Pronunciamento de Fátima Cleide em 25/11/2003
Discurso durante a 170ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal
Considerações sobre o Dia Internacional para Eliminação da Violência contra a Mulher.
- Autor
- Fátima Cleide (PT - Partido dos Trabalhadores/RO)
- Nome completo: Fátima Cleide Rodrigues da Silva
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
FEMINISMO.:
- Considerações sobre o Dia Internacional para Eliminação da Violência contra a Mulher.
- Publicação
- Publicação no DSF de 26/11/2003 - Página 38638
- Assunto
- Outros > FEMINISMO.
- Indexação
-
- REGISTRO, MOBILIZAÇÃO, DIA INTERNACIONAL, ELIMINAÇÃO, VIOLENCIA, VITIMA, MULHER.
- DETALHAMENTO, FORMA, VIOLENCIA, EXPLORAÇÃO SEXUAL, MULHER, HISTORIA, BRASIL, ESCRAVATURA, INDIO, NEGRO, PROIBIÇÃO, ACESSO, EDUCAÇÃO, POLITICA, VOTO, DISCRIMINAÇÃO SEXUAL, MERCADO DE TRABALHO, REGISTRO, DADOS, AGRESSÃO.
- NECESSIDADE, MOBILIZAÇÃO, CONGRESSISTA, DEFESA, CIDADANIA, MULHER, REGISTRO, DADOS, RESULTADO, LUTA, FEMINISMO.
- HOMENAGEM, MULHER, VULTO HISTORICO, LUTA, FEMINISMO, LEITURA, OBRA LITERARIA, AUTORIA, CORA CORALINA, ESCRITOR.
A SRª FÁTIMA CLEIDE (Bloco/PT - RO. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, hoje, 25 de novembro, é o Dia Internacional contra a Violência sobre a Mulher.
Mulheres de todo o mundo, organizadas em movimentos sociais, partidos políticos, agremiações, clubes, associações, cooperativas, núcleos de pesquisa e no mundo das artes, relembram a passagem deste dia hoje, que é um dia de luta.
A proposta de marcar 25 de novembro como o dia de combate à violência praticada sobre a mulher surgiu no I Encontro Feminista Latino-Americano do Caribe, realizado em 1981, em Bogotá, na Colômbia.
Essa data foi escolhida porque, em 25 de novembro de 1960, na República Dominicana, durante a ditadura de Trujillo, as irmãs Mirabal, Minerva, Patrícia e Maria Tereza foram brutalmente torturadas e assassinadas.
Desta forma, da década de 80 para a frente, a data se consagrou como uma das mais importantes no calendário dos movimentos feministas e de mulheres que se organizam de diferentes formas - debates, manifestações, encontros, cartazes, folhetos, passeatas - para dizer: Basta de violência contra as mulheres!
Quero aqui, Srªs e Srs. Senadores, registrar a passagem deste dia fazendo um resgate da violência de toda ordem de que as mulheres brasileiras são vítimas há mais de cinco séculos.
A história nos conta que o encontro entre os conquistadores europeus e as populações que habitavam o litoral brasileiro, em 1500, relegou as mulheres a um destino trágico e humilhante: milhares de mulheres indígenas daquele tempo longínquo foram tragadas pela violência patrocinada pelo processo de colonização. Durante muito tempo, centenas dessas mulheres foram vítimas de exploração sexual dos europeus e tornaram-se escravas das cortes européias.
Tempos depois, o regime escravista não foi menos cruel com mulheres e homens negros, ambos vindos da África para a América. No Brasil, o regime que manchou a nossa história deu ao sexo feminino de cor negra as funções de “amas-de-leite”, “quituteiras”, “prostitutas”, “escravas de ganho” e “domésticas” - uma dívida social que o Brasil ainda deve à raça negra. Como bem lembrou o Presidente Lula, em seu discurso pela passagem do Dia da Consciência Negra, os negros brasileiros sofrem há tantos séculos devido à “inércia branca”.
Sabemos, também, que por muito tempo as mulheres brasileiras de todas as raças e etnias foram proibidas do acesso à escola, assim como, por muitos séculos, elas foram excluídas de um direito cívico: o exercício do voto.
Ainda fazem parte da vida social brasileira certas práticas de exclusão das mulheres que se traduzem em violência, como, por exemplo, a diferença de salário entre trabalhadoras e trabalhadores na mesma função, no mercado de trabalho, assim como ainda paira sobre as cabeças masculinas uma enorme dificuldade quando se trata de reconhecer competências, habilidades e capacidades femininas na vida profissional, para a ascensão destas a cargos de chefia e de direção, seja na esfera pública seja na privada.
Em tempos mais recentes, os processos de globalização, de integração de mercados e a chamada reestruturação produtiva também têm agravado fortemente a situação das mulheres trabalhadoras, que estão perdendo direitos sociais, coletivos e trabalhistas.
Mas há uma violência mais evidente: estudando a violência que é praticada contra as mulheres em nosso tempo, a pesquisadora feminista Heleieth Saffioti escreveu um dia que: “...no meio animal não racional, nós não temos o que encontramos entre os seres humanos, que é a transformação da agressividade em agressão”.
A agressão, Srªs e Srs. Senadores, é o mal do qual são vítimas milhares de cidadãos e cidadãs deste País, nos últimos tempos. Os noticiários de cada dia nos mostram cenas terríveis, fruto da violência urbana que afeta a todos nós.
Mas neste contexto, Srªs e Srs. Senadores, é preciso fazer um recorte, para falar especificamente sobre a violência contra a mulher. A violência sexista, ou a violência de gênero é um problema social mundial ligado ao poder, ao privilégio e controle masculinos e atinge mulheres de todas as classes sociais, nível de escolaridade, raça, etnia, credo, nacionalidade, orientação sexual ou condição social. Como bem destacou Heleieth Saffioti: “A violência contra a mulher é o fenômeno mais democrático que existe”.
Concordo com a escritora, pois a violência que afeta as mulheres tem muitas caras. As mais evidentes são as ofensas, humilhações, deboches, chantagens, beliscões, tapas, empurrões, chutes, socos, contato físico não desejado, tráfico, exploração sexual, espancamentos e assassinatos.
Mas essa modalidade de violência vai bem mais além. Quando nós, mulheres, discutimos em nossas organizações o conceito de gênero, compreendemos com mais facilidade o fenômeno da violência contra a mulher.
O conceito de gênero refere-se às relações entre mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens. Melhor dizendo, trata de todas as relações em que há desigualdades, fazendo com que algumas pessoas tenham mais poder sobre outras; logo, fazendo com que aquelas sejam consideradas mais importantes e respeitadas na sociedade, além de fazer com que aquelas também tenham mais liberdade e mais oportunidade de se desenvolver.
Neste contexto de desigualdades, Srªs e Srs. Senadores, a violência de gênero - que vai permeando a vida das mulheres - passa da violência física para a moral, social e psicológica, como, por exemplo, a discriminação no ato da admissão de mulheres para o trabalho, cantadas de chefes, não-promoção de mulheres para cargo de chefia e a ainda existente desigualdade salarial.
No Brasil, a violência doméstica ou intrafamiliar ainda não está totalmente dimensionada. Foi no final da década de 80 que o IBGE constatou que 63% das vítimas de agressões físicas, ocorridas em espaço doméstico, eram mulheres.
Também já está comprovado que o País perde 10,5% do seu Produto Interno Bruto com essa modalidade de violência, pois de acordo com dados estatísticos mais recentes, a cada minuto uma mulher é agredida em seu próprio lar, pelo seu marido, companheiro ou amante.
No meu Estado, em Rondônia, só este ano, as sete Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres registraram, de janeiro a setembro, 4.592 casos de violência contra mulheres, incluindo-se aí calúnia, difamação, injúria, constrangimento ilegal, perturbação do trabalho e do sossego, violação de domicílio, lesão corporal, espancamento, estupro e ameaças de morte, entre outras práticas.
Quero aqui registrar o nome de algumas das vítimas no meu Estado: Milene Carvalho, 18 anos, assassinada pelo pai; Marli Ribeiro, 24 anos, assassinada a pauladas em casa, na frente do filho de 2 anos, em Porto Velho; Janete do Amaral, incendiada pelo ex-namorado, juntamente com seu filho de 1 ano e 8 meses, quando o amamentava, em Porto Velho; Nilda Araújo, 31 anos, policial rodoviária federal, assassinada pelo ex-marido, também na presença do filho; Ernilce Garcia Feitas, assassinada pelo companheiro; Célia Maria dos Santos, assassinada por Marcos Antônio Ribeiro dos Santos, em um final de semana; Valdete Alves, 18 anos, líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no acampamento Zumbi dos Palmares, em Nova União, Rondônia, foi assassinada pelo ex-namorado. Sua ossada foi encontrada seis meses depois do desaparecimento.
Existem milhares de outros casos, Srªs e Srs. Senadores, que não mereceram registro da imprensa, que certamente não foram denunciados, casos de mulheres martirizadas que no anonimato escondem seu medo, sua dor.
Situada em área de fronteiras, Rondônia é alvo dos crimes de tráfico de mulheres, a maioria delas ainda na fase da pré-adolescência, incluídas aí mulheres indígenas.
Não quero aqui ser ufanista ou panfletária, tampouco pretendo santificar as mulheres e crucificar os homens. Quero, sim, num clima de fraternidade, companheirismo e responsabilidade, chamar a atenção de todos nós, Senadores e Senadoras, para esse mal público que diz respeito diretamente a nós, legisladores, que aqui nesta Casa política representamos todos os brasileiros e brasileiras.
Meu apelo é por cidadania para as mulheres. Por isso mesmo quero, aqui e agora, fazer nossas as falas de centenas de mulheres e dizer que a violência contra elas não é um problema de ordem privada, mas eminentemente de caráter social e de ordem pública, que afeta o bem estar, a segurança, as possibilidades de educação e desenvolvimento pessoal e auto-estima das vítimas.
Assim sendo, entendo que precisamos estabelecer nesta Casa de Leis uma agenda mais robusta, voltada para a discussão e a análise dos direitos efetivos de cidadania das mulheres, e não apenas uma agenda alusiva às datas das suas organizações. Só assim a outra metade da população brasileira poderá conquistar mais políticas públicas de superação dos abusos e desigualdades com prevenção, sanção e erradicação da violência de gênero e o fim de todas as discriminações.
Por oportuno e por uma questão de justiça, devo registrar que, antes de ser conduzida para cá, acompanhava esta Casa de Leis com bastante atenção e posso testemunhar que ela tem se colocado como o poder do Estado que mais demonstrou sensibilidade diante da luta pela cidadania das mulheres e pela eqüidade nas relações de gênero. Isso mostra seu caráter democrático e seu compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e mais humana.
Também quero testemunhar que é muito bom poder dizer hoje, desta tribuna, que nós, mulheres brasileiras, avançamos muito e que, diferentemente de séculos passados, as mulheres brasileiras de nosso tempo não apenas freqüentam escola; elas são hoje milhares de professoras, escritoras, poetisas, pesquisadoras intelectuais, jornalistas, empresárias e políticas.
É alentador, Sr. Presidente, registrar que, se na Constituinte de 1890 às mulheres de meu País foi negado o direito ao voto, na Constituição de 1934 esse direito cívico foi garantido.
Na atual Constituição Federal, as mulheres conquistaram a igualdade de direitos e deveres entre mulheres e homens na sociedade, inclusive na sociedade conjugal, o reconhecimento como chefe de família e a proteção familiar.
Assim cabe o registro de que, graças a mudanças havidas na mentalidade social, somos pouco mais de 10% de representantes políticas nesta Casa Legislativa. Mas ressalto que ainda precisamos ser mais, muito mais, para que tenhamos, enfim, a igualdade e a eqüidade de gênero, principalmente nos espaços de poder e de decisão.
Cabe registrar, todavia, que nenhuma dessas conquistas foi dádiva, mas sim fruto de muita luta das mulheres pela igualdade de direitos e oportunidades. Foram os movimentos feministas e de mulheres em todo o País que contribuíram para esses avanços históricos.
Faço parte de um grupo de feministas que há mais de uma década reivindica a cidadania plena das 671.647 mulheres que nasceram, migraram, vivem, produzem riquezas e reproduzem vidas humanas no meu Estado, Rondônia.
Fincado no coração da Amazônia, Rondônia é um dos cenários de disputas sociais, econômicas e políticas, dadas as suas potencialidades e riquezas. Foi lá que nasci e é lá que tenho orgulho de lutar, incansavelmente, para que meu Estado seja reconhecido como uma estrela importante na constelação federativa do País. Por isso mesmo, sempre que tenho oportunidade, digo em voz alta que “Rondônia merece respeito”. E hoje mesmo, ainda desta Casa, direi porque estou falando isso.
E é por conta de todas as conquistas das mulheres de meu País, de meu Estado e de minha cidade que realço, mais uma vez, desta tribuna, que cabe a nós, representantes legítimos de cidadãs e cidadãos brasileiros, o empenho maior na temática de gênero.
Permito-me aqui usar a fala de todas as mulheres para pedir um basta à violência da qual elas são vítimas e faço uma homenagem às valorosas mulheres que saíram de detrás dos panos para fazer a história mais bela de sabedoria, coragem, resistência e determinação que todos nós sabemos e conhecemos.
Faço homenagens a algumas mulheres, que são:
Marie Olimpe de Gouges, atriz, poetisa e teatróloga, uma das mulheres mais marcantes da Revolução Francesa. Fundou vários “clubes femininos”, defendeu a participação das mulheres em igualdade de condições com os homens, o acesso à educação, o direito ao divórcio. Lutou com idéias e com palavras. No entanto, como tantas outras personagens femininas da Revolução Francesa, foi ridicularizada, contestada, reprimida e perseguida. Porém, Marie teve fim mais cruel: foi julgada pelo tribunal revolucionário e guilhotinada em novembro de 1793.
Rosa Luxemburgo, mulher, judia e revolucionária, deixou sua grande contribuição para a libertação das mulheres de todo o mundo. Durante sua trajetória de luta por um mundo socialista, com o traço da rebeldia, Rosa sonhou unir “amor e trabalho e almas e mentes”.
Olga Benário - mulher de um saudoso defensor do povo brasileiro, Luiz Carlos Prestes - foi extraditada pelo Brasil à Alemanha hitleriana e encarcerada em Berlim, com sua filha recém-nascida, em uma prisão da Gestapo. Foi morta em um campo de concentração nazista.
Nízia Floresta ou Dionísia Gonçalves Pinto - abolicionista, feminista e escritora nascida em Papari, Rio Grande do Norte, no século XIX - foi por muito tempo escondida, mas ficou finalmente conhecida por sua luta em defesa dos direitos das mulheres. Nízia deixou a nós um vasto legado literário sobre a condição das mulheres de diversas culturas antigas.
Bety Lobo - feminista, estudiosa e defensora das questões da mulher - morreu em acidente automobilístico, quando retornava de uma viagem que fez a João Pessoa, na Paraíba. Bety dizia que “a classe trabalhadora não tem sexo”.
Bete Gomes, jornalista que fazia assessoria de imprensa ao PT e a Lula, morreu em acidente automobilístico, em São Paulo.
Ângela Braga, historiadora e ativista feminista, morreu vítima de ataque cardíaco. Foi uma das militantes do Partido dos Trabalhadores carioca que integrou a Direção Estadual e a Subsecretaria Nacional da Mulher do PT. Em um de seus artigos, ela escreveu: “À mulher foi negado tudo que parecesse independência”.
Maria Margarida Alves, líder rural, foi assassinada em 1983, em Alagoa Grande, na Paraíba, em sua casa, porque praticava um pecado: lutar para que seus irmãos conterrâneos tivessem direito a um pedaço de terra.
A menor Vanessa, uma criança de apenas nove anos, morreu no conflito de Corumbiara, em Rondônia, ocorrido em 1995, em meio à luta pela posse de terra.
Por fim, faço uma última homenagem a minha mãe, Rita Rodrigues, uma mulher simples que soube dar a seus seis filhos uma lição de vida, lição esta que marca minha trajetória pessoal e política.
Encerro este registro da passagem do 25 de novembro, Dia Internacional de Luta contra a Violência à Mulher, oferecendo a todas as mulheres públicas e anônimas, protagonistas da história de luta por um mundo possível, com amor, paz e igualdade entre os seres humanos, a poesia “Todas as Vidas”, de nossa saudosa e grande poetisa Cora Coralina, que diz:
Todas as Vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
De mau-olhado,
Acocorada ao pé do borralho,
Olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
A lavadeira do rio vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
Pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
A mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
A mulher do povo.
Bem proletária.
Desabusada, sem
Preconceitos,
de casca grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
A mulher roceira.
Enxerto da terra,
Meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
A mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Tão desprezada,
Tão murmurada...
Fingindo alegre seu
Triste fardo.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida
a vida mera das
obscuras.
Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.
Muito obrigada.