no seu amor, todos os homens, através dos séculos, encontrem a plenitude de vida mais elevada...”. Também João XXIII, ao citar a função social da propriedade privada, reassume as posições anteriores, desde a Rerum Novarum, para afirmar:

“O direito de propriedade privada, mesmo sobre bens produtivos, tem valor permanente, pela simples razão de ser um direito natural fundado sobre a prioridade ontológica e final de cada ser humano em relação à sociedade” ( MM, 106 ).

            Alerta, ainda, Sua Santidade para o aspecto de que o direito à propriedade se transforma em escudo de defesa das liberdades humanas, sendo esta condição intrínseca à natureza daquele direito. São suas estas palavras na continuação do já citado item 106 da mesma encíclica :

Além disso, a história e a experiência provam que, nos regimes políticos que não reconhecem o direito de propriedade privada sobre os bens produtivos, são oprimidas ou sufocadas as expressões fundamentais da liberdade.

A doutrina social da Igreja, a partir da Mater et Magistra e da Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, começa a apontar novos caminhos para a justiça no mundo: João XXIII fala em participação dos trabalhadores nas empresas, que é regime de co-gestão da empresa, inclusive com participação nos lucros, como forma de adequar melhor a função do capital ao valor do trabalho. E fala sobretudo na Paz Social, como necessidade evangélica, que tem uma dimensão não apenas local ou nacional, mas também internacional. É este o seu tema da encíclica Pacem in Terris, a Paz no Mundo, que depende de uma relação de justiça entre os povos, sobretudo como dever de justiça dos países desenvolvidos para com os países em desenvolvimento.

Ao sucessor do Papa da Bondade, como ficou conhecido João XXIII, coube um avanço muito grande na compreensão da problemática da justiça social. Na encíclica Populorum Progressio, de 26.03.1967, Sua Santidade Paulo VI assim divulga esta compreensão da Igreja :

“Hoje, o fenômeno importante de que deve cada um tomar consciência é o fato da universalidade da questão social” ( PP, item 3 )

E diz ainda no mesmo texto :

Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida a cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão.

Este grito de angústia do Papa era o eco de suas visitas à América Latina, à África e à Índia.

É sabido que Paulo VI sofria uma forte influência dos filósofos neotomistas, à frente Jacques Maritain, e de sociólogos franceses como o Pe. Lebret, autor do célebre livro de advertência ao mundo, intitulado “Suicídio ou sobrevivência do Ocidente”, sobre a miséria no mundo e sua relação de causalidade com a dependência dos países pobres em relação aos países ricos, com realce para o absurdo dos excessivos gastos militares das grandes potências durante a Guerra Fria.

Paulo VI utiliza a Populorum Progressio para retomar a doutrina sobre o direito à propriedade privada e sua função social, advertindo “que este direito não pode ser exercido em detrimento do bem comum e que cabe ao Poder Público resolvê-lo com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais”. E enfatiza que não haverá justiça social sem o desenvolvimento, em sentido integral, com o crescimento econômico e a equidade entre as classes sociais. Tornou-se célebre a sua mensagem :

Desenvolvimento é o novo nome da Paz.

O que vale dizer : os países precisam crescer, para dar oportunidade a todos os seres humanos de viver com dignidade e assim se estabelecer a Paz.

O Papa João Paulo II enviou aos católicos de todo o mundo, três documentos sobre a questão social : em 1981 a Laborem Exercens, sobre a dignidade do trabalho; em 1987, a Sollicitudo Rei Socialis, sobre as preocupações da Igreja com a justiça social; e a Centesimus Annus, em comemoração ao primeiro centenário da Rerum Novarum, no dia primeiro de maio de 1991.

Na Centesimus Annus, Sua Santidade o Papa João Paulo II reconhece que os meios de produção e o mercado têm um lugar importante como instrumento para destinar recursos e atender necessidades, sempre respeitando o ordenamento jurídico pelo qual o Estado organiza a sociedade preservando o bem comum. Para ele, o capitalismo e o comunismo são intrinsecamente perversos, porque suas raízes antropológicas são materialistas e não respeitam a natureza humana em sua dignidade e no exercício da liberdade. Fala o papa de uma economia social de mercado e da necessidade de uma aplicação rigorosa da justiça social, aperfeiçoada necessariamente pelo mandamento cristão do amor e da solidariedade. Isto implica, segundo João Paulo II numa profunda mudança de cultura, que exige um retorna ao humanismo e à revelação cristã.

Srªs Senadoras, Srs. Senadores, ao sintetizar as linhas mestras da doutrina da Igreja, especialmente na questão do direito de propriedade e dos sistemas econômicos que polarizam a organização da sociedade, pretendo afirmar, como cidadão que acompanhei em parte os trabalhos do bispo Mariano e com eles colaborei quando Secretário de Educação e de Habitação do Estado de Pernambuco, que aquele bispo nordestino jamais se afastou destes princípios e soube, com equilíbrio, coragem e muita coerência orientar gerações de lideranças na luta pela equidade social em nosso país.

E também pretendo mostrar, que muitos extremistas, que hoje pregam a convulsão social como estratégia de conquistas sociais, utilizando-se indevidamente do manto protetor da Igreja, na verdade não guardam sintonia com os ensinamentos, nem com os métodos de agir dos mais autênticos representantes da Igreja em nosso país.

Além do lado profético e que considero o mais notável do nosso homenageado, quero, para concluir, referir-me ao seu trabalho de educador social, entendendo a educação como um processo mais abrangente do que simplesmente a posse de conhecimentos científicos.

Em sua Diocese ele implantou núcleos de alfabetização de adultos, com apoio do MEB e incentivou trabalhos de promoção humana, criando centros sociais em Pesqueira, onde construiu o Centro Social do bairro dos Xucurus e em Arcoverde onde apoiou a paróquia na implantação de uma rede de centros sociais que serviam de apoio a mutirões habitacionais, a creches, escolas, cursos de formação profissional e lavanderias comunitárias. Deu total apoio à expansão da rede escolar pública em prédios diocesanos e fortaleceu e expandiu os colégios diocesanos de Sertânia, Belo Jardim e Arcoverde. Implantou e ampliou a Escola Profissional D.Adelmo Machado em Pesqueira e participou efetivamente da criação e implementação da primeira faculdade da região, a Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde. Conseguiu recursos para construir em Pesqueira uma vila popular que foi modelo na região, experiência depois seguida em grande mutirão de construção de casas no bairro de Santo Antônio em Pesqueira e na Vila S.José em Arcoverde, sob a coordenação dos seus sacerdotes. Foi grande defensor do aproveitamento das águas do rio Bitury, lutando pela construção da barragem que passou a atender o consumo humano de Belo Jardim e cidades vizinhas.

D. Severino Mariano de Aguiar faleceu no dia sete de maio de 1995, em Recife, onde vivera os seus últimos anos de vida, após um período em que voluntariamente se tornou um simples capelão de um bairro popular de Arcoverde. Pode-se dizer que D.Mariano foi um homem plural, um humanista e um grande cristão, dedicado integralmente ao seu povo, sobretudo na pregação em defesa dos mais pobres. Bispo independente, corajoso em suas posições, sempre fiel à doutrina de sua Igreja, que viveu até à morte da forma mais humilde, despojado de todo e qualquer bem terreno. Um homem de paz, de diálogo, de muita fé, de esperança e também de compreensão e de perdão.

Espero, Sr. Presidente, que a comemoração do centenário do bispo Dom Severino Mariano de Aguiar não se restrinja apenas aos aspectos espirituais de sua vida. Desejo que seja também um momento de reflexão, de debates e estudos sobre os nossos compromissos sociais e políticos com a construção da justiça social em nosso país, bandeira que a Igreja no Brasil sempre empunhou com muita dedicação, como forma de resgate da cidadania da multidão de excluídos que infelizmente ainda existem em nossa pátria.

Desejo que se faça também o resgate da função histórica que ele desempenhou no Nordeste, com sua pregação contundente e questionadora sobre o sentido da ação humana na sociedade e na história.

Desejo, ainda, que façamos nossos, os sonhos que aquele bispo sempre acalentou, de ver o Brasil como país próspero para todos, exemplo de sociedade solidamente construída sobre os princípios da justiça e da fraternidade.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/11/2003 - Página 37816