Discurso durante a 11ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Comentários sobre o livro "Chico Mendes Crime e Castigo" do jornalista Zuenir Ventura.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comentários sobre o livro "Chico Mendes Crime e Castigo" do jornalista Zuenir Ventura.
Publicação
Publicação no DSF de 03/02/2004 - Página 2446
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • ELOGIO, LIVRO, LEITURA, TRECHO, BIOGRAFIA, CHICO MENDES, LIDER, ECOLOGIA, SERINGUEIRO, ESTADO DO ACRE (AC), VITIMA, HOMICIDIO, MOTIVO, LUTA, PROTEÇÃO, MEIO AMBIENTE, DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL, REGIÃO AMAZONICA.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Mão Santa, Srªs e Srs. Senadores, eu gostaria de falar a todos que me ouvem a respeito de um bom livro que li nestes dias de fim de ano e de janeiro, quando tivemos um pouco de tempo para nos dedicarmos à leitura e ao estudo. Deparei-me com um excelente livro de Zuenir Ventura, Chico Mendes, Crime e Castigo, em que faz um relato extraordinariamente vivo e importante da história desse líder seringueiro, que teve o seu nome reconhecido em quase todo o mundo como o de uma pessoa que soube lutar para que os brasileiros pudessem aproveitar as riquezas da Floresta Amazônica - as árvores, os rios e a fauna - de uma maneira tal que elas não fossem destruídas.

Eu gostaria, Sr. Presidente, de recomendar a todos esse livro, publicado em 2003 pela Companhia das Letras, em que Zuenir Ventura, um dos maiores jornalistas brasileiros, faz um relato do que houve logo depois do assassinato de Chico Mendes, na parte denominada “O crime”. Depois, ele retornou ao Acre para examinar o que havia ocorrido, em dezembro de 1990, época do julgamento dos criminosos, e em outubro de 2003, ocasião em que relatou as transformações havidas naquele Estado, agora sob o Governo de Jorge Viana, e onde despontam lideranças como as dos Senadores Tião Viana e Marina Silva, naquele tempo tão preocupados com o destino de Chico Mendes e daqueles que estavam envolvidos com o extraordinário líder seringueiro.

Sr. Presidente, quero ler um breve trecho, justamente o que trata do momento em que houve a tragédia. Diz Zuenir Ventura:

O tiro que foi ouvido no mundo todo

No dia em que Chico Mendes ia morrer, em 22 de dezembro de 1988, Ilzamar Mendes queria assistir à morte de Odete Roitman. Durante aqueles últimos oito meses, o Brasil parava às 8h30min da noite - 6h30min no Acre - para se revoltar com as maldades da megera sem escrúpulos e sem caráter que se transformara no símbolo de um país que terminava o ano com 900% de inflação, o naufrágio do Bateau Mouche e uma sensação de impunidade generalizada - um país do Vale Tudo, como sugeria o título da novela da TV Globo de que Odete era a vilã.

Se soubesse que a morte anunciada para aquela noite só iria ocorrer, na verdade, dois dias depois, quase na hora da ceia de Natal, Ilzamar não se apressaria tanto em interromper o jogo de dominó entre o marido Chico Mendes e os seus seguranças, o cabo Roldão e o soldado Lucas. Os três, sentados nos banquinhos da mesa retangular da cozinha, coberta de fórmica, jogavam desde as cinco da tarde, assistidos por D. Maria Rocha, amiga do casal Mendes.

Ilzamar aproximou-se da mesa e disse: “Vocês me desculpem, mas vou servir o jantar agora, já são seis e meia, tá na hora da novela e hoje ninguém me faz perder esse capítulo”. Eles sabiam que aquele capítulo, o 191, ela e outros 60 milhões de brasileiros não queriam perder. Chico ainda pediu “um minutinho” - que foi o tempo para o cabo Roldão ganhar aquela rodada. Em seguida, desfez o jogo, mandou que os companheiros fossem comendo - feijão, arroz e peixe - e chamou Ilzamar ao quarto: “Vou tomar banho e quero a toalha nova, aquela que ganhei no aniversário”. Ela achou esquisito, com tanta toalha usada e ele pedir logo a nova, a que tinha ganhado no dia 15. Justo ele que não ligava para essas coisas! “Eu, hein”, pensou Ilzamar, mas a pressa, na hora, era maior que a curiosidade. Que ele estreasse o presente, contanto que a deixasse livre para a novela.

Com a toalha sobre o ombro direito, como tinha mania de fazer, Chico partiu em direção ao banheiro, do lado de fora da casa, a uns três metros da porta da cozinha que se desce quase aos saltos, através de três degraus desiguais, toscos, numa altura de oitenta centímetros. Não resistindo aos apelos de Sandino, de dois anos, que correndo atrás pedia para ir também, Chico pegou o menino no colo, foi até a porta, que se abria de dentro para fora, da esquerda para a direita, puxou o ferrolho, entreabriu-a rapidamente...

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa) - Senador Eduardo Suplicy, peço permissão para interromper para prorrogar a sessão por mais cinco minutos para que V. Exª possa terminar a bela oratória em que revivemos Chico Mendes.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Só peço que deixe o meu direito também de assinar.

... puxou o ferrolho, entreabriu-a rapidamente, assustou-se com a escuridão e voltou para pegar a lanterna.

Do lado de fora, atrás do coqueiro, a uma distância de 8,2 metros da entrada da cozinha, Darci Alves Pereira não chegou a perceber o rápido abrir e fechar da porta. Não estava ali há muito tempo, uns quinze, vinte minutos. Sem relógio, ele só pôde calcular o tempo quando fez a reconstituição do crime porque se lembrou de que, ao entrar para a tocaia, ouviu o sino da igreja tocar. Haveria uma missa de formatura de oitava série às 19h30 e, nesses casos, como informou o seminarista Miguel da Rocha Rodrigues no seu depoimento no da 1º de janeiro de 1989, era costume o sino dar uma primeira chamada às 18h30.(...)

Enquanto Darci espreitava na tocaia, Chico voltava, com Sandino no colo, para apanhar a lanterna, dizendo: “Amanhã boto uma luz nesse quintal.” Foi quando Ilzamar se lembrou da gripe do filho.

- Num pode levar, não, o menino tá gripado, Chico!

- Ah, deixa ir, o bichinho tá querendo.

Mas Ilzamar não abriu mão: “Além do mais, ele tem que jantar”. Arrancou o menino do braço direito do pai - o braço que daí a pouco seria perfurado por dezoito grãos de chumbo - e foi dar-lhe de comer na sala em frente à televisão. Já estava sentada, quando ouviu a explosão.

“Foi um estouro, um tiro tão violento que estremeceu a casa”, não se esquecerá nunca Ilzamar. Ouviu a “zoada”, mas não sabia de onde vinha. Chegou a ficar zonza. Correu então à janela, mas não viu ninguém: a rua vazia, a delegacia quase em frente, a sessenta passos, incompreensivelmente quieta. Os dois policiais sentados em cadeiras na calçada, impassíveis, davam a suspeita impressão de que só eles não tinham ouvido o tiro.

Nesse momento Ilzamar teve um pressentimento: “O Chico tá no banheiro e atiraram nele”.

E assim prossegue, Senador Mão Santa, esta estória tão trágica e relatada com uma capacidade fantástica por um jornalista que foi a fundo no desvendar de toda a história.

Ao concluir o seu livro, o autor presta uma homenagem ao dizer:

A permanência de Chico Mendes quinze anos depois de sua morte só reforça um mistério que não consegui decifrar: como foi possível nascer e crescer no meio da floresta, num pequeno canto verde que cremos mais propício aos bichos e às plantas, um exemplar tão fecundo da espécie humana?

Recomendo a todos a leitura de Chico Mendes - Crime e Castigo, de Zuenir Ventura, da Editora Companhia das Letras. É um livro que todos devemos estudar, inclusive para conhecermos mais do Acre, de Xapuri, pela necessidade de sabermos mais da região amazônica, que, para nós, da Região Sudeste, como eu, está tão longe, e pelo quanto é conhecermos o habitat onde viveu Chico Mendes, as razões de sua extraordinária luta e o exemplo que deu a todos nós.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/02/2004 - Página 2446