Discurso durante a 181ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

A solidariedade como o cerne do processo de construção social.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • A solidariedade como o cerne do processo de construção social.
Publicação
Publicação no DSF de 10/12/2003 - Página 40613
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, IMPORTANCIA, EXERCICIO, DESENVOLVIMENTO, SOLIDARIEDADE, GARANTIA, CONSTRUÇÃO, CIDADANIA, ETICA, MORAL, MELHORIA, RELACIONAMENTO, CIDADÃO.

O SR. AMIR LANDO (PMDB - RO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, fim de ano. Tempo de solidariedade. Parece não haver mais o vizinho, o colega, o companheiro, o amigo. São, todos, “irmãos”. Até mesmo o desafeto pode ser merecedor das “boas festas”, espécie de bordão que se repete anualmente, sempre que é Natal e Ano Novo.

A expressão solidariedade vem do latim - solidus - que significa maciço, dependência recíproca dos elementos de um todo. Em termos sociológicos, solidariedade consiste na dependência dos diversos elementos de determinado grupo entre si ou a sociedade mais geral. Desde os grupos mais elementares até os Estados e a sociedade internacional se verifica, em todos os níveis, uma interdependência mútua e uma vinculação recíproca entre os homens, entre os grupos, entre a sociedade em geral.

O tema solidariedade já está presente nas obras de Pierre Leroux, de Auguste Comte e Proudhon. Mas, foi Emile Durkheim quem o sistematizou conceitualmente, em 1893, na sua obra A Divisão Social do Trabalho, distinguindo dois tipos de solidariedade na sua análise sobre a nascente sociedade capitalista: a mecânica, fundada na semelhança, e que predominava nas sociedades pré-capitalistas, em que os indivíduos se identificavam por meio da família, da religião, da tradição e dos costumes; e a orgânica, típica das sociedades capitalistas, nas quais, pela acelerada divisão social do trabalho, os indivíduos se tornavam interdependentes ao cumprirem funções diferentes e complementares.

Hoje a palavra solidariedade designa, conceitualmente, uma nova maneira de pensar a relação indivíduo-sociedade, indivíduo-Estado, enfim, as relações da sociedade como um todo. A lógica da solidariedade aparece, então, como um discurso coerente, que não pode ser confundido com “caridade” ou “filantropia”, e traduz, em um conceito mais amplo, uma nova maneira de pensar a sociedade.

A solidariedade constitui-se em um dos mais fundamentais princípios da vida social. É um valor que se atribui aos outros e à comunidade que reúne os homens. Este valor se traduz em atos concretos como partilhar, ajudar, acompanhar, aceitar, integrar, cuidar, preocupar-se.

Nenhum ser humano pode viver sozinho, fora de qualquer comunidade. Já afirmava Marx que “o homem é um animal essencialmente social”. Pertencer a grupos sociais, da família à sociedade planetária, é um princípio não apenas de sobrevivência material, mas também de identidade social, de desenvolvimento intelectual, de equilíbrio afetivo.

Durkheim dizia que “o homem é um animal que só se humaniza pela socialização”. Na mesma linha, nos nossos tempos, Leonardo Boff afirma que “a solidariedade se encontra na raiz do processo de hominização. Nossos ancestrais hominidas, ao saírem em busca do alimento, não o consumiam individualmente, mas o traziam ao grupo, para reparti-lo, solidariamente. Foi a solidariedade que permitiu o salto da animalidade à humanidade”. 

No entanto, nem as práticas, nem os valores que lhe dão suporte, surgem naturalmente no desenvolvimento do ser humano. Isto significa dizer que a solidariedade não é espontânea, é uma conquista contra o egoísmo e o etnocentrismo de todo grupo humano e a prioridade que ele dá a seus próprios interesses. Constitui-se, portanto, num processo de construção social e cultural.

Três condições devem ser satisfeitas para que a solidariedade se desenvolva:

1.     O princípio da solidariedade deve fazer parte da cultura da sociedade, das suas idéias e dos seus valores, fundamentalmente do seu sistema educacional;

2.     Deve existir uma forma de reciprocidade, isto é, a solidariedade tem que ser um princípio que caminha em mão dupla;

3.     A solidariedade nem sempre emerge por antecipação; ela é obtida às custas de lutas individuais e sociais.

É necessário, portanto, conceber a solidariedade não apenas como um valor humanista, mas, sobretudo, como condição prática de sobrevivência de uma sociedade nos dias atuais.

As sociedades contemporâneas vivem, neste início de século e de milênio, um quadro de perplexidade, pelas transformações sociais, políticas, econômicas, culturais, científicas e tecnológicas. É difícil imaginar um estado de solidariedade, quando os mais elementares valores de humanidade se esvaem com a guerra que extermina inocentes, em nome do poder pelo poder e da ganância. A perplexidade é ainda maior quando se considera os graves problemas sociais resultantes ou fortalecidos pelo processo de “globalização”. A lógica econômica neoliberal, que norteia a internacionalização dos mercados, tem conduzido à supressão da solidariedade, em nome do lucro. O lucro, como se sabe, nem sempre se conduz pelo respeito, pela ética, pelo pudor e pela solidariedade. O enfraquecimento dos laços de sociabilidade, provocado pela exclusão, afasta a solidariedade em favor da lógica do mercado.

Por isso, o discurso da solidariedade dever ser resgatado. O Estado não é a única forma de vida coletiva. Não basta unicamente a intervenção do Estado para a reconstrução da solidariedade, porque esta não se realiza exclusivamente por essa via. Ao lado do Estado, a reconstrução da solidariedade implica a existência de uma lógica que se materializa em todo o espaço da sociedade civil, capaz de assegurar aos grupos e aos indivíduos as condições para uma efetiva participação no processo social e no compartilhamento dos frutos do progresso.

É nessa perspectiva que percebo a importância de iniciativas como a proposta de erradicação da fome no Brasil e no mundo. Não se trata, apenas, de campanhas localizadas e temporais de alimentação. Mais do que isso, elas podem ser capazes de resgatar e multiplicar sentimentos e princípios que a dura lida tende a escamotear. Solidariedade como dádiva não pode persistir indefinidamente. A solidariedade tem que se constituir num processo de construção da cidadania.

Em escala mundial, a Guerra do Iraque destruiu os últimos laços, já tênues, da institucionalização da solidariedade. As decisões da Organização das Nações Unidas tornaram-se letra morta diante da prepotência de um país que se coloca como hegemônico sobre o restante do planeta. A história mostra, entretanto, que são decadentes as sociedades que matam e que mandam matar. Assim, é hora de se discutir uma nova ordem mundial fundada nos princípios do humanismo, da cidadania, da solidariedade e da soberania dos povos.

O sociólogo Octávio Ianni, um dos maiores intelectuais brasileiros, quando perguntado se é possível perceber algum movimento de degradação contínua do tecido social, afirmou que “o espaço público ninguém mais sabe onde está. Estou convencido de que as novas gerações não têm a menor idéia de que a Praça da Sé fosse um espaço público notável, simbólico; que o Vale do Anhangabaú pudesse ter sido, em algum momento, o ‘Vale do Povo’, como expressões literais e metafóricas do espaço público - o comício, o debate, a controvérsia, o partido como agente fundamental do espaço público”.

Ainda segundo o Professor Ianni, a maneira pela qual vem se desenvolvendo os meios de comunicação, os empreendimentos comerciais, os shoppings centers, está levando as novas gerações a confundir esses locais como sendo o espaço público. Segundo ele, “a televisão é um meio de comunicação notável, tem muita importância, mas cria uma imensa multidão de solitários em todo o mundo, que são postos diante da telinha, sós, sem um intercâmbio com os seus. Na verdade, está havendo um esgarçamento do tecido social, e isso significa, simultaneamente, uma ênfase no privado, uma ênfase no comportamento, na auto-ajuda, na busca de soluções individuais e uma perda do sentido de história, de sociedade. O convívio entre as pessoas está se modificando e empobrecendo, está se formando um tipo de sociabilidade que é muito mais abstrato, muito mais virtual, que é a relação das pessoas com os programas de televisão, o noticiário da mídia eletrônica ou, então, o uso da Internet, que é um meio muito eficaz, cabível. Mas não dá conta daquilo que é, vamos dizer, comunhão entre as pessoas”.

É preciso reconhecer que o cotidiano tem levado as pessoas a um caminho oposto ao da solidariedade. O desemprego, o funil das universidades e dos concursos públicos, a fila do hospital, do banco e da escola têm acirrado a concorrência, porque o sucesso de um significa o alijamento do semelhante. Em uma escala maior, pode consolidar o chamado apartheid social, num cenário típico de “salve-se quem puder”. Daí, a discriminação, a luta entre categorias sociais e a violência que já atinge níveis comparáveis a uma verdadeira guerra civil não declarada. 

É hora, portanto, de tratar a questão da solidariedade muito mais que um bordão, um desejo repetitivo e costumeiro, que se restringe, apenas, aos momentos natalinos. Não pode se consolidar, também, como uma atitude de dádiva, mas deve ser o cerne de um processo de construção social. É hora de cada um se empenhar neste movimento que pode emergir em cada um dos nossos quintais, mas que tem, também, o condão de se espraiar em abrangência planetária. É preciso levar em conta que, em caminho contrário, a falta de solidariedade pode levar o homem de volta à animalidade.

Era o que eu tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/12/2003 - Página 40613