Discurso durante a 176ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Defesa de um amplo debate em torno da reforma do judiciário.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA JUDICIARIA.:
  • Defesa de um amplo debate em torno da reforma do judiciário.
Publicação
Publicação no DSF de 05/12/2003 - Página 40091
Assunto
Outros > REFORMA JUDICIARIA.
Indexação
  • ANALISE, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, PREVISÃO, REVISÃO, APERFEIÇOAMENTO, NECESSIDADE, DEBATE, REFORMA JUDICIARIA, CONGRESSO NACIONAL.
  • DEBATE, PROPOSTA, CRIAÇÃO, CONTROLE EXTERNO, COMBATE, IMPUNIDADE, JUDICIARIO, MINISTERIO PUBLICO, IDENTIFICAÇÃO, INEFICACIA, PROPOSIÇÃO, DEFESA, AUMENTO, PUBLICIDADE, CONSELHO DE JUSTIÇA, ORGÃO ESPECIAL, INSTITUCIONALIZAÇÃO, OUVIDOR, RECEBIMENTO, QUEIXA, RECLAMAÇÃO, MEMBROS, PODERES CONSTITUCIONAIS.
  • ANALISE, DEMORA, JUSTIÇA, DEFESA, AMPLIAÇÃO, NUMERO, ORGÃO JUDICIAL, JUIZ, ATUALIZAÇÃO, LEGISLAÇÃO PENAL, DEBATE, EFEITO VINCULANTE, NECESSIDADE, LIMITAÇÃO, OBRIGATORIEDADE, RECURSO JUDICIAL, ADMINISTRAÇÃO PUBLICA.
  • DEFESA, MELHORIA, CRITERIOS, ADMISSÃO, CARREIRA, MAGISTRADO, INCENTIVO, FORMAÇÃO, ESTUDO, APERFEIÇOAMENTO, BENEFICIO, QUALIDADE, JUSTIÇA.

O SR. AMIR LANDO (PMDB - RO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há mais de uma década vive o País sob a égide das reformas constitucionais. De resto, mal tinha sido votada a Constituição de 1998, já se falava da necessidade de rever a Lei Fundamental brasileira.

Foi prudente e sábio o constituinte de então ao expressamente prever a possibilidade de revisão do texto, que se processaria a partir do quinto ano da respectiva vigência (art. 3º do ADCT). Tratava-se do explícito reconhecimento de que nem todas as questões haviam recebido disciplina definitiva. Passado um período de experiência, abria-se a oportunidade para a adequação do diploma às necessidades contemporâneas.

Nunca é demais lembrar que a decisão última sobre aspectos cruciais da vida pública nacional, como a forma (república ou monarquia constitucional) e sistema de governo (presidencial ou parlamentar), foram remetidas para o plebiscito popular (art. 2º do ADCT).

Alguns críticos apressados pretenderam identificar, nestas manifestações e previsões normativas do texto promulgado pela Constituinte, sua total incompatibilidade com as exigências dos tempos presentes. Seria ele por demais analítico, estaria a garantir direitos incompatíveis com a realidade, teria criado obstáculos desnecessários à evolução da sociedade. 

São considerações que sempre vêm à baila por parte daqueles que tiveram as suas opiniões ou interesses contrariados.

O fato é que tivemos um processo democrático de reconstitucionalização nacional, um grande avanço no reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais, uma previsão de amparo social jamais vista na nossa história republicana, um aperfeiçoamento dos mecanismos de moralização e controle da administração pública, o reconhecimento de uma posição altiva para a instituição a quem a sociedade conferiu a missão de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

A Constituinte de 1988 fez um trabalho meritório e a história certamente a reconhecerá como um marco do avanço democrático. Aqueles que, impensadamente, açodaram a abertura do processo revisional é que não souberam escolher o momento propício para a abertura destes trabalhos, que acabaram por redundar em nada.

Faço essas considerações introdutórias, antes de abordar o tema sobre o qual pretendo discorrer, por um lado, para deixar claro que não me alinho entre aqueles que querem fazer tabula rasa de todo o ordenamento jurídico edificado a partir de 1998 e, por outro lado, para alertar para o perigo que pode representar para a estabilidade institucional adentrarmos, de forma açodada e sem uma profunda análise do que se pretende e porque se pretende, reformas constitucionais que tocam a própria estrutura do ordenamento vigente. Refiro-me, especificamente, à tão propalada reforma do Poder Judiciário, que parece assumir crescente vulto político no cenário nacional contemporâneo. Acrescente-se que, dita reforma, nos termos em que se encontra tramitando no Senado afeta, por igual, ao Ministério Público.

Se é verdade que o Congresso Nacional não pode ficar alheio às aspirações da sociedade, às críticas que se repetem sobre o funcionamento das instituições, às necessidades de aprimoramento e atualização dos mecanismos que nos governam, não é menos verdade que o processo de elaboração e formulação das inovações deve ser precedido de uma cuidadosa e aprofundada avaliação das causas ensejadoras do mal funcionamento do aparato estatal. Somente a partir de um diagnóstico preciso, claro e objetivo será possível cogitar das alternativas inovadoras que melhor atendam ao interesse público.

Seria extremamente perigoso passarmos a votar uma reforma abrangente, do Judiciário e do Ministério Público, sob a convicção, levianamente formada a partir de fatos isolados, de que a magistratura e os promotores, como um todo, são inoperantes, incompetentes, desidiosos, inescrupulosos ou, o que é pior de tudo, desonestos.

Não se pode julgar e condenar o todo pela falha cometida por alguns.

São juízos desta ordem que levam alguns segmentos a imaginar que a solução de todos os males está na criação e implementação de um mecanismo que, sendo célere e eficaz e sobrepondo-se às funções judicante e de fiscal da lei, tenha competência para investigar, afastar, julgar e punir titulares destas relevantes funções públicas.

Trata-se da mesma postura primária e inconseqüente que leva alguns a defender a pena de morte como única solução para combater eficientemente a criminalidade e a violência.

Diz-se que a Justiça é lenta, e é verdade; diz-se que há decisões esdrúxulas, e é verdade; diz-se que há abuso no exercício de poderes e prerrogativas, e é verdade; diz-se que há desvios de conduta, e é verdade. O que não se pode é admitir, a partir de algumas constatações, é que categoria dos magistrados e procuradores é desidiosa, arbitrária, incompetente ou desonesta, passando a legislar pensando apenas nos mecanismos de repressão ou enquadramento funcional.

O Congresso Nacional pode e deve assumir o papel que lhe cabe na condução dos debates em torno do tema.

A omissão ou a passividade seria a pior das posturas no presente momento. Em primeiro lugar, porque estaria a contribuir para o desprestígio e a descrença popular nos Poderes constituídos. Em segundo lugar e como conseqüência direta, dar-se-ia um abalo na consciência coletiva quanto à imprescindibilidade do Estado de Direito, abrindo espaço à disseminação de idéias autoritárias ou ditatoriais. Finalmente, em terceiro lugar, porque a situação expõe negativamente o Brasil aos olhos do mundo, prejudicando a nossa imagem num universo cada vez mais globalizado e dando azo a pretensões hegemônicas que se arvoram o direito de imiscuir em assuntos relevando da estrita competência soberana brasileira.

Tal é a relevância do tema para o futuro do nosso País que creio oportuno e necessário, neste ponto, até mesmo a fim de balizar propostas futuras, ressaltar o papel e a importância da missão institucional do Poder Judiciário.

Na esteira das grandes conquistas da civilização, a coletividade nacional estruturou o Estado brasileiro com os objetivos fundamentais de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais; enfim, com o propósito maior de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação (CF, art. 3º).

E, para que estes elevados propósitos pudessem ser alcançados num clima de paz e segurança, adotou-se a tradicional fórmula de tripartição dos Poderes ou funções do Estado (CF, art.2º), atribuindo-se a cada um competência específica, própria e indelegável, a ser exercitada de forma independente, embora de forma harmônica com os demais.

É sobre esta matriz de princípios que se estrutura o Estado, que se quer de Direto, porque nele a autoridade, como qualquer um, está sujeita à observância do império da lei, e Democrático, porque tanto a norma jurídica como o exercício do poder têm seu fundamento e legitimidade na vontade popular (CF, art. 1º e parágrafo único).

O Judiciário, notadamente por seu órgão de cúpula, é o guardião da Constituição (CF, art. 112) e, a este título e por via de conseqüência, é-lhe atribuída, em última instância, a missão de velar pela incolumidade da soberania, da cidadania e dos demais valores e princípios que presidem a ordem republicano-representativa.

Em atenção ao princípio da separação das funções estatais, quem julga há de estar eqüidistante das partes. Por isto, a defesa dos direito difusos, da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis é acometida ao Ministério Público, que demanda e age em nome da sociedade (CF, art. 127).

O exercício pleno e eficaz destas competências só pode se dar num contexto onde a independência dos agentes públicos é garantida por prerrogativas funcionais, que não podem ser confundidas com privilégios nem favores de índole pessoal.

Tão relevantes e fundamentais são estes princípios que o Constituinte os erigiu em cláusula pétrea, portanto inalteráveis até mesmo por emenda constitucional (CF, art. 62 parágrafo 4º).

Delineados os contornos da ordem democrática que nos rege, vejamos quais são as críticas dirigidas às instituições envolvidas com a prestação jurisdicional, bem como as principais medidas aventadas para sanar os males.

Em primeiro lugar, diz-se que, tanto no Judiciário como no Ministério Público, campeia a impunidade, sendo os vigentes mecanismos repressores de condutas ilícitas incapazes de punir os desvios funcionais praticados pelos integrantes das carreiras. Por isto, aventa-se a idéia de criar um instrumento de controle externo, vale dizer, uma instituição fora das instâncias vigentes para investigar, processar e punir ilícitos praticados por agentes destas carreiras. Na esteira deste raciocínio, juízes e promotores, se sentindo vigiados e sujeitos a uma instância, investigadora e punitiva, superior e externa, tenderiam a pautar suas condutas pelos preceitos da ética e da moral.

Sem entrar no mérito da proposta, a primeira indagação que me assalta é a seguinte: ou bem a instituição de controle externo assumirá contornos de autêntico Poder, independente dos demais, e proferirá decisões definitivas e irrecorríveis, ou, então, será uma instância autônoma, mas não independente, podendo ter os seus julgados revistos pelo Poder Judiciário.

Creio que a primeira formulação afrontaria, direta e literalmente, ao disposto no artigo 5º, item XXV, da Lei Maior que estatui: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se, inquestionavelmente, de garantia individual e, portanto, de cláusula pétrea insuscetível de ser suprimida ou restringida.

Já a segunda formulação não esbarraria no óbice constitucional apontado, mas, no fundo, não alteraria a essência das coisas porquanto o magistrado que viesse a ser processado e julgado pelo novo órgão poderia, sempre, recorrer ao Judiciário, cabendo a este a última palavra. A indagação que surge, nesta hipótese, é a seguinte: qual a valia e sentido prático de criar-se mais um mecanismo institucional cujas decisões poderão ser revistas pelo Judiciário?

Há quem defenda a idéia da criação de um Conselho Nacional de Justiça - e de um Conselho Nacional do Ministério Público - a exemplo do que consta da Proposta de Emenda Constitucional ora tramitando no Senado Federal. No fundo, esta iniciativa pouco muda o estado de coisas vigente. A uma porque a maioria dos membros do colegiado é de integrantes da própria carreira - o que não atende às expectativas daqueles que julgam necessário ser o Poder controlado “de fora” para evitar o corporativismo -, e, em segundo plano, porque não impedirá o recurso à instância jurisdicional, que terá, sempre, a última palavra.

Os defensores desta proposta contentam-se com o singelo e duvidoso argumento de que ela garantirá uma maior transparência na investigação, processamento e eventual punição dos agentes faltosos. Mas será isto o suficiente? E mais, será que, apenas para garantir transparência em procedimentos que tais, é necessário fazer uma reforma constitucional? Será que a opinião pública não se sentirá frustrada quando se der conta que, no fundo, tudo continuou na mesma? Não seria melhor, de vez por todas, reformar os Conselhos de Justiça e Órgãos Especiais, já existentes, transformando-os em entes abertos e expostos ao crivo da consciência popular, com a simples providência de neles implementar o princípio constitucional da publicidade? Por que não se cogitar da idéia de institucionalizar, entre nós, a figura do “ombudsman”, não só para receber queixas e reclamações contra membros do Judiciário, mas de todos os Poderes constituídos?

Com relação ao assunto, creio ser de fundamental importância para a preservação da autoridade moral e do prestígio do Poder Judiciário que se abra o debate sobre os critérios e exigências, não só para o provimento dos cargos iniciais da carreira e promoções subseqüentes, mas, sobretudo, no que diz respeito à investidura nos Tribunais e Cortes Superiores.

Fatos recentes lamentáveis, e que, a justo título, assumiram características de escândalo para a opinião pública, não devem ser tomados como sendo a regra geral, nem servirem de pressupostos para a formulação de propostas de reforma da instituição judiciária. Estar-se-ia legislando sobre falsas premissas e o resultado seria frustrante para todos.

O combate à corrupção, à improbidade, ao enriquecimento ilícito e a toda forma de delito contra a administração pública deve ser objeto de iniciativas outras, tais como o severo controle sobre a acumulação patrimonial, fluxos financeiros, mecanismos de lavagem de dinheiro, remessa de valores para o exterior, emprego de testas de ferro, atividades em paraísos fiscais e outras do gênero. Em suma, tanto para prevenir como para reprimir, é indispensável que sejam aprimorados os meios de investigação e criados instrumentos permanentes de vigilância. Nesta seara, o móvel do crime é sempre a busca da riqueza rápida e fácil. Inviabilizada esta, naturalmente haverá a drástica redução das condutas reprováveis. 

A segunda ordem de críticas diz respeito à morosidade da Justiça. De fato, para desespero das partes e descrença no direito, os feitos se arrastam por anos a fio nos tribunais. Novamente, não podemos passar a uma conclusão apressada no que diz respeito ao remédio a ser adotado. A imensa, a esmagadora maioria dos magistrados está assoberbada de processos e, nem por isto, deixam de dar a celeridade possível às causas que lhes são distribuídas. Não é por desídia ou desleixo que prazos nem sempre podem ser cumpridos.

Neste particular, a primeira medida a ser cogitada tem a ver com a ampliação do número de órgãos judicantes. A relação juiz por habitante, no Brasil, é infinitamente inferior à de qualquer outro país civilizado. Nos grandes centros, a situação é dramática, estando, por exemplo, a pauta de audiências tomada por meses e, às vezes, por mais de um ano.

A segunda medida a ser implementada diz respeito à alocação de meios materiais e humanos compatíveis com as necessidades. Chega a ser dramática a situação em que trabalham alguns juízes, faltando-lhes praticamente tudo e, não raro, tendo que prover o essencial às suas próprias expensas.

Os aspectos que venho de abordar, obviamente, não dependem de reformulação constitucional, mas de disponibilização de verbas.

A atualização das leis processuais é outro tópico que se faz necessário enfrentar, tanto no campo cível como na esfera penal. Seria possível dar mais ênfase aos princípios da oralidade e da concentração dos atos processuais, sem prejuízo para a segurança das partes.

Muito se fala sobre a súmula vinculante e a súmula impeditiva de recursos. No primeiro caso, para obrigar juízes e instâncias inferiores a decidir segundo a jurisprudência consolidada pelo Supremo; no segundo caso, para autorizar o não conhecimento de apelos contra decisões que contrariem o entendimento consolidado em súmulas.

Relativamente à súmula vinculante, existem graves objeções que vêm sendo levantadas, notadamente pelo prejuízo que poderia acarretar para a evolução da construção jurisprudencial. De fato, o direito não é estático. Ele acompanha o fenômeno social e as mutações de valores que, inexoravelmente, ocorrem. Como exigir que os juízos inferiores, precisamente aqueles que mais contato têm com os problemas sociais, pautem obrigatoriamente as suas decisões por entendimentos vetustos? 

Quanto à sumula impeditiva de recursos, merece o assunto detida atenção de sorte a que, se vier a ser introduzida, não acabe por se transformar em mecanismo impeditivo da plena prestação jurisdicional. Na vida, nada é irreversível, a não ser a morte. Assim é que se torna necessário idealizar um mecanismo que, impedindo o recurso protelatório, não impeça a revisão de entendimentos que se revelem ultrapassados.

Fato relevante e ao qual não se tem dado a devida atenção é que a vasta maioria dos recursos que chegam aos Tribunais Superiores e ao STF envolve a Administração Pública. As procuradorias são, por força de ofício ou em virtude de decisão superior, obrigadas a recorrer sistematicamente, mesmo sabendo do insucesso da tese. E assim ocorre porque o Poder Público, que já não consegue satisfazer a contento as suas obrigações relativas a precatórios, procura protrair indefinidamente uma solução que sabe lhe será desfavorável. Uma providência saneadora neste campo independe de reforma constitucional e poderá ser altamente eficaz para descongestionar as instâncias recursais. 

A terceira ordem de críticas ao Poder Judiciário diz respeito à qualidade da prestação jurisdicional.

Para sanar este mal, que não é tão grave e disseminado como se propala, caberiam dois tipos de iniciativa. A primeira, já aventada, relativa ao aprimoramento dos critérios de provimento inicial na carreira e posteriores promoções. A segunda, de natureza funcional e administrativa, refere-se ao incremento dos centros de formação, estudo e aprimoramento. Seria de se cogitar, também, da possibilidade de introduzir um período sabático, a cada determinado lapso de tempo, de tal sorte que, desobrigado das atribuições judicantes do dia a dia, pudesse o magistrado atualizar conhecimentos e aperfeiçoá-los.

Vê-se que o tema do aprimoramento da instituição judicial é bem mais amplo e complexo do que à primeira vista dão a entender as análises superficiais e preconceituosas. Vê-se, também, que estaríamos a incidir em imperdoável equívoco se passássemos a votar de afogadilho uma proposta de reforma que sofre críticas várias e de diversos setores da sociedade. Quando se aprecia uma questão sob o impacto de um fato escandaloso ou de grande repercussão junto à opinião pública, há sempre a tendência de perder a visão do todo, a compreensão maior do contexto em que se insere.

Assim está a ocorrer no tocante à reforma do Judiciário. Não podemos perder de vista que o propósito maior, nesta matéria, é, e será, lograr-se o aperfeiçoamento institucional de tal sorte que a prestação jurisdicional se dê de forma imparcial, célere e com segurança.

No passado recente, tivemos um movimento de reforma, desta vez no âmbito do Executivo, que levou à criação das, assim chamadas, agências reguladoras. 

A premissa era de que o Estado só poderia exercitar eficientemente a sua capacidade regulamentar e fiscalizadora das atividades concedidas e dos serviços de interesse público, se viesse a instituir entes dotados de autonomia funcional e administrativa em face do Poder Executivo. O mau funcionamento do aparato estatal, neste particular, seria devido às nefastas influências políticas decorrentes dos critérios então adotados para provimento dos cargos de direção das autarquias.

Foram, então, criadas as agências, tendo os seus diretores mandatos fixos, não coincidentes com o mandato presidencial, de sorte a permanecerem imunes às influências políticas. Como garantia suplementar da não ingerência nas suas atividades, idealizou-se o contrato de gestão como instrumento tutelar das relações entre o Executivo e a agência.

Passados poucos anos, dá-se conta a sociedade de haver laborado em equivoco ao reestruturar a administração em tais moldes. As decisões destes órgãos, que supostamente seriam pautadas por critérios técnicos, entraram em conflito com as aspirações da coletividade. O Executivo, que tem uma responsabilidade política em face do eleitor, viu-se impossibilitado de agir quando tarifas e preços foram abusivamente majorados. Coube, então, ao Ministério Público demandar em nome do interesse da sociedade e ao Judiciário prestar a tutela devida para amparar legítimas pretensões.

Este fato contemporâneo é revelador do perigo e das conseqüências nefastas que podem advir de legislar-se a partir de falsas premissas, ou tendo como base idéias preconceituosas. À época, de tanto ser alardeada a excelência do estado mínimo e a inépcia do poder público, acabou por firmar-se a convicção de que a solução do impasse estaria na garantia da autonomia e independência dos entes responsáveis pela regulamentação e fiscalização das atividades e serviços de interesse público. Hoje todos vêm que trabalhados sobre um pressuposto falacioso.

Que o mesmo equívoco não venha a presidir a reforma do Judiciário.

Recente pesquisa encomendada pela OAB revela que 47% da população acredita na Justiça brasileira, e 41% não. Mas, essa mesma pesquisa revela, também, o grau de desinformação que paira a respeito do assunto: 50% dos entrevistados não souberam dizer qual a diferença entre um advogado e um promotor público; 39% não conseguiram diferenciar o advogado do juiz; e 57% não souberam identificar a diferença entre a função judicante e as atribuições dos membros do Ministério Público.

Não obstante este elevado grau de ignorância sobre aspectos elementares do tema, 88% acreditam que a reforma do Judiciário precisa ser aprovada com urgência.

Creio que, no momento, o papel que cabe ao Congresso Nacional é o de assumir a liderança do processo de amplo debate e discussão em torno da matéria, convocando, não só os segmentos representativos da magistratura e do Ministério Público, mas, também, os dos advogados, procuradores, defensores públicos, serventuários, a sociedade civil e os centros de estudo e pesquisa das universidades. Só assim poderemos ter um diagnóstico amplo e objetivo dos males e dos impasses enfrentados, assim como das alternativas aventadas para superá-los. 

Creio que este é o primeiro passo para colocar uma agenda positiva na temática em causa, evitando, assim, que se delibere sobre propostas elaboradas a partir de visões parciais ou distorcidas do problema.

Era o que eu tinha a dizer,


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/12/2003 - Página 40091