Discurso durante a 20ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Patrimônio genético do Brasil.

Autor
Mozarildo Cavalcanti (PPS - CIDADANIA/RR)
Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PROPRIEDADE INDUSTRIAL.:
  • Patrimônio genético do Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 14/02/2004 - Página 4335
Assunto
Outros > PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, RIQUEZAS, BIODIVERSIDADE, BRASIL, PRODUÇÃO, CONHECIMENTO, ORIGEM, TRADIÇÃO, CULTURA, COMUNIDADE, DENUNCIA, CONTRABANDO, PREJUIZO, PAIS, ESPECIFICAÇÃO, TRAFICO, FAUNA SILVESTRE, PAGAMENTO, ROYALTIES, PATENTE DE REGISTRO, MARCA, APROPRIAÇÃO INDEBITA, PRODUTO FLORESTAL, PROCESSO, FABRICAÇÃO.
  • COMENTARIO, LEGISLAÇÃO, BRASIL, AMBITO INTERNACIONAL, PROTEÇÃO, PATRIMONIO, GENETICA.
  • JUSTIFICAÇÃO, PROJETO DE LEI, AUTORIA, ORADOR, PROTEÇÃO, ACESSO, BIODIVERSIDADE, CONHECIMENTO, TRADIÇÃO, UTILIZAÇÃO.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, a força criadora da vida mostrou-se particularmente pródiga em nosso País, aquinhoado com 23% da biodiversidade de todo o planeta. Aliada às também imensas curiosidade e criatividade humanas, essa biodiversidade deu ensejo a um número dificilmente calculável de utilizações benéficas à nossa espécie.

           Durante séculos, os índios da Floresta Amazônica e demais ecossistemas do território brasileiro, assim como outras populações tradicionais do meio rural, produziram e utilizaram esses conhecimentos em benefício de suas comunidades.

           Mas, neste início do século XXI, Srªs e Srs. Senadores, o processo de pilhagem do patrimônio genético de outros países e dos conhecimentos tradicionais a ele associados já estende seus tentáculos por cada recanto rico em biodiversidade do planeta, impulsionado pelos enormes lucros que as indústrias farmacêutica, cosmética, alimentar e outras ainda podem assim obter.

O Ibama - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis estima em 60 bilhões de dólares o valor movimentado anualmente pela biopirataria em todo o mundo, o que a torna a terceira atividade ilegal mais lucrativa, abaixo apenas do tráfico de drogas e de armas. O Brasil é, por razões evidentes, um dos alvos preferenciais da cobiça inescrupulosa dos que praticam e promovem a biopirataria.

           O assalto ao patrimônio genético de um povo nem sempre é representado por ações facilmente tipificáveis, como o tráfico de animais silvestres, mas reveste-se, muitas vezes, de uma fachada de legalidade. É, de qualquer modo, particularmente absurda a situação em que o país que detém e utiliza determinado produto natural por gerações a fio tenha, para comercializá-lo, que pagar royalties a uma empresa estrangeira espertalhona, que logrou obter o monopólio desse direito. Temos, aqui, sem dúvida, o roubo de um patrimônio natural e cultural - um caso de biopirataria -, mas com o amparo do sistema internacional de marcas e patentes, seja por defeitos nas suas normas, ou seja, por falhas na aplicação das mesmas.

           O mais famoso desses casos é o do cupuaçu: uma empresa japonesa registrou o nome dessa planta e de seu fruto, constante de qualquer dicionário da língua portuguesa no Brasil, como marca exclusiva. Não podemos, evidentemente, aceitar esse furto de um fruto que há tanto tempo faz parte não só da vida das comunidades indígenas, mas também do dia-a-dia de todo o povo nortista e de muitos outros lugares do Brasil.

Esse registro solerte obriga os exportadores brasileiros que quiserem vender o cupuaçu nos mercados europeu ou norte-americano a inventarem outro nome para a nossa fruta ou, então, a obterem o consentimento da referida empresa, tendo por contrapartida o pagamento de royalties. Tenho a informação de que uma pequena indústria de bombons de cupuaçu já foi interpelada judicialmente por vender esse produto nos Estados Unidos. Mas é também verdade que uma expressiva campanha internacional está questionando a legalidade dessa apropriação indébita, inclusive junto ao órgão japonês de marcas e patentes.

Contesta-se, igualmente, outro caso absurdo de roubo de propriedade intelectual, perpetrado pela mesma empresa, a Asahi Foods, por meio da patente concedida para a fabricação do chocolate de cupuaçu, o cupulate, produto de enorme potencialidade econômica. Ocorre que o processo de fabricação do cupulate foi desenvolvido e patenteado em nosso País pela Embrapa, com esse mesmo nome, em 1990.

           Há muitos outros casos para os quais devemos estar atentos. Patentes referentes à utilização de produtos derivados da copaíba, da andiroba e da chamada vacina do sapo já foram registradas em países como a França, o Japão, a União Européia e os Estados Unidos.

           Há diversos aspectos a serem considerados nessa problemática, Sr. Presidente. Em primeiro lugar, a concessão de uma patente pressupõe a existência de novidade ou de atividade inventiva por parte de quem a registrar.

           Em muitos casos, não há essa novidade ou invenção, porque aquele processo de utilização já era conhecido e praticado pelas comunidades ditas tradicionais. Mesmo quando há uma novidade no processo patenteado, seus detentores podem ter se utilizado de um conhecimento tradicional prévio, que foi imprescindível ao resultado obtido.

           Por tais razões, reivindica-se hoje que a concessão de direitos de propriedade intelectual fique condicionada à indicação da origem do recurso, material ou imaterial, que originou aquele produto ou processo. De tal modo, Srªs e Srs Senadores, poderia ser garantida a repartição dos benefícios com os países detentores dos recursos biológicos e com as comunidades tradicionais que produziram o conhecimento aproveitado.

           O mais amplo conceito de proteção do patrimônio genético foi introduzido pela Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada por 168 países na Conferência Mundial de Meio Ambiente (Eco 92), no Rio de Janeiro.

           De acordo com essa nova concepção, afinada com as exigências de proteção à biodiversidade e de promoção do desenvolvimento sustentável, os países passam a ter reconhecidos os direitos soberanos sobre seus recursos naturais, ficando o acesso aos mesmos submetidos à respectiva legislação nacional.

           Embora saibamos, Srªs e Srs. Senadores, que muito dessa luta deva ser travada em instâncias internacionais, mostra-se imprescindível aprovar, em nosso País, uma legislação abrangente e eficiente sobre a questão, ainda pouco desenvolvida pelos legislativos de todo o mundo.

           Esse esforço iniciou-se em 1995, pouco após a ratificação da Convenção sobre Diversidade Biológica pelo Brasil, com a apresentação do projeto de lei da então Senadora Marina Silva, que "dispõe sobre os instrumentos de controle de acesso aos recursos genéticos do país", orientando-se pelos parâmetros definidos pela citada convenção.

           Aprovado em 1998 sob a forma de substitutivo, de responsabilidade do Senador Osmar Dias, a proposição tramita presentemente na Câmara dos Deputados. Entrementes, o Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional a Medida Provisória nº 2.186, de agosto de 2001, que vem desempenhado importante papel na proteção ao nosso patrimônio genético, na medida em que passou a gerar efeitos imediatos, não obstante algumas lacunas significativas.

           Considerando, Sr. Presidente, poder contribuir para o aperfeiçoamento de legislação sobre tema tão relevante para o presente e o futuro do País, apresentei a esta Casa, no último dia 9 de setembro, o Projeto de Lei nº 377, que "dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sua conservação e dá outras providências”.

            Procurei apresentar um projeto que avançasse, de modo modesto mas seguro, no sentido do objetivo preconizado por sua justificação: o de dotar o Brasil "de um aparato institucional condigno com a riqueza de nossa biodiversidade", por meio de "uma nova e compreensiva lei de acesso ao patrimônio genético, que incorpore todos os avanços verificados e as experiências acumuladas ao longo dos últimos anos".

           Pretendi refinar e simplificar o projeto já aprovado pelo Senado Federal, a começar pelo uso sistemático do conceito de patrimônio genético, evitando as controvérsias ensejadas pela anterior adoção do conceito de recursos genéticos. O patrimônio genético passa a abranger, conforme a definição que propomos, os componentes genéticos existentes no território nacional ou dele originários, os cultivos agrícolas domesticados no Brasil e os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

           Mantendo o propósito da simplificação, procurei preservar o arcabouço da proposição mais antiga, principalmente nos termos que definem o sistema dos contratos de acesso, instrumento fundamental para a utilização controlada de nosso patrimônio genético - uma utilização que deve estar submetida à soberania nacional e à garantia da repartição dos benefícios para as comunidades detentoras dos conhecimentos tradicionais.

           Sr. Presidente, quero concluir este pronunciamento, que apenas introduz as questões atinentes a um tema tão complexo, solicitando o exame atento, por parte de meus nobres Pares, do referido projeto de lei que tive a honra de apresentar a esta Casa, apelando, ainda, por sua aprovação, por julgá-la relevante e benéfica para nosso País, guardião de magnífica biodiversidade.

           Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/02/2004 - Página 4335